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Postado em 23/09/2011 - 6:14
A arte de fabricar dinheiro
Giselle Beiguelman

Artistas criam moedas e bancos próprios e propõem novos modelos econômicos

Timenotes

Time Notes, projeto do artista argentino Gustavo Romano em que é possível recuperar o tempo perdido e solicitar empréstimos de tempo, rendeu uma exposição na sede do Banco Mundial, em Washington (Foto: cortesia do artista)

Muito se tem falado da bitcoin, moeda que não é emitida por nenhum Banco Central, só existe na internet e é acumulada em forma de arquivo. Parece brincadeira, tipo Banco Imobiliário, mas é uma moeda cotada a US$ 18!

Mas bitcoin não é a única forma de dinheiro nativa da internet. Sem se preocupar com criptografia e mercado financeiro, artistas estão criando moedas e bancos próprios que propõem modelos alternativos aos sistemas macroeconômicos.;

Trata-se de um conjunto de ações críticas que têm pensado a ideia de economia criativa para além do imediatismo do circuito de produção-consumo. Elas engendram mercados paralelos e formulam novas regras para a circulação da arte na era das redes. Deslocam a discussão sobre o mercado de arte para uma reflexão sobre a cultura da economia.

Economia open-source

O modelo do software livre é a base de vários projetos que propõem mecanismos comunitários de aproveitamento e gestão de recursos naturais e culturais. Compartilhamento de informações e metodologias de criação e trabalho remoto e em rede, pautados pela democratização do acesso ao conhecimento, e investimento em capacitação de autogestão são algumas de suas características.

Dyndy.net

Resultado da parceria entre filósofos, economistas, ativistas e hackers. Criado pelos italianos Jaromil, programador ativista e artista, e Marco Sachy, funciona como um laboratório de pesquisa. De acordo com eles, é hora de deixar de lado a velha ideia da economia como uma rede resultante de equações numéricas para pensá-la como um sistema de relações qualitativas, baseadas nas afetividades e interesses comuns. Textos críticos e mais informações estão disponíveis no site do projeto.

Circuito Fora do Eixo

O CFE nasceu a partir de uma rede de pequenos produtores na área da música dedicada à troca de tecnologia. Foi concebido, em 2005, por produtores culturais de Cuiabá (Mato Grosso), Rio Branco (Acre), Uberlândia (Minas Gerais) e Londrina (Paraná). A rede cresceu e hoje tem nós por todo o País, sendo responsável por muitos festivais, incluindo iniciativas internacionais, como o Grito Rock América do Sul, e um bem estruturado portal on-line com uma importante base de dados e uma forte rede social. Nas suas palavras, Fora do Eixo mostrou “ser possível produzir em escala autossustentável, pautando-se, sobretudo, no contato direto com produtores de outros estados, através de uma rede de informações e sob uma lógica da união de pequenos em prol de grandes ações”.

Dinheiro DIY (Do It Yourself)

P2P Credit Card

Lançado em dezembro de 2010, esse cartão de crédito idealizado pelo italiano Paolo Cirio, conhecido pelos seus projetos artísticos com Alessandro Ludovico, tem por princípio as regras da Economia da Doação (Gift Economy). Não se trata de moeda alternativa, explica Cirio. Trata-se de criação de dinheiro falsificado baseado no sistema de cartões de crédito e nas regras do fair use. Cirio sugere que é urgente pensar em um novo design para o dinheiro. Isso passa por dar às pessoas a capacidade de administrar democraticamente as emissões, engajando as comunidades em um processo de criação de dinheiro e regulação dos recursos. Ao inscrever-se (basta seu e-mail ou celular), você receberá o seu número e 100 libras esterlinas (falsas). Mas, para que seu cartão seja ativado, é obrigatório dar um cartão para um amigo. Seu crédito cresce na medida em que você traz mais pessoas para a sua rede.

Bijlmer Euro

A criação de moedas próprias para soluções de problemas locais é outra vertente de ação de artistas e ativistas relacionados a modelos econômicos. Trata-se de sistemas monetários complementares que atendem a necessidades pontuais de grupos, permitindo relações econômicas diretas, descontos e decisões coletivas em pequenos mercados. Idealizado pelo artista holandês Christian Nold, autor de projetos colaborativos como o Bio Map e o Emotional Map, o Bijlmer Euro só tem valor nesse bairro (o Bijlmer), no sudeste de Amsterdã. Ali, notas comuns da moeda da Comunidade Europeia circulam com uma radioetiqueta (RFID) que permite aos usuários rastrear sua circulação entre os diversos negócios que integram a rede dessa moeda. Um mapa do fluxo do capital na comunidade é gerado em tempo real. Nold acredita que isso pode promover novas interações sociais entre seus usuários. Além disso, as lojas integradas à rede dão benefícios – como descontos em produtos – aos clientes, acentuando seu caráter comunitário.

Valores reinventados

Artistas não só expandem as fronteiras do pensamento e da prática econômica, mas também confrontam seus valores. Ironizam símbolos de eficiência e põem em questão a autoridade dos parâmetros de organização do mercado.

Time Notes

É lugar-comum dizer que tempo é dinheiro, mas, no caso do projeto do artista e curador argentino Gustavo Romano, esse ditado é lei. Ele criou um banco em que é possível recuperar o tempo perdido, solicitar empréstimos de tempo e consultar sua base de dados sobre desperdício de tempo. Em um ano ele já conseguiu implantar escritórios dessa rede bancário em Cingapura, Berlim, Buenos Aires e várias outras cidades. O projeto é um desdobramento de uma pesquisa maior do artista, o laboratório nômade de discussão de problemas globais Pshychoeconomy. Rendeu a Romano uma exposição no prédio do Banco Mundial em Washington, onde apresentou suas teses. O relato da experiência pode ser conferido no e-book Mis 10 Días como Consultor del Banco Mundial, disponível para download no site.

IP Détournement

Entre 8 e 13 de setembro de 2010, a artista cubana Tania Bruguera participou do fórum Voir/Revoir (ver/rever), do Centro Pompidou, em Paris, que dava carta branca aos artistas para explorar a coleção do museu. Com o projeto IP Détournement (IP pour Propriété Intellectuelle), Bruguera aproveitou para colocar em questão os modos de difusão, recepção e apropriação de obras de arte. Ela contatou cem artistas da Coleção de Novas Mídias do Museu Nacional de Arte Moderna do Centro Pompidou, solicitando autorização para vender cópias pirateadas de seus trabalhos a 1 euro cada. 63 responderam positivamente e a artista montou algumas banquinhas na piazza em frente ao museu e dentro do próprio espaço museográfico. “Esse dispositivo conduz a uma reflexão sobre a circulação de obras de vídeo e novas formas de apropriação”, avaliza Etienne Sandrin, curador do Departamento de Novas Mídias do Centro Pompidou, em texto publicado no site do museu. Mais que isso, coloca em discussão a urgência de o mercado e as instituições repensarem a noção de valor em um mundo cujos bens, por serem produzidos em formato digital, tiveram abolidas as diferenças entre original e cópia. Afinal, qual é a diferença entre um arquivo gravado no disco rígido do seu computador e sua cópia no seu pen drive? Enfrentamos, por isso, a era da cultura dos originais de segunda geração, como definiu o teórico norte-americano Peter Lunenfeld. O valor das coisas e das obras, nesse contexto, vai ter de ser reinventado. 
Leia a entrevista de Paula Alzugaray com Tania Bruguera

Versão expandida de artigo originalmente publicado em seLecT número 1, agosto/setembro 2011