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"Ouvi de editores, artistas e galeristas que estava 'pendurando as chuteiras', quando engravidei nos anos 1980", conta Lisette Lagnado (Foto: Paulo D'Alessandro)
Postado em 17/02/2016 - 1:00
A fala é o falo
A crítica de arte Lisette Lagnado propõe que o feminismo inclua também as lutas contra o racismo, a misoginia e a homofobia
Márion Strecker

A crítica de arte e curadora Lisette Lagnado, atual diretora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, nasceu no Congo em uma família judia. Imigrou ao Brasil nos anos 1970, adolescente, formou-se em Jornalismo, trabalhou no jornal Folha de S.Paulo e logo optou por se dedicar inteiramente às artes visuais, como crítica, curadora, professora e escritora. Editou revistas especializadas (Arte em São Paulo, Galeria), deu aulas e coordenou cursos de pós-graduação (Faculdade Santa Marcelina), curou exposições (em museus e galerias), publicou artigos, monografias e livros (no Brasil e no exterior). Foi curadora-geral da 27ª Bienal Internacional de São Paulo.

Nesta entrevista à seLecT, Lagnado fala sobre feminismo, abusos e covardia. Menciona a ex_miss_febem, personagem- artista que não conhece, assim como a Daspu, grife criada pela ONG Davida, que levou à Bienal por meio do trabalho do artista esloveno Tadej Pogacar. Conta as pressões que ouviu quando “ousou” engravidar nos anos 1980, o protagonismo das mulheres na arte brasileira do último século e por que Leonilson, muito mais que artistas mulheres como Ana Maria Tavares, a fazem pensar no feminismo, já que, sob o guarda-chuva do feminismo, ele costuma abrigar outras lutas, como o racismo, a misoginia e a homofobia. A arte, para ela, precisa estar alerta contra o intolerável. Sua fala é seu falo.

Você é feminista?
Ninguém fica indiferente aos dados inquietantes de violência contra a mulher na sociedade brasileira. No ano passado, o assunto apareceu na redação do Enem e casos de agressão ganharam voz pública. No Brasil, onde é cada vez mais difícil identificar uma causa comum em torno de um movimento social, o feminismo foi para a rua contra os projetos de lei de autoria de Eduardo Cunha. Isto é inédito em termos de mobilização. Além do machismo, é preciso incluir a homofobia e a misoginia, porque representam outras faces ameaçadoras de um devir-mulher, de um corpo em mutação, com suas regras (leia- -se autonomia de pensamento)! Será que precisa ser “feminista” para denunciar tais abusos? Claro que não. Entendo que a pergunta é um pouco mais sofisticada. Ela implica repropor a definição de mulher para além do sexo e do gênero: a fêmea-mamífero é uma formulação ultrapassada do problema.

Como resumiria o feminismo em uma frase?
Há muitos feminismos, das Guerrilla Girls a Malala (Yousafzai). Posso parafrasear (Eduardo) Viveiros de Castro (quando se refere ao ser índio), dizendo que todo mundo é feminista, exceto quem não é. Ou seja, transcende vagina e ovários. Ser mulher, hoje, reúne várias condições “menores”: a voz dos refugiados, por exemplo. Para mim, esse é o feminismo mais lindo que poderia surgir.

Sente necessidade de atuar pelo feminismo?
Atuo todo dia. Minha arma é a ironia. A fala da mulher é seu instrumento- falo. Acredito e trabalho para uma utopia do matriarcado, uma comunidade livre, onde vigora a dádiva, sem classes sociais nem hierarquia – “sem lei nem rei”, como disse Oswald (de Andrade). Tenho consciência de que trabalho o triplo de qualquer bicho homem e que ganho menos. Também não ignoro que deve ser um recalque para provar que nossas competências se equivalem. Não deixa de ser uma forma de histeria…

Pela sua experiência, existe muito machismo no meio artístico? E no meio acadêmico?
Sim, em ambos, mas cuidado, porque aparecem travestidos de falsa moral. Evidente que nesses meios mais intelectualizados o discurso nunca se assume.

Gostaria de contar alguma história pessoal ou que presenciou acerca desse tema?
Minha história é diferente, porque o machismo, sendo covarde, escolhe bater em pessoas mais fracas. E outra: mulheres também são machistas (não me refiro aqui a uma opção, mas à reprodução de discursos inconscientes). Tenho dois filhos que foram gestados nos anos 1980, quando o sistema da arte estava em plena expansão. A continuidade do meu trabalho como editora e crítica de arte foi questionada por colegas próximos, editores, artistas e galeristas. Ouvi que estava “pendurando as chuteiras”. No contexto de hoje, a maternidade não é mais sinônimo de final de carreira. Em apenas 30 anos as mudanças foram gigantes

