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Postado em 08/07/2012 - 12:46
A arte pode salvar o mundo?
Juliana Monachesi

O cientista social Miguel Chaia, a dupla de artistas Dias&Riedweg e o filósofo Nelson Brissac ponderam sobre a arte socialmente engajada e os encadeamentos possíveis entre arte e crise ambiental

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Para investigar se a arte pode mudar o mundo ou até transformar o planeta, como defendem os artistas que trabalham na interseção entre arte e ecologia, seLecT reuniu as opiniões de três protagonistas na construção do pensamento artístico no Brasil, atuantes nas dimensões da investigação teórica ou prática.

Um deles é o cientista social e professor da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP Miguel Chaia, pesquisador da dimensão política da arte. Também falamos com a dupla Mauricio Dias e Walter Riedweg, que acaba de realizar a videoinstalação Cold Stories & Glory Holes, na qual relacionam os anos da Guerra Fria com o problema mais recente do aquecimento global.

Ouvimos ainda o filósofo Nelson Brissac, criador e coordenador do projeto Arte/Cidade, pioneira intervenção curatorial em larga escala no ambiente urbano e autor de Paisagens Críticas: Robert Smithson – Arte, Ciência e Indústria (2011).

No Brasil vimos recentemente mostras como Ecológica (2010), Água na Oca (2010) e Intempéries – o fim do tempo (2009), que abordarama crise ambiental desde vários pontos de vista. Revistas estrangeiras como Artnews e Artreview vêm dedicando ampla cobertura a exposições em torno de questões ambientais. A natureza está na moda?

Miguel Chaia A natureza instiga os artistas. Na história da arte, ela marca presença significativa a partir do Renascimento, quando a pessoa humanizada, o indivíduo, toma o lugar da figura divinizada nas pinturas. Com isso, o entorno do ser humano ganha maior significação. Abordar a natureza foi uma conquista, um giro revolucionário, propiciado pelo humanismo que também afeta as artes. A partir de então, a natureza sempre se manteve como campo de interesse de vários artistas, modificando-se apenas a interpretação cultural dessa dimensão da vida.

Dias&Riedweg A arte não entra em moda alguma. Ela exprime a essência de alguma coisa, senão não é arte. Tampouco achamos que as artes cubram de maneira acentuada os problemas ecológicos com os quais nos confrontamos. Há, sim, belas expressões pontuais sobre o tema, como o vídeo do Superflex com um McDonald’s sendo inundado. Dá nojo ver aqueles hambúrgueres de carne duvidosa nadando na água imunda da loja, assim como dá satisfação ver, enfim, um McDonald’s sendo destruído. Esse trabalho apresenta uma vingança ecológica e econômica, mas de modo algum vemos isso como tendência. Nem o mercado nem a produção cultural absorvem de fato as preocupações ambientais em que vivemos. Não compartilhamos desse otimismo.

Nelson Brissac A crise ambiental justifica essas exposições. Mas, do ponto de vista da arte, devemos distinguir conceitualmente as coisas. A linha que vem da land art é muito diferente da abordagem que enaltece a preservação da natureza. Os pós-minimalistas dos anos 1960 e 1970, sobretudo Robert Smithson, entendiam a natureza como dominada por processos intensos e caóticos (avalanches, inundações, erupções). Para eles, a paisagem não é um cenário idílico e estável, mas uma contínua mutação. As intervenções industriais, como a mineração, só acrescentam desequilíbrios numa paisagem naturalmente turbulenta. A arte deve trabalhar com esses processos naturais e industriais e não tentar apaziguá-los. Não foi Smithson quem disse que uma mina a céu aberto é tão bonita quanto as cachoeiras do Niágara?

Quatorze anos depois da estética relacional (Nicolas Bourriaud), dez anos depois de Um lugar depois do outro (Miwon Kwon) e seis anos após a Virada social (Claire Bishop), como vocês avaliam a arte socialmente engajada que dominou o horizonte das pesquisas artísticas na primeira década do século 21? Que transformações ela trouxe para o campo da arte e o campo mais amplo da vida?

Miguel Chaia Não considero que a arte engajada tenha dominado o horizonte de pesquisas artísticas no início do século 21, mesmo porque ela não suporta o peso de uma pesquisa efetiva, porque deve ter leitura imediata e funcionar sem mediações. A dimensão política da arte atingiu seu ponto alto no início e em meados do século 20, com a visão crítica do dadaísmo, surrealismo e situacionismo, além da estetização produzida pelo nazismo e o comunismo. A arte engajada do início do século 21 é uma arte de atitude marcada ainda pela continuidade das esperanças dos movimentos contra a guerra e pela cidadania dos anos 1960, mas afetada pela Sociedade do Espetáculo, no sentido dado por Guy Debord, o que reduz o significado da própria ação política.
Mas não se pode deixar de considerar que essas práticas apontam para o crescimento de coletivos ou grupos ativistas nas artes e mostram que a verve crítica continua vibrante num campo artístico dominado pelo mercado.

