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Dancehall, still de Cinéma Casino. Em colaboração com Benjamin de Burca, 2013 (Foto: Bárbara Wagner /Cortesia Solo-Shows)
Postado em 01/03/2016 - 3:10
A dança que desafia o retrato
Obra fotográfica de Bárbara Wagner, artista convidada para a 32ª Bienal de São Paulo, refuta estigmas e opera à revelia de preconceitos que definem limites para o corpo e os afetos
Ana Maria Maia

Frustrar repetidas vezes. Em vez de se mover assertivo, oscilar em torno de onde se está, para os lados ou para a frente e para trás. Tanto promessa quanto tática de fuga. Assim é o movimento de “Faz Que Vai, Mas Não Vai”, um dentre as dezenas de passos do frevo, ritmo carnavalesco que surgiu nas ruas do Recife no fim do século 19, a partir de respostas do povo às marchas militares. Se na origem pressupunha contestação da norma e invenção de música e dança a partir de um laboratório espontâneo e coletivo, o frevo tornou-se cartão-postal, atração para turistas, pose e sorriso congelados por e para as autoridades. Contraditoriamente, hoje o seu imaginário oficial envolve a alegria resiliente de um certo padrão de meninos e meninas, com dotes acrobáticos e sombrinhas coloridas à mão. Antes de mais nada, contempla o equívocode uma manifestação dita folclórica, ou seja, insensível ao tempo e às construções de classe, raça e gênero.

Em parceria com Benjamin de Búrca, Bárbara Wagner convidou quatro bailarinos profissionais de frevo para investigar nos seus corpos e em diálogo com eles os desencontros entre um cânone sedimentado e práticas em andamento, ou como a tradição assimila informações de um contexto e se reinventa. Adotaram Faz Que Vai como título, tomando emprestados os referentes de uma teimosia persistente, desde os primeiros passos de frevo ea irredutível disputa entre quem faz e quem olha, quem é retratado e quem retrata.

Ryan Neves é passista no polo turístico de Olinda durante o dia e à noite se traveste de Alice para apresentar um show de “bate-cabelo” na boate MKB. Edson Vogue faz parte de um grupo de frevo de rua e dá aulas de Stiletto e Vogue, danças do universo gay disseminadas por cantoras pop como Madonna e Beyoncé. Bhrunno Henryque ensina na Academia Municipal de Frevo e faz coreografias para quadrilhas juninas e grupos de swingueira. Eduarda Lemos, a Tchanna, ensaia na mesma escola e, nos fins de semana, compete em bailes de funk e brega.

Ryan, still de Faz que Vai, 2015. Em colaboração com Benjamin de Burca, 2015 (Foto: Bárbara Wagner /Cortesia Solo-Shows)
Ryan, still de Faz que Vai, 2015. Em colaboração com Benjamin de Burca, 2015 (Foto: Bárbara Wagner /Cortesia Solo-Shows)

Em encontros individuais com Bárbara e Benjamin, os quatro estabeleceram coreografias para vídeo e fotografias lenticulares, que sobrepõem diferentes imagens para gerar a impressão de movimento. A dança poderia conter elementos de frevo e dos outros ritmos praticados – swingueira, funk, brega, alguns dos mais populares nas periferias das cidades nordestinas, ou Vogue e Stiletto, comuns nas festas do público LGBT. São chamadas de “fervo”, do verbo ferver, curiosamente, assim como o frevo.

Ainda segundo o método estabelecido para o trabalho, os movimentos deveriam ser feitos já para câmera e apenas com a referência das batidas sonoras de um metrônomo de marcação de tempo. A música seria atribuída pela Orquestra Popular da Bomba do Hemetério só depois das filmagens. As transições e interações entre repertórios que os bailarinos acumulam no corpo ficaram a critério de cada um. Assistindo-se no vídeo, tomaram decisões sobre os passose negociaram suas imagens com os artistas e com o câmera, Pedro Sotero. Os figurinos variaram do torso masculino nu à “montação” de uma Drag-Queen. Os cenários recortaram lugares triviais e anônimos da cidade em planos frontais queos tornaram janelas de representação, como costumam ser os palcos teatrais e as telas de pintura ou cinema.

