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Casa do Morumbi, projetada por David Ottoni, finalizada em 1975, vazia desde 2010 (Foto: Ana Ottoni, fevereiro/2015)
Postado em 15/04/2015 - 5:40
A ruína brutalista
Fotógrafa apresenta recorte de sua pesquisa sobre a arquitetura brutalista paulista, estilo em que o concreto era a matéria-prima por excelência, investigando seu papel simbólico no contexto brasileiro
Ana Ottoni

Meu pai, David Ottoni, arquiteto paulista e discípulo de Vilanova Artigas, projetou nos anos 1970 uma casa de concreto armado aparente e vidro para a sua família, com dormitórios muito pequenos, camas-estante e uma grande sala envidraçada com vista para um vale ainda pouco construído e muito arborizado. Eu vivi nessa casa por 17 anos, reclamando do tamanho do meu quarto e do frio que sentíamos no inverno, mas usufruindo da belíssima vista daquela sala ensolarada, e orgulhosa de viver em um lugar tão particular, no fim das contas.

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Velódromo da USP, projetado para os jogos Pan-Americanos de 1975, que não se realizaram no Brasil, finalizado em 1977. Fechado para competições desde 1990 (Foto: Ana Ottoni, outubro/2014)

A casa está vazia há cinco anos, desde a morte de meus pais, e, infelizmente, o sentido do projeto perdeu-se com o crescimento do entorno. O lote estreito não suportou a verticalização dos vizinhos. A casa ficou muito escura, sem sol e sem vista, desconfortável para os padrões contemporâneos. A infraestrutura está irreversivelmente destruída. Desde 2012 venho fotografando o seu processo de deterioração. A partir de 2014, o ensaio tornou-se pesquisa de mestrado e foi estendido a outros prédios do brutalismo paulista, dialogando com a própria imagética das ruínas e investigando seu papel simbólico no contexto brasileiro, que tanto preza o seu modernismo.

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Centro de Artes Cênicas, projeto de 1973 de Jorge Wilheim, paralisado em 1976 por falta de verbas. Retomado em 1991, foi novamente abandonado após a abertura do Paço das Artes (Foto: Ana Ottoni, fevereiro/2015)

A imagem da ruína brutalista não tem o glamour das ruínas pré-modernas que frequentam o nosso imaginário, como as fantasmagóricas gravuras de Luigi Piranesi ou as dramáticas telas de Willian Turner. O concreto não descasca, escurece; o vidro temperado fica apenas sujo e, quando quebra, some. A ferrugem reside no interior do concreto, invisível. Sua única identificação com a ruína romântica é a retomada descontrolada da natureza, da vegetação que vai invadindo frestas e juntas de dilatação e ajardinando lajes de cobertura. A forma de conservar ou restaurar esses prédios mostra-se complexa e polêmica, se não contraditória à sua proposta original, o espírito da época modernista. Devemos tombá-los? Como restaurá-los?

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Garagem de Barcos Santa Paula, de 1961, obra assinada por Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi (Foto: Ana Ottoni, novembro/2014)

As imagens deste ensaio certamente carregam uma nostalgia pessoal, a saudade da convivência com meu pai dentro da casa de concreto, da vida de jovem estudante na FAU-USP, da extrema convicção no sucesso do projeto modernista da qual eu era cercada. Mas o sentimento nostálgico não é exclusividade minha, ao contrário, é lugar-comum no pensamento contemporâneo. A retomada do gosto pela ruína acompanha a obsessão memorialística que resgata arquivos, ressignifica resíduos e revê a história. A imagem das ruínas modernistas, por sua vez, carrega a saudade do futuro prometido pelo projeto moderno.

*Ensaio visual publicado originalmente na #select23