Dias&Reidweg Arte boa é sempre engajada numa ideia poética bem apresentada, e isso sempre move as coisas de um lugar para outro. Nesse sentido, muitas obras produzidas com integridade e força poética atingem de fato ressonâncias políticas. Mas é difícil definir essas ressonâncias como frutos de arte engajada. São frutos de boa arte, de bom trabalho de percepção e tradução de ideias. Difícil dizer se as poéticas e aparentemente inofensivas caminhadas registradas nos vídeos e desenhos de Francis Alÿs são mais ou menos engajadas do que os brilhantes vídeos e colagens feministas de Martha Rosler.

Nelson Brissac A chamada arte engajada acabou obtendo alguns ganhos, como a legitimação de práticas auto-organizadas, fora do circuito das instituições culturais, e, sobretudo, as ações instrumentais da própria população. Equipamentos urbanos como carrinhos de catadores de papel e soluções construtivas promovidas em favelas foram descobertos pelos artistas, que passaram a dialogar com esses procedimentos, alargando muito o campo de atuação da arte. Mas essa abordagem também foi rapidamente absorvida pelo mercado e pelo politicamente correto, tendo sido às vezes esvaziada de sua dimensão crítica e reduzida a lugar-comum.

Podemos prever uma virada ambiental como marca da arte da segunda década do século 21?

Miguel Chaia A ecologia não é apenas um tema forte das artes plásticas, mas também das diferentes áreas da sociedade. Ecologia é o grande tema da atualidade, pautado por organismos internacionais e até pelo menor grupo escolar. Faz parte do pensamento hegemônico. A arte ecológica é desdobramento de estratégias institucionais dos mais diversos interesses, que podem instrumentalizar a arte. Por outro lado, os artistas são cidadãos e seres preocupados com a sobrevivência do planeta. Não é uma marca da arte na atualidade, mas indício de como a arte acompanha as questões do seu tempo.

Dias&Riedweg Assim como já vivemos inúmeros deslocamentos de conceitos, crenças, hábitos e leis na sociedade, viveremos por muito tempo os mais inesperados efeitos causados pelas interferências do progresso e da indústria sobre o planeta e a vida humana. Apenas começamos a entender e a relacioná-los com suas origens. Muito disso ainda fica no território da ignorância e, em nome do capital, provavelmente assim ficará por muito tempo.

Nelson Brissac No campo da arte, acho que o mais importante é a retomada da questão da matéria, saudável contraponto ao predomínio do imagético computacional. Instigados pela pesquisa científica e tecnológica, alguns artistas estão experimentando com o comportamento da matéria em condições-limite e o desenvolvimento de novos materiais. A relação com a ciência e a indústria é que deve marcar a criação artística no futuro próximo. Uma chance para, trabalhando em cooperação, descobrir novos processos e materiais, mudando a escala e o escopo dos projetos de arte.

Como você lida com a emergência desse assunto? A economia tem impacto sobre suas atividades profissionais?

Miguel Chaia Acho instigante refletir sobre a dimensão política da arte, sempre presente em menor ou maior grau na produção artística. Nesta época de ativismo crescente, de rebeliões árabes e ocupações norte-americanas, vejo a arte como um eixo de entrada para melhor indagar sobre o mundo.

Dias&Riedweg Em Cold Stories & Glory Holes, uma videoinstalação que fizemos recentemente e ainda inédita no Brasil, relacionamos os anos da Guerra Fria com o aquecimento global, por meio de centenas de horas de imagens de arquivo.

Nelson Brissac No momento, desenvolvo um projeto com o escultor José Resende, na Mooca (bairro paulistano), que lida com vagões ferroviários sucateados. Só no estado de São Paulo existem mais de 40 mil vagões abandonados, às vezes em áreas de mananciais. A remoção de resíduos sólidos de áreas urbanas é um dos problemas ambientais mais críticos. Os vagões são inertes e pesados. Sua remoção é muito dispendiosa, só viável para reciclagem industrial do aço. A proposta é fazer experimentações estruturais enquanto os vagões forem sendo desmontados e retirados.

A arte pode mudar o mundo?

Miguel Chaia A arte não pode mudar o mundo, mas pode, sim, criar outro mundo. Por outro lado, um conjunto de artistas pode fazer parte do esforço, associando-se a outros projetos, para tentar transformar a realidade social. Aí então a arte passa a ser portadora de um adjetivo.

Dias&Riedweg Da mesma forma simples que uma pedra quando jogada na superfície de um lago causa marolas, a obra de um criador causa ressonâncias em sua época. A arte pode questionar os parâmetros que nos orientam e pode, sim, mudar o estado das coisas. Afinal, o ato de criar é, no mínimo, o de libertar uma ideia e, por vezes, libertar uma atitude.

Nelson Brissac A arte, por si só, não pode mudar o mundo. Essa crença acaba muitas vezes colocando os artistas a serviço de interesses políticos ou imobiliários, que buscam usar a arte para legitimar suas próprias atividades. Mas a arte tem, como nenhuma outra forma de expressão, a capacidade de tocar o nervo do seu tempo, o ponto crítico das situações urbanas, sociais e culturais, servindo de catalisador para reflexões, críticas e práticas alternativas. A arte pode, então, apontar para outras configurações possíveis.

*Publicado originalmente na edição impressa #5.