A história da arte é justa com artistas mulheres? E os museus, o mercado de arte, a crítica e a imprensa?
Não usaria a palavra “justiça” nesses campos que você cita, porque são lugares de poder. Depois, não dá para atribuir todas as injustiças do mundo ao machismo, porque há diversos valores em jogo que colocam certas produções à margem. Minha percepção é de que, pelo menos na história da arte e no mercado, os maiores nomes no Brasil são de mulheres: Tarsila do Amaral, Maria Martins, Lygia Clark, Lygia Pape, Anna Maria Maiolino, Jac Leirner, Beatriz Milhazes, Adriana Varejão… Mas quantas mulheres deixaram de desenvolver sua própria história para cuidar da obra de seus maridos? Muitas. Hoje sigo no Instagram os posts de uma pessoa que nem conheço, a ex_miss_febem. Às vezes me cansa, mas acompanho porque é uma plataforma que prescinde do sistema de museus, galerias, mercado, crítica e imprensa. É como se fazia antigamente um studio visit.

Ao longo da sua carreira como curadora, você já organizou exposições que deram ênfase a artistas mulheres?
E quanto a obras que exploram questões feministas? Só fiz uma vez uma curadoria efetivamente voltada para descascar essa questão. Era o aniversário do livro de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo (1949). Clio, Pátria (Caderno Sesc-Videobrasil nº 5) foi um exercício muito especial para mim, porque percebi que eu falava do Leonilson quando era convidada a falar de feminismo…

Poderia citar alguns artistas e/ou obras que abordam essas questões e que considera bons?
Para mim, Leonilson contribuiu mais para me pensar como mulher do que Ana Maria Tavares, então não sei se consigo responder. A pergunta me parece machista. O que é “bom”? Que questões? Como já disse, o feminismo não se reduz a temas (violência doméstica, aborto, estupro, salários iguais etc.). As questões formais não devem ser menosprezadas. Eva Hesse era feminista? O que importa? Na minha percepção, o feminismo é um modo de estar no mundo, de se relacionar com o outro, de lidar com problemas econômicos, de fazer partilhas, de pensar ecologia, de resolver dívidas, de brigar e botar o pau na mesa, de ser generoso e não perder a ternura, tudo isso junto e muito mais.

Como é a proporção de homens e mulheres entre os estudantes da Escola de Artes Visuais do Parque Lage? E entre os professores?
As proporções mudaram ao longo da história? Conforme dados da coordenadora de ensino do Parque Lage, Tania Queiroz, hoje a EAV tem entre os professores 61% de homens e 39% de mulheres, um quadro recorrente na história da escola. Mas entre os alunos a situação inverte-se historicamente. Atualmente, são 47% de homens e 53% de mulheres entre os alunos. No EAVerão 2016, voltado para o audiovisual (imagem em movimento), surgiu uma disparidade enorme e surpreendente, dessa vez contra os meninos. Tivemos uma proporção de 15 garotas contra 5 rapazes.

E a Bienal de São Paulo que você curou? Saberia dizer qual a proporção entre artistas homens e mulheres? Esse assunto em algum momento foi uma preocupação?
Na 27ª Bienal de São Paulo, eu não quis prestar atenção por aversão à ideia de cotas em bienais. Quando fechei a lista, notei que estava dentro de um padrão histórico: dois terços de homens contra um terço de mulheres. Só depois, quando fiz a exposição Desvíos de la Deriva, no Museo Reina Sofía (Madri, 2010), me dei conta de que isso provinha da minha linha de pesquisa. As intervenções urbanas, o artista-arquiteto, o campo social… Até muito recentemente, a arquitetura foi um domínio reservado aos homens, assim como a filosofia. Em contrapartida, a mulher podia ser bem-sucedida como artista ou escritora. Me interesso pelo caráter transformador da arte e isso poderia ter me levado a uma produção psicologizante, mas aprendi cedo a diferenciar o drama da tragédia. No entanto, na Bienal do “Como Viver Junto”, a participação das mulheres foi muito eloquente: Ana Mendieta, Claudia Andujar, Maria Galindo, María Teresa Hincapié, Jamac, Yael Bartana, Ahlam Shibli, Monica Bonvicini, Minerva Cuevas, Laura Lima, Renata Lucas e Virginia de Medeiros, entre outras, sem contar o desfile da Daspu dentro do trabalho de Tadej Pogacar. Claro que não é a ONG Davida que considero “artística” (como a crítica machista me acusou na época), mas o dispositivo conceitual de Tadej, que lida com a colaboração de outra mão de obra que a dele, relativizando o fetiche da assinatura, do gênio etc. Foi uma turma da pesada. Não é a quantidade que fortalece o argumento do feminismo, mas as formas discursivas que emprega. Pogacar é um feminista, independentemente de seu sexo e gênero. Somos muito mais do que se calcula.

Há ações afirmativas a serem tomadas em favor do feminismo no meio artístico?
Dentro do guarda-chuva do feminismo coloco todas as outras lutas, como o racismo e a homofobia, além dos desastres ecológicos. O meio artístico deve sempre se manter alerta contra o intolerável.