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Hekura pata anɨ pei yokɨ nohirëpɨpou - O grande pajé protegendo os novos caminhos dos espíritos do aprendiz de pajé (2022), de Sérgio Yanomami [foto: Daniel Jabra]
Postado em 13/05/2024 - 6:24
Yanomami: A arte como luta
60a Bienal de Veneza marca 50 anos de arte e luta yanomami com a presença de Claudia Andujar, Joseca Mokahesi e André Taniki

Há 50 anos, André Taniki e outros xamãs yanomami percorriam folhas de papel em branco com canetas hidrocor pela primeira vez. Revelavam, em traços, características de suas próprias visões e experiências xamânicas, fazendo aparecer no papel imagens das outras dimensões da terra-floresta yanomami. A potência destes desenhos pulsa até os dias de hoje, já tendo circulado por diversas exposições e importantes instituições mundo afora, permitindo aproximar os napëpë (não indígenas) dos Yanomami por meio do sensível e, assim, abrir caminhos para iluminar seus pensamentos cheios de esquecimento, reflorestar imaginários. 

Em 2024, os desenhos de Taniki, trabalhos de Joseca Mokahesi e fotografias de Claudia Andujar chegam ao patamar mais alto que existe na arte contemporânea: a Bienal de Arte de Veneza. É um momento ímpar de reconhecimento da trajetória artística dos três, representando a consolidação da arte yanomami na história da arte mundial. É a celebração da força da política yanomami atrelada à estética e beleza de seu universo, uma vez que arte e luta estão imbricadas na história deste povo.

Joseca em frente ao pavilhão principal do Giardini della Biennale em Veneza, com intervenção na fachada do coletivo MAHKU [foto: Daniel Jabra, 2024]

A presença da arte yanomami na 60ª Bienal de Veneza acontece em um contexto maior de luta de um extenso coletivo de artistas indígenas pelo reconhecimento e promoção das artes indígenas. Encabeçado por Jaider Esbell a partir de Roraima há uma década, este movimento foi cunhado por Esbell como Arte Indígena Contemporânea (AIC) e tem ocupado grandes espaços no Brasil e no mundo. Fundamentado em contextos políticos, cosmológicos e estéticos próprios de cada povo, o movimento tem sido vital para pautar a luta indígena, a urgência ecológica e a decolonialidade em instituições culturais, museus e galerias. 

A arte indígena, ao sair do lugar de “arte étnica” ou “arte naïf”, a que muitas vezes foi compelida, e passar a ser reconhecida como arte contemporânea, foi o ponto de torção necessário para que finalmente os indígenas passassem a ocupar o lugar de protagonistas de suas histórias, e não mais de objeto, como há séculos haviam sido representados pela arte ocidental. A AIC traz também um novo território para a compreensão e aproximação dos pluriversos indígenas, do xamanismo e outras formas de pensar e estar no mundo, como explica Joseca Yanomami, em fala sobre a origem das imagens que aparecem em seus desenhos: “Quando eu aprendi a desenhar, eu ouvia os pajés cantando e eu gravava na minha cabeça para desenhar depois. Eu desenho os espíritos. E, quando eu sonho, estudo muito, penso muito e faço muitos desenhos do meu sonho”.

Praɨaɨ: homens dançando durante o reahu (1977), de André Taniki [foto: coleção Claudia Andujar]
MAS POR QUE ATRAVÉS DA ARTE? É NA ARTE QUE RESISTE O ÚLTIMO REDUTO PARA O “PENSAMENTO SELVAGEM” – OU, PODEMOS DIZER, SENSÍVEL – EXISTIR E SE EXPRESSAR ENTRE O “POVO DA MERCADORIA”

A ARTE COMO LUTA

Hoje vemos não apenas artistas, mas também cineastas, escritores e pensadores indígenas conquistando cada vez mais protagonismo no mundo das artes e da intelectualidade, possibilitando sua circulação em importantes espaços e contextos de produção de conhecimento e formação de opinião, em um movimento urgente de descolonização do pensamento e das artes. Mas por que através da arte? Pois talvez ela seja o último lugar possível de produção de um ambiente frutífero entre formas tão distintas de conceber o mundo. É na arte que resiste o último reduto para o “pensamento selvagem” – ou, podemos dizer, sensível – existir e se expressar entre o “povo da mercadoria”, tornando-se assim um meio possível de conexão entre esses mundos, atingindo e comunicando pela emoção estética. É dessa forma que a potência da arte indígena se dá como possibilidade de abertura para um outro tipo de diálogo e encontro, capaz de produzir transformação. Nesse sentido, a arte indígena é pensada também como estratégia política e, no caso yanomami, essa estratégia de unir arte e política está na origem da luta yanomami.

Se fossemos buscar este começo, seria por volta de 1971, quando Claudia Andujar e os Yanomami se encontram pela primeira vez. A partir de então a fotógrafa, nascida na Suíça, se envolveu profundamente com este povo, deixando-se afetar pelo novo mundo que se abria para ela. Com o tempo e a convivência, laços foram se estreitando entre Andujar e os Yanomami, e esta abertura para o outro construiu uma relação que a afastou de um olhar exotizante, típico da fotografia de povos indígenas daquela época, inaugurando uma fotografia que permitia se aproximar da cosmologia e do xamanismo yanomami. A relação estabelecida entre eles permitiu que Claudia Andujar produzisse fotografias que carregassem a potência e beleza da intimidade da vida Yanomami, tornando-os conhecidos a partir deste olhar familiar e íntimo, sendo fundamental para sensibilizar a opinião pública em momentos cruciais de ameaças e ofensivas que viveram e vivem até hoje.

