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Postado em 17/09/2012 - 3:41
A era adhocrata
Bernardo Gutiérrez

Do urbanismo à educação, da programação ao design, a adhocracia pede passagem e é o eixo da Bienal de Design de Istambul, que acontecerá em outubro

Adhocrata

Legenda: Interior da Istanbul Modern – New City Reader, primeira bienal de design de Istambul (Istanbul Tasarim Bienali) (Foto: Murat Germen/divulgação)

Cory Doctorow, um importante escritor de ficção científica e ativista digital, imaginou um mundo sem burocratas em seu primeiro romance, Down and Out in Magic Kingdom, em 2003. No futuro utópico retratado no livro, os fãs dirigem a Disney World e a reputação social é a moeda mais valiosa. O interesse dos políticos é desenvolver projetos participativos de cultura popular. Burocratas simplesmente não existem. O mundo, governado por uma equipe rotativa e multidisciplinar distancia-se do passado distópico e das democracias imperfeitas do século 20.

Doctorow batizou seu sistema ideal de governo de “adhocracia”, mas, na verdade, não estava inventando nada. O conceito foi criado pelos pensadores Warren G. Bennis e Philip E. Slater, em 1964, ao tentarem descrever um novo modelo de organização flexível e inovador. Na Segunda Guerra Mundial, já havia sido formulado um protótipo de organização desse tipo: equipes ad hoc, que os exércitos militares montavam e dissolviam depois de completar uma missão específica e transitória. Mas foi nos anos 1970 que o conceito de adhocracia foi amadurecido por pensadores como Henry Mintzberg e Alvin Toffler. Ambos desconfiavam de um mundo vertical. Soluções quadradas. Especialistas puros. O aparelho pesado das grandes organizações. Governos. Burocracias. Por isso, se esforçaram para criar um imaginário adhocrata, um corpo teórico de organização multidisciplinar e dinâmica.

O futuro imaginado por Cory Doctorow chegou. É o presente. A crise econômica mundial e a popularização da internet estão implodindo um modelo enroscado em velhos paradigmas. Estamos aterrissando com tudo na era do poder (cracia) ad hoc (aqui e agora). Organizações “post-it”. Grupos “pop-up” de ação. Organizações claramente adhocráticas. Mas com um toque de inteligência coletiva, colaboração, crowdsourcing e descentralização que os teóricos dos anos 1970 não anteciparam.

Exemplos não faltam. Uma legião de tradutores gera títulos e legendas de séries, filmes e documentários com total eficiência. Qualquer fórum de cidadãos – forocoches.com, burbuja.info etc. – substitui os especialistas dos mais seletos clubes. Soluções urbanísticas são cozinhadas, em conjunto, por geeks, vizinhos, planejadores, designers e artistas (como faz o grupo de Ecossistemas Urbanos ou o coletivo belga Lateral Thinking Factory).

De que conexão improvável uma organização precisa para deixar de ser burocrática? Os novos modelos que surgiram num mundo digitalizado se encaixam nas definições clássicas de adhocracia? Que organograma teria uma adhocracia perfeita? Henry Jenkins, em seu livro Cultura da Convergência (2006), descreveu a adhocracia da seguinte forma: “Ela é caracterizada pela falta de hierarquia. Cada pessoa enfrenta um problema com base em seus próprios conhecimentos e habilidades, e as lideranças mudam conforme o projeto evolui. É uma cultura que transforma o conhecimento em ação”. O estático, nas palavras de Jenkins, torna-se uma “tensão dinâmica” constante.

Reputação, valor da mudança

Não seria a adhocracia, no novo milênio, mais um roteiro que uma organização? Um estado de espírito poroso que permeia tudo? Uma nova receita do conhecimento remixada? Um novo marco para a convivência entre disciplinas? Marco Lampugnani, do escritório de arquitetura italiana Snarkive, fornece algumas pistas ao descrever seu trabalho na cidade italiana de Auletta: “Nós reconhecemos a impossibilidade de ter projetos complexos; abraçamos habilidades pouco ortodoxas e a participação na sociedade para além da simples comunicação”. Os projetos não são mais algo fechado, alfa final. Tudo acontece a um “estado beta eterno (instável, inacabado)”, como muitas vezes disse Ethel Baraona, fundadora do estúdio DPR-Barcelona.

Curiosamente, Baraona é uma das curadoras associa- das da Bienal de Design de Istambul, a ser realizada em outubro, que tem como eixo a adhocracia. “Bem-vindo à era da adhocracia”, diz o curador Joseph Grima. “Ela atravessa as convenções e dinamiza estrutu- ras para capturar oportunidades, auto-organizações, e desenvolve metodologias de produção inesperadas.”

A adhocracia, continua, “habita a horizontal, o reino rizomático de redes em que a inovação – inventiva, subversiva, não dogmática, espontânea – pode vir de qualquer lugar”. Esse roteiro do novo milênio privilegia as conexões em detrimento dos objetos, pessoas ou produtos. Os fios de ligação são mais importantes que a existência física de elementos isolados.

A adhocracia, na era digital, está disfarçada de inteligência coletiva, conforme foi preconizada por Pierre Lévy. Anda de mãos dadas com o espírito coletivo da Wikipedia. Namora com o novo tipo de ilustração fomentada por amadores de que fala o sociólogo Antonio Lafuente. Mescla-se aos sistemas colaborativos de troca da sociedade P2P vislumbrados por Yochai Benckler. E sua definição se transforma, direcionando os novos territórios oblíquos do teórico Peter Walsh para a fusão com a horizontalidade das redes.

Voltemos a um detalhe do utópico mundo adhocrata de Cory Doctorow para nos aprofundarmos em sua moeda oficial, o Whuffie: uma moeda efêmera, social e praticamente intangível. O Whuffie é como a reputação social da pessoa. Algo como a pontuação em sites de leilões como o eBay ou de comunidades de viajantes como o CouchSurfing. Traduzindo: é como se o carma de agregadores de notícias como o Digg ou Slashdot tivesse um valor monetário. A reputação funciona como uma moeda. A ligação entre as partículas gera a reputação. E a rede ligada à adhocracia, além de resolver problemas coletivos, cria um sistema sustentável, onde não há espaço para a solidão das partículas subatômicas.

Bernardo Gutiérrez é jornalista, escritor e fundador da rede de inovação internacional Futura Media (@futura_media), é autor dos livros Calle Amazonas – De Manaus a Belém por el Brasil (editora Altair) e #24H, uma obra copyleft.

*Publicado originalmente na edição impressa #7.