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Postado em 26/04/2024 - 1:52
Democrático como a mesa do bar
De si para si, Salvador se organiza frente aos circuitos sudestinos com o projeto CAB - Circuito de Arte em Boteco

É necessário que muitas forças bebam de variadas fontes e desaguem em conjunto se o intuito é fortalecer o corpo de uma cidade. No caso da classe artística, é necessário não apenas que signos sejam reelaborados, mas, sobretudo, que pesquisas sejam estruturadas e comunicadas. É inerente ao circuito, exercício e prática artísticos o encontro com o mundo, com o grande ou pequeno outro. Em todos os níveis, de museus a galerias, de acervos a ateliês, de colecionadores a artistas, da rua à rua. Tendo em vista que instituições e sujeitos com poder e dinheiro espontaneamente se aglutinam, percebemos que esse ato, de se aproximar, é necessário também para artistas independentes, entre si. Sem a prática de contatar, mixar experiências e receber o que não se espera, mas de que se precisa, a classe artística pouco ou nada se desenvolve. 

No último dia 13/4, sábado, a cidade de Salvador pôde reencontrar-se. O bairro Dois de Julho, no centro da cidade, acolheu e projetou CAB – Circuito de Arte em Boteco. Democrática como uma mesa de bar, a iniciativa consiste em propor um circuito de botecos nos quais diferentes artistas apresentam seus trabalhos em diálogo direto e descontraído com o público. O Dois de Julho já é conhecido pela sua boemia e, especialmente num sábado, tem um público frequentador assíduo, além dos próprios moradores que interagem com o bairro e têm dele uma compreensão mais ampla e objetiva, real. Uma visão capaz de perceber os mecanismos “internos” e ativá-los com maior capacidade de comunicação e sucesso. Percebe-se um mérito raramente alcançado em iniciativas do gênero: uma absoluta e orgânica interação com o bairro, isto é, tanto seu público “nativo” quanto transeunte interagiram de forma orgânica, fluída, interessante e respeitosa. 

O que o CAB proporcionou foi, em síntese, uma aproximação de forma suave, inteligente e saudável. As pessoas sentavam-se, conversavam, passavam e paravam, observavam as obras, perguntavam, tomavam uma cerveja com o/a artista… O CAB conseguiu que artista e público espontaneamente dialogassem sem a intenção de fazê-lo, digo, sem forçar-se a nada. Essa é a meta da maioria dos projetos culturais brasileiros na contemporaneidade: dialogar com o público em geral e sobretudo com aquele baseado no mesmo território em que a instituição ou evento acontece. Feito raro, que requer destreza e algo que não se compra nem se adquire facilmente: pertença. Os/as artistas participantes do circuito são fundamentais no seu sucesso pois apresentaram propostas de cunho popular. E o termo “popular” aqui tem como único sentido se referir àquilo que tem a capacidade de comover o maior número possível de pessoas.

NOTAS COSMOGÔNICAS
A performer, costureira, designer de objetos, diretora de arte, escritora e artista plástica JeisiEkê de Lundu, por exemplo, mostra frases impressas em papel adesivado que despertaram a curiosidade e identificação das pessoas com a sua poética. Antes publicadas no seu Instagram como notas de reflexões corriqueiras, as frases também versam sobre sua cosmogonia, engendrada a partir da sua relação com as poéticas da sua família e do território no qual nasceu, o Vale do Jequitinhonha, na divisa de Minas Gerais com a Bahia. JeisiEkê apresentou, no Instituto Goethe de Salvador, entre fevereiro e março, o que denomina um “capítulo expositivo”, Derramei Minhas Fábulas em Seiva de Terra com Meus Olhos D’água. O conjunto de obras exposto pela artista propunha uma intensa imersão num universo regido pela criação em colaboração com a terra. O público visitante, transeunte, saía do Corredor da Vitória e pisava no chão de terra, aromas e tintas numa instalação que compunha a exposição muito bem elaborada e executada pela artista e sua equipe. A instalação era em si um território e agente de trânsito. “Memórias precisam ser acordadas”, declara a artista. Sua produção, em síntese, trata de exercitar a imaginação sobre um território e sua/nossa vida nele. Como lidar com o sertão sem recorrer a, romantizar ou negar a escassez? O que é uma produção sertaneja? “O sertão é tudo que está longe do mar. Ou seja, não é algo único”, afirma JeisiEkê de Lundu, que versa a partir desse território de diversas maneiras.

