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Detalhe da performance Desenhando com Terços (2000), de Márcia X (Foto: Vicente de Mello, MAM Rio)
Postado em 03/07/2017 - 6:33
A igreja que ilumina é a que arde
Reflexiva, chocante ou debochada, a produção contemporânea põe na berlinda os abusos das instituições sagradas ao redor do planeta
Luciana Pareja Norbiato

Se as vanguardas do século 20 romperam a amizade com a sacralidade, a produção contemporânea foi além: debochada, reflexiva ou chocante, escancarou as mazelas das religiões ao redor do globo, angariando a fúria de fiéis e cúpulas. Ainda mais hoje, no auge da crise pós-colonial, quando as chagas de Cristo parecem arranhões perto das guerras e da desterritorialização em massa que sobraram de herança.

Em meados dos anos 1990, a ordem era chocar. Que o diga Andres Serrano, iniciante dessa onda com Piss Christ (1987). Mostrando um crucifixo submerso na urina do artista, a foto segue atraindo o ódio cristão. O imbroglio mais recente foi sua retirada do arquivo da Associated Press, em 2015, após o ataque ao jornal satírico francês Charles Hebdo por extremistas muçulmanos.

A representante nacional da vertente foi Márcia X (1959-2005), principalmente em Desenhando com Terços (2000). Nela, a artista usava terços católicos para recobrir o chão de contornos de pênis. A inclusão póstuma da obra em Erotica – Os Sentidos na Arte (2006) levantou a ira de grupos extremistas, fazendo com que fosse retirada. Graças ao protesto dos artistas participantes, o Centro Cultural Banco do Brasil cancelou a itinerância da exposição para Brasília.

Do norte-americano Bill Viola, a videoinstalação Mary (2016), emprestada pela Tate à Catedral de Saint Paul, em Londres (Foto: Peter Mallet, cortesia Tate, Bill Viola e Kira Perov)

 

Humor, ação política e diálogo
Uma figura carismática como o atual papa Francisco merece crítica mais divertida? É o caso dos grafites do italiano Mauro Pallotta. Num deles, o pontífice aparece pintando um jogo da velha na parede, com os zeros substituídos pelo símbolo da paz. Feito ao lado do Vaticano, foi apagado pouco tempo depois, no fim do ano passado. Em outro, o papa argentino voa como super-herói, levando na mão uma valise em que se lê “valores”, que pode indicar moralidade ou dinheiro.

O humor, a ação de protesto e até o diálogo são estratégias atuais de embate religioso. Prova disso é a quantidade de igrejas abertas como espaços expositivos na Europa, no esforço de aceitar o debate – e tentar aumentar o contingente decrescente de fiéis.

Na Catedral de Saint Paul, em Londres, os vídeos Martyrs (2014) e Mary (2016), de Bill Viola, estão em exibição sem data de encerramento. Pela clivagem de uma imagética semelhante à da Igreja, mas que subverte sutilmente alguns de seus cânones, o artista questiona com delicadeza.

Detalhe da instalação The Shadows of the Wanderer (2008), de Ana Maria Pacheco, excursionando por igrejas europeias (Foto: Pratt Contemporary)

 

É o caso também da goiana radicada em Londres Ana Maria Pacheco. Com esculturas inspiradas no barroco mineiro, ela cria narrativas de tortura, não pertencimento e degredo que relacionam a Igreja aos efeitos do pós-colonialismo. “Como brasileira, minha ligação com o barroco é especial. Nossa história começa com ele. Com a Contrarreforma na Europa, foi inevitável que o conceito todo fosse trazido ao Novo Mundo”, declara a artista à seLecT. “O que é fundamental no meu trabalho é a preocupação contínua com o poder ilimitado. A síndrome do refugiado está sempre relacionada a um exercício de poder, ao deslocamento de pessoas usando a força de uma maneira ou de outra”, completa.

Mesmo assim, Ana Maria Pacheco vem exibindo seus trabalhos, como The Shadows of the Wanderer (2008), em vários templos cristãos, a exemplo da Catedral de Salisbury, onde fica em cartaz até 23 de julho.