Filmados em plano aberto, da cabeça aos pés, foram os corpos de Ryan, Edson, Bhrunno e Tchanna que desafiaram a frontalidade desse lugar e tentaram, através da dança, revelar suas camadas, dar-lhe a tridimensionalidade que é, ao mesmo tempo, atributo e problema para os sujeitos e para a vida comum. O resultado é um espaço que acumula vocações, tanto palco quanto terreiro, tanto imagem quanto dispositivo escancarado. Nele, como no anterior da dupla, Cinema Cassino (2013), bailarino e câmera parecem duelar, cada qual querendo entregar os artifícios de ilusionismo e construção do outro. O bailarino exige o movimento da câmera. A câmera, ao final do movimento, procura estabilidade para a conclusão. Fechada em primeiro plano, persiste na busca do retrato. Em vez dele, testemunha o desmonte da fantasia pelo suor, o esgotamento que faz tremer, o olho no olho que desmitifica o personagem, seja porque o deixa acessível ou defensivo demais, seja porque o deixa empático ou empostado demais. Vemos o intérprete, suas promessas e fugas. Vemoso retrato adiado ou uma tentativa de politizá-lo.

Ainda assim, o retrato
Recurso de documentação e legitimação de subjetividades, o retrato também é acessado enquanto cânone. Comum à história da arte e ao fotojornalismo, atividade na qual Bárbara iniciou sua carreira, pode servir para ratificar perspectivas e papéis sociais, definir o outro e, com isso, exercer poder. São inúmeras, no entanto, as viradas técnicas e estéticas que colocam em crise essa concepção. As selfies, ou autorretratos da era digital, tornaram cotidiano, autônomo e consciente o exercício do “eu” público. Em detrimento da homofobia e do conservadorismo encampado pela crescente bancada evangélica no Congresso brasileiro, as discussões sobre corpo e identidade de gênero tiveram importantes avanços com o fortalecimento de grupos LGBT, a organização da cartilha Escolas sem Homofobia, pelo Ministério daEducação, e a disseminação da Teoria Queer em livros como Manifesto Contrassexual, de Paul Preciado, traduzido para o português em 2014.

Diante de sujeitos cada vez mais soberanos em suas construções identitárias, além de, obviamente, ainda imbuídos de refutar estigmas, estereótipos e guetos, seguir praticando retrato permite, em contraparte, corrompera ideologia do cânone. Ou seja, aproveitar-se da sua linguagem consolidada e dos seus circuitos de recepção para disseminar processos e visualidades que lhe escapam e devolvem ao terreno fértil, embora perigoso, da criação. Alguns desses fatores são a interferência declaradado fotógrafo na cena documental, em oposição ao fragrante, e o consentimento do personagem em ser fotografado, interessado que está em também dirigir sua própria imagem.

Os retratos estão presentes no trabalho individual de Bárbara Wagner desde Brasília Teimosa (2007), em que foi a campo para documentar os domingos em uma praia popular e, com o uso de flash, que desnaturaliza a luz, mas, principalmente, o ato fotográfico, registrou o modo como os banhistas ostentavam uma estética de periferia pujante, orgulhosa e desprovida de subserviência de classe. Em Estrela Brilhante (2010), acompanhou em Nazaré da Mata as sambadas de maracatu rural, quando, sem fantasia ou grandes plateias, ao lado do canavial onde muitos deles trabalham, os caboclos de lança começam a se preparar para o Carnaval. Dançam viris e são todos homens, como os que participaram de Faz Que Vai. Cada qual à sua maneira – correspondendo a uma identidade de gênero masculina em Estrela Brilhante e ampliando essas possibilidades em Faz Que Vai –, dançam à revelia do machismo que define limites para o corpo e os afetos, de uma tradição que adormece e comodifica as manifestações populares e os sujeitos que as vivenciam, de uma base rígida para se estar e se ser. Deixam sua imagem dançar, investigativa e errante.