Jasi Pereira, escultora baiana do Engenho Velho da Federação, passou pela Escola de Cerâmica de Varsóvia, expôs no Instituto Tomie Ohtake (SP) e, após anos de trabalho, teve sua primeira obra exposta em Salvador, na mostra Um Defeito de Cor, assinada por Marcelo Campos com Rogério Félix como curadore assistente. Pereira propôs um diálogo total com o ambiente, apresentando uma mesa de bar e garrafas de gesso e sisal, tudo esculpido diante do público ao longo de uma performance de mais de quatro horas. O sisal, comumente utilizado para estruturar a escultura, no trabalho de Jasi Pereira torna-se parte visível e evidente da obra. O material não está no meio do processo, escondido, mas também no fim, evidente. Ciente dos desastres provocados pela extração do sisal, a artista busca outras formas de abordar a relação com a matéria de produção da obra de arte, visto que esse já é um discurso comum. Durante sua performance, as pessoas passavam, paravam, bebiam das garrafas servidas pela artista e se encantavam com o processo desmistificado e artístico diante dos seus olhos.

RESGATE SUA HISTÓRIA
Àlex Ìgbó também participou da mostra Um Defeito de Cor, no MUNCAB, a primeira participação do artista numa grande exposição depois de muitos anos sem mostrar suas obras em Salvador. Oficialmente, sua produção artística começa em 2011. Seus trabalhos mais conhecidos pela cidade são lambe-lambes nos quais mescla a formatação de cartazes de anúncios com a linguagem adotada por igrejas para comunicar mensagens afrocentradas. A série mais conhecida de Ìgbó é  JEXUS. No mais famoso dos lambes, lê-se “JEXUS diz: ‘resgate sua história’ – livro dos búzios cap 3”.  No CAB, Àlex Ìgbó apresentou ao público sua pesquisa sobre as serpentes que, na perspectiva eurocristã, representam a misoginia da nossa cultura. Atribuída à mulher, a serpente simbolizaria o perigo. Na nação Jeje, contudo, as serpentes simbolizam as Dans e representam a transformação e a dinâmica; são reconhecidas pelo poder de renovação e expansão realizado a cada troca de pele.

João Oliveira, que expôs recentemente no Instituto Goethe de Salvador, apresentou no CAB seu oráculo amoroso. Uma performance na qual as pessoas sacam um isqueiro e nele encontram uma mensagem. Foi impactante a comoção das pessoas diante da profunda eficácia do oráculo. Transeuntes, frequentadores/as, moradores/as, conectados com a arte plástica tendo-a como referência para um momento íntimo diante de uma iniciativa tão coletiva e democrática.

Também participaram do CAB: Victor Mota, Bruna Gidi, Duda Toro, Luisa Magaly, Chancko Karann, George Teles, Marcos da Mata, Xato, Patrícia Paixão, Geovana Cortês,Lia Cunha, Henrique Reis e Juliana Lama. Os botecos que acolheram o público e artistas participantes do CAB foram: Mocambinho, Bar Sem Nome, Lyder, Bar do Codorna, Bar do Nô, São Vicente, Bar do Danilo, Oxente Menina e Sankofa. 

QUEM REINVENTA O CIRCUITO?
É de se imaginar que nada disso aconteceu por acaso. A organização desse circuito há de ser fruto de alguma instituição absolutamente competente, articulada e comprometida com a cena artística do município de Salvador e do Estado da Bahia. Poderíamos imaginar se tratar de uma iniciativa pública, visto a preocupação com o acesso direto da população ao “produto cultural”. Adianto que nenhum representante do poder público, do município ou do Estado da Bahia esteve presente ou participou simbolicamente dessa iniciativa. Esse dado nos leva à terceira e mais óbvia possibilidade quanto ao organizador: a iniciativa privada.  