Outro brasileiro que prefere a conciliação pelo sincretismo é Stephan Doitschinoff, que está em cartaz até 27 de agosto em Dublin, na mostra As Above, So Below, do Irish Museum of Modern Art. Exibe lá a instalação Interventu, que mescla candomblé, catolicismo e judaísmo. “Parte da minha pesquisa vem do interesse em hackear a estrutura religiosa ou militar, o templo, o hino, a farda e a procissão, apagando seu conteúdo original e adicionando símbolos e ideias que vêm de reflexões pessoais, que muitas vezes batem de frente com os ideais da estrutura hackeada”, diz Doitschinoff à seLecT.

Instalação de Stephan Doitschinoff que compõe a obra Interventu (2017) (Foto: Cortesia Stephan Doitschinoff)

 

O aspecto pop da religião surge na imagem estática. Se o norte-americano David LaChapelle toma Jesus como astro lado a lado com Michael Jackson, o israelense Adi Nes aponta sua lente para as tradições judaicas, substituindo os personagens bíblicos por soldados do Mossad. Ambos embalam o sarcasmo com um visual ultraestético.

O trabalho de Nes opera com uma problemática densa em busca do denominador comum. “Ao longo da história da humanidade, os problemas começaram quando a religião se misturou com o nacionalismo e a política. O extremismo está relacionado de alguma forma à crise existencial, medos financeiros e o sentimento coletivo de estar sendo ameaçado. Uma vida com arte é a melhor maneira de enriquecer a nossa visão de mundo e, ao mesmo tempo, criar uma linguagem comum com outras culturas”, diz Adi Nes à seLecT.

Fotografia sem título (da série Soldier, 1995), do israelense Adi Nes (Foto: Cortesia Adi Nes e Jack Shainman Gallery, New York)

 

Sobreviventes
Yael Bartana usa o mesmo expediente em vídeos como Inferno (2013), produzido para a 31ª Bienal de São Paulo. Nele, a artista traça uma analogia entre o extremismo das igrejas evangélicas brasileiras e do judaísmo. Já Takhlish (2017), seu novo vídeo, remonta à tradição homônima judaica de jogar objetos no rio como penitência aos pecados, traçando um paralelo com sobreviventes e algozes dos vários genocídios e perseguições ao longo da História – do Holocausto à limpeza étnica no Sudão e na Eritreia.

Mesmo na era da pós-verdade nem tudo são flores para quem ousa criticar a religião. Reações a mostras com o coletivo argentino Mujeres Publicas e do performer espanhol Abel Azcona apontam que o extremismo entre católicos segue em alta.

Combativas, as Mujeres Publicas receberam protestos de grupos cristãos quando Cajita de Fósforos participou de uma exposição no Centro de Arte Reina Sofía, em Madri, no fim de 2014. O trabalho é literalmente uma caixa de fósforos, com o desenho de um templo queimando e a frase “A única igreja que ilumina é a que arde. Contribua!”

Still de Inferno (2013), obra fictícia da israelense Yael Bartana participante da 31ª Bienal de São Paulo, em que o Templo de Salomão, no Brás (SP) é alvo da ira divina e pega fogo. (Foto: Cortesia Petzel Gallery, New York, Annet Gelink Gallery, Amsterdam, Sommer Contemporary Art, Tel-Aviv)

 

Após guardar as hóstias com que deveria ter se comungado em mais de 240 missas, Abel Azcona desenhou com elas a palavra Pederastia e exibiu as fotos na cidade de Pamplona, no fim de 2015. Gerou revolta, mas ele não retrocedeu. “A boa arte deve incomodar”, declarou na época. Em outro de seus trabalhos, come reproduções de páginas do Alcorão.

Hoje, o islamismo é a única religião que adota penas capitais, séculos depois da Inquisição católica. Que o diga o poeta, artista e curador palestino Ashraf Fayadh. Vivendo na Arábia Saudita, foi condenado à morte em 2015 por apostasia em seus poemas (mas a real causa seria uma represália da Justiça local). Agitador da cena artsy na região, teve sua sentença alterada para oito anos de prisão e 800 chibatadas em fevereiro do ano passado. Tarde demais: ao saber que o filho seria morto, o pai de Fayadh sofreu um ataque cardíaco fatal. A arte ainda tem muito a brigar com a religião.