icon-plus
Postado em 05/04/2012 - 4:31
Ai Weiwei faz “Big Brother”
Sheila Leirner

O artista e dissidente chinês é obrigado pelas autoridades chinesas a terminar seu reality show caseiro dois dias depois de começá-lo

Legenda: Ai Weiwei em Paris: Vídeo da exposição Entrelacs no Jeu de Paume (março-abril 2012) e trailer do documentário Ai Weiwei: never sorry (2012)

O célebre artista contestatário chinês, cuja exposição está atualmente em cartaz no Jeu de Paume em Paris, acaba de se insurgir contra a contínua vigilância que lhe é imposta. Com a criatividade que lhe é peculiar e os meios que possui, este “dissidente” sediado em Pequim, respondeu esta semana colocando 4 webcams em lugares estratégicos, na mais estrita intimidade, do seu apartamento.

Mas esta “instalação” ligada à Internet – metáfora do poder chinês, mestre da censura do Web e dos internautas – não durou muito. Ontem mesmo, as autoridades chinesas o obrigaram a desligar as câmeras.

Aiweiwei

Legenda: Em 2009, Ai-Weiwei publicou a imagem onde aparece usando como tapa-sexo uma lhama de pelúcia, animal que virou meme na internet como símbolo da censura chinesa.

Dentro de um quadro análogo, o Twitter chinês (Weibo) também acaba de ser censurado pela polícia do Net, como jamais foi feito desde a sua aparição em 2009. Os comentários são triados e o site corre o risco de ser fechado definitivamente. Mil pessoas foram presas, 16 sites eliminados e os dois mais populares entre eles, Sina e Tencent, não podem mais receber comentários. Esta nova “violação da liberdade de expressão” provocou a mobilização dos cyberativistas: “Se você ficar silencioso hoje quando os comentários são deletados, você continuará mudo amanhã quando os microblogs serão fechados e todo mundo ficará calado no dia em que você for preso”, escreveu Peng Xiaoyun. Assustado com o espectro da primavera árabe – alimentada pelas redes sociais e Internet – vai ser muito difícil o PCC diminuir a pressão.

Mas quem é Ai Weiwei realmente?

E o que é “Entrelacs”, esta primeira exposição do artista em Paris – no Jeu de Paume, templo da fotografia – com um trabalho que pode ser tudo porém não tem muito de fotográfico? Em 1980 Ai Weiwei descobriu Nova York. A sua formação artística havia terminado na China, país onde dominava o realismo socialista importado da União Soviética nos anos 50. Evidentemente, tornou-se bulímico de tudo que lhe havia sido proibido. Frequentou o mundo da arte e da cultura ocidental e assimilou, com voracidade imensa, obras e artistas americanos e europeus de toda a metade do século 20. Não contente com isso, voltou à China e publicou três livros sobre arte contemporânea para compartilhar com os seus compatriotas tudo o que havia aprendido em 13 anos.

Entre as descobertas dele estava um artista ao qual ele prestou, e presta ainda, homenagens explícitas: Marcel Duchamp (1887-1968). Impossivel entender Ai Weiwei sem pensar nos ready-made – aqueles objetos tirados do contexto que viravam arte – nas atitudes provocantes, declarações enigmáticas e satíricas, e também no tom geral de insolência e liberdade do artista francês. Entre Ai Weiwei e Duchamp, a relação é evidente – até mesmo no caso das fotos do artista chinês com as jovens nuas.

Por outro lado, Duchamp sempre afirmou ser indiferente à política. E aí é que eles se distanciam. Ai Weiwei declarou numa entrevista ao jornal Libération: “Não sou mais verdadeiramente eu, mas um mídia carregado de mensagem”. Diz ele: “Vim para a arte pois quis escapar de outros limites da sociedade. A sociedade inteira é tão política que a ironia é que a minha arte torna-se cada vez mais política.”

Ai Weiwei quer que as suas obras sejam compreendidas como alusões ou alegorias. Os seus censores sentiram isso muito bem, tanto que ele continua a ser reprimido. A arte dele é crítica. Põe em xeque a ordem social. Ai Weiwei reinventa Duchamp, usando-o de maneira política e portanto simbólica. E nisso, aproxima-se de muitos outros artistas.

Não dá para não lembrar, por exemplo, da escultura que o artista italiano Maurizio Cattelan colocou na frente da Bolsa em Milão, das suas figuras de Hitler rezando ou de João Paulo II esmagado por um meteorito. Ele, tanto quanto outros, Ai Weiwei inclusive, usam objetos simples para cometer “sacrilégios”.

Catelan

Legenda: Escultura de Catellan na frente da Bolsa de Milão – Reuters

Pode parecer estranho, mas Ai Weiwei também não está muito longe de Jeff Koons. De forma análoga, alguns ready-made deste último – aspiradores de luxo, joguinhos de praia, etc – podem igualmente ser vistos como uma crítica à sociedade de consumo. O artista chinês fotografa-se em situações escandalosas da mesma forma como Koons apareceu nu nas fotos e na escultura policromática “Made in Heaven” ao lado da ex-mulher Cicciolina, aliás Ilona Anna Staller atriz de filmes porno, que tive a honra de conhecer no Aperto 90 da Bienal de Veneza, há 22 anos. Não acredito que existam “influências” na arte contemporânea. Trata-se mais de fenômenos de geração e de uma certa sincronicidade. Quem nasceu entre 1955 e 1960, e teve contato com Duchamp como este artistas, forçosamente apropriou-se dele, reativando-o segundo as próprias necessidades. Se hoje eles são ouvidos e discutidos não é porque têm em comum apenas a vontade de escandalizar. É porque desejam ser compreendidos pelo maior número de pessoas, fazendo-as pensar. Para os artistas ocidentais, praticamente não há risco. Na China, não é a mesma coisa.

Esta é uma das razões, talvez, pelas quais um trabalho “ativista” (e heróico) desta ordem não combina com um espaço institucional. A presente exposição no Jeu de Paume, ficou pior do que a de Hélio Oiticica, quando foi pasteurizado por Catherine David no mesmo Jeu de Paume, bem antes de tornar um espaço para a fotografia. O trabalho de documentação fotográfica de Ai Weiwei exibido alí neste momento, apesar do esforço da montagem (veja o vídeo da mostra) fica bom apenas onde ele acontece: Internet, blog, twitter, performance, etc. Ai Weiwei não é essencialmente fotógrafo, no sentido estético da fotografia. É mais um documentarista obsessivo e fecundo, escultor,”instalador”, arquiteto, curador, cineasta, crítico da cultura e da política, uma espécie de antropólogo ou sociólogo selvagem, cujas obras plásticas não se encontram na exposição. Se ainda existisse o Museu do Homem (e não esse monumento da promiscuidade exótica que é o Museu do Quai Branly, chamado de Museu do Outro, para onde o antigo Museu do Homem foi deslocado) é lá que Ai Weiwei devia ser exposto.

Mais Ai-Weiwei http://www.aiweiwei.com/

Sheila Leirner é crítica de arte, jornalista e curadora. Vive e trabalha em Paris desde 1991. Foi curadora-geral da 18ª e 19ª bienais de São Paulo.