Seria de se esperar que uma ideia tão ousada, inteligente, convidativa, bem elaborada e bem realizada como o CAB surgisse como contrapartida das galerias e demais instituições que se instalaram em Salvador a partir do ano passado. De tão treinados/as que estamos a não termos promoção e iniciativas para a classe artística independente da cidade, também poderíamos imaginar que se trata de uma iniciativa oriunda de outra cidade que teria sua próxima edição aqui. Contudo, as instituições que aqui chegaram vindas do Sudeste ainda não demostraram se relacionar com a cena artística independente da cidade, que é a que mais carece de investimentos. Ou seja, tais instituições sudestinas ainda não demonstraram adotar medidas e ações capazes de contemplar o circuito de arte independente em Salvador. Sem essas demonstrações, suas presenças acabam por sinalizar mais do mesmo: o velho turismo extrativista. Evidentemente que abrir sedes em Salvador é uma estratégia e nisso não há problema, desde que tais instituições demonstrem uma política de apoio ao circuito de arte em Salvador e/ou na Bahia para que finalmente nossos/as artistas possam parar de precisar ir ao Sudeste para trabalhar. Ainda parece muito pouco o dinheiro que fica na cidade, porque ainda há pouco investimento nas carreiras de jovens artistas e coletivos que de fato precisam desse recurso. Refiro-me às carreiras nas quais o apoio dessas instituições poderá causar um grande impacto positivo. E esse é um ponto crucial. 

Como mero exemplo das práticas adotadas por outras instituições sudestinas na cidade, trago dados da sede do Pivô Salvador, que foi aberta ao público no dia 30 de julho do ano passado. Ou seja, há quase nove meses. Durante esse tempo foram 12 artistas residentes no Pivô Salvador, dos/das quais apenas 2 da cidade, nenhum de outra região da Bahia. Em março, o Pivô Salvador anunciou o programa FLECHA, que “é destinado ao período de residência de artistas do Cariri Cearense em outras instituições parceiras atuantes em território nacional. Na chamada aberta a esta modalidade, para residência no primeiro semestre de 2024, serão selecionados dois artistas caririenses para realizarem seu período de pesquisa e produção artística no Pivô Salvador. No segundo semestre, será a vez do Pivô Salvador abrir uma convocatória que irá contemplar artistas de Salvador e região para uma imersão no Centro Cultural do Cariri”. Aproximadamente um ano após seu pouso na cidade, o Pivô finalmente será ponte de oportunidades reais para artistas de Salvador e da Bahia, embora não no Pivô Salvador ou no Pivô São Paulo. 

Ora, será que não existem artistas na Bahia capazes de ou interessados/as em participar de uma residência artística na instituição? Será que a cidade precisa de tanto contato somente com produções e iniciativas externas e alheias? Recordo o texto que escrevi em razão da cobertura que fiz da abertura do Pivô Salvador para a celeste. Nele consta: “no entanto, há um desafio considerável a partir dessa escuta: elaborar e executar ações que, além de fomentar a produção artística em geral, se conectem verdadeiramente com as pessoas e particularidades das diversas regiões de Salvador e, mais amplamente, da Bahia. A vinda do Pivô de São Paulo a Salvador, bem como alguns símbolos presentes na sua abertura, pode causar a sensação de que o espaço venha a ser algo nos moldes paulistanos em território soteropolitano”. Na crítica da exposição Um Defeito de Cor em Salvador, também publicada aqui na celeste, indaguei: “quais são as portas abertas, as estruturas de fomento e iniciação a artistas na capital baiana e em todo o estado?”. Ininterrupta e pairante fica a mais importante pergunta: o que e quem alimenta o corpo da cidade? 

Bruna Gidi promovendo o circuito soteropolitanocom irreverência [Foto: Cortesia Circuito de Arte em Boteco - CAB, Salvador]

QUEM ALIMENTA O CORPO DA CIDADE?
Busca e Milena Ferreira, artistas visuais e moradores do Dois de Julho, em conjunto idealizaram e produziram o Circuito de Arte em Boteco (CAB). Milena afirma que “o primeiro motor, o primeiro motivo, para fazer com que o CAB aconteça é, sem dúvida, a falta de iniciativa, de espaço, de interesse que a gente tem aqui na cena artística visual de Salvador. Nós temos espaços públicos, espaços privados, tem uma movimentação inegável acontecendo aqui. Mas são movimentações e espaços restritos, que não dialogam com a cidade. São espaços que o público não acessa, que artistas não acessam, e as coisas não acontecem. Quando a gente decidiu fazer o circuito, tínhamos como pano de fundo a SP-Arte acontecendo, uma rede social bombardeando a gente ao extremo. E em Salvador, nada acontecendo. Não tinha uma movimentação, não tinha uma fala, não tinha nada que desse visibilidade e voz a nós enquanto produtores de arte. Aí eu e Busca, co-idealizador e co-produtor decidimos: vamos fazer um circuito?! Mas a gente não tem espaço, a gente tem bar, a gente tem um bairro que é extremamente cultural, um bairro que é muito lembrado pela boemia, não dá para negar, mas é importante para a história da cidade, do estado e do país. E aí falamos: vamos fazer no bar, cara! Vamos pensar essa estrutura, as pessoas. É a primeira edição e foram artistas convidados para a gente sentir um pouco como é que a coisa aconteceria. E aí falamos com os bares, para eles se sentirem também incluídos nesse movimento, porque a gente não tem nenhum tipo de apoio, né? Uma iniciativa independente, super independente. Então a gente teve que conversar com eles, apresentar a proposta para não virar um movimento independente do bairro”.

A co-idealizadora e produtora do CAB conclui que “um dos pontos principais do circuito é tornar o processo mais democrático, quebrar essa lógica do ambiente engessado da arte, do acesso às galerias que nem todo mundo acessa,  de você ir visitar a exposição ver o trabalho final com todo mundo caladinho. Ninguém troca sobre,  não conhece o artista… Então acho que esse é o ponto alto. Um outro ponto alto desse circuito é evidenciar o processo artístico. A proposta não era para trazer obras finalizadas, era para trazer o processo, um trabalho que não está finalizado. Um trabalho que o artista ainda está tentando entender os caminhos, para que aqui pudesse receber esses outros olhares, novas percepções para fora do cubo branco ou de qualquer outro espaço. A expectativa foi superada, a gente recebeu um público diverso de idade, de interesse, de localização, literalmente gente de todo canto. As trocas foram muitas e muito interessantes não só para o público mas  para os artistas, né? A gente teve um feedback muito positivo. Tudo conspirou para que acontecesse da melhor forma. O feedback dos bares também foi positivo e economicamente falando o consumo foi bom. Foi um dia feliz.  Eu brinquei que a gente tem a mesa de bar e um sonho, né? Acho que foi um dia importantíssimo para a cena aqui. Conseguimos reafirmar que a gente tem para trocar.”

A experiência proporcionada pelo Circuito de Arte em Boteco nos revela que a cidade desamparada precisou se articular e produzir efeitos verdadeira e profundamente impactantes na sua vida, no seu corpo. O que e quem alimenta o corpo da cidade? A própria. Contudo, não pode continuar assim, não podemos ser ingênuos/as. Queremos ferramentas, oportunidades, dinheiro, visibilidade, condições materiais e imateriais, subjetivas, para artistas ainda não reconhecidos/as poderem trabalhar. Queremos, sim, que as instituições sudestinas se relacionem e invistam na classe artística soteropolitana e baiana. Queremos que a parcela vulnerável e carente da classe participe dos jantares, residências, conselhos, exposições, negociações. 

A iniciativa de Milena e Busca beira, sim, a loucura e serve de constatação: ainda é preciso se descolar muito dessa difícil realidade institucional para ser artista independente em Salvador. A realidade com as demonstrações que tais artistas têm tido é uma pulsão de morte para muitos corpos, mentes e movimentos que têm no improvável a fonte de soluções inimagináveis e vitais. Há um abismo intransponível, sim, entre o que se vive no CAB, nas ruas do Dois de Julho e o que acontece em grandes feiras, exposições e galerias. Mas se fixar nessa realidade é despojar o corpo à morte. O que há para fazer é buscar a estrada que nos levará a transpor o intransponível. No livro Recursos da Esperança, Raymond Williams afirma que “ser verdadeiramente radical é tornar a esperança mais possível do que o desespero convincente”.

 

A cobertura crítico-jornalística do evento pela revista celeste contou com o apoio do Circuito de Arte em Boteco