A partir de 1973, a terra-floresta yanomami começou a ser cortada pela Perimetral Norte, uma estrada projetada pelo governo militar que pretendia ligar o Amapá à Colômbia. A abertura de um longo trecho da estrada acometeu diversos grupos yanomami no momento em que o contato com os não indígenas era ainda intermitente. Esse projeto desordenado empreendido pelo governo militar resultou em um caos sanitário que dizimou parte considerável da população de algumas aldeias. Alguns desses grupos, como é o caso dos Yãroamë, nunca conseguiram se recuperar e vivem ainda as mazelas dos impactos sociais causados pela abertura da estrada. É a partir do testemunho de um genocídio em curso e da forma como Claudia Andujar já estava envolvida na relação com os Yanomami que seu trabalho de luta pelos direitos dos Yanomami ganha fôlego. 

Já durante a construção da estrada, em 1974, Claudia retorna ao território Yanomami e, conhecendo os limites da representação fotográfica, leva consigo uma série de materiais de desenho para que os Yanomami possam retratar sua própria cultura e pensamento em papel. Junto ao missionário Carlo Zacquini, deram o primeiro passo para que a arte yanomami começasse a aparecer em papel, com destaque especial para representações da mitologia yanomami. Os desenhos feitos por xamãs representam a perspectiva xamânica do que é invisível aos olhos de pessoas não xamãs. 

Com o agravamento da situação sanitária dos Yanomami na região, acometidos por diversas doenças e problemas sociais desencadeados pela construção da estrada, essa primeira experiência artística precisou ser interrompida, quando a situação sanitária e social se agravou. Andujar e Zacquini passaram a se dedicar quase integralmente ao trabalho de defesa do povo yanomami e seu território contra os projetos do governo militar da época com sua ideologia integracionista.

Em 1976 os recursos para a construção da estrada acabaram, e assim as atividades foram suspensas. No fim deste ano e em 1977 Claudia retoma o trabalho com as representações feitas pelos xamãs yanomami em papel, incluindo aí os trabalhos de André Taniki. Neste mesmo período, recém-chegado à região, o antropólogo Bruce Albert seguiu incentivando a continuidade dos desenhos feitos pelos xamãs até o final da década de 1970, destacando-se nesse momento o interesse e os desenhos feitos por Taniki, que agora podem ser vistos na Bienal de Veneza.

Em 1978, a arte e a luta pró-Yanomami inauguram uma aliança. Neste ano foi publicado o livro Mitopoemas Yãnomam, com parte dos desenhos feitos pelos xamãs nos anos anteriores, e trechos traduzidos de mitos contados por eles. O Mitopoemas inaugura a produção artística yanomami no circuito da cultura ocidental, trazendo já naquela época os Yanomami como protagonistas na representação de sua cosmovisão e cultura. Neste mesmo ano, Claudia Andujar publica também o livro Yanomami e, com o fotógrafo George Love, lança Amazônia. O conjunto destes três livros ampliou a visibilidade dos Yanomami mundo afora. Neste mesmo ano, Claudia, juntamente com o missionário Carlo Zacquini e Bruce Albert criam a Comissão Pró Yanomami (CCPY). O trabalho da CCPY ganhou o apoio da força e  genialidade de Davi Kopenawa e outras lideranças yanomami e tinha como objetivo inicial garantir a demarcação de um território contínuo para os Yanomami e expulsar os 40 mil garimpeiros que o dominavam naquele período.  A criação da CCPY e a publicação destes três livros neste mesmo ano selaram o pacto entre a arte e a luta pró yanomami. A confluência destes encontros foi fundamental para denunciar o genocídio que estava em curso e gerar uma pressão nacional e internacional para que o governo brasileiro demarcasse a Terra Indígena Yanomami em 1992.

Com a terra demarcada e a desintrusão do território em curso, acompanhando o contexto de redemocratização do país e a efetivação dos direitos indígenas conquistados com a nova constituição federal, as ações de saúde e educação se tornaram prioritárias. Projetos pilotos específicos para os Yanomami nasceram na comunidade Watorikɨ, no Demini, aldeia de Davi Kopenawa, por meio de trabalhos da CCPY. Para melhorar os indicadores de saúde, era preciso formar mais Yanomami como agentes de saúde, e a alfabetização sempre foi uma aliada importante nesse processo. Esta janela de tranquilidade vivida pelos Yanomami logo após a demarcação possibilitou o florescimento das primeiras experiências de escolarização diferenciada e a demanda pela produção de materiais didáticos. A chegada de materiais escolares, e também de desenho, fomentou outra vez uma produção artística yanomami, ainda que inicialmente direcionada para as escolas. Assim foram produzidos diversos materiais e cartilhas, como o livro Yama kɨ hwërimamouwi thë ã oni: palavras escritas para nos curar, publicado em 1997 pela CCPY, um dos primeiros em língua Yanomami, feito e ilustrado por Joseca Mokahesi e Morzaniel Ɨramari, com assessoria de Bruce Albert. Joseca Mokahesi, à época, foi o primeiro professor yanomami de sua comunidade.

Enterro das cinzas durante o reahu (1977), de André Taniki [foto: coleção Claudia Andujar]
Sem título (visões do mundo dos xapiri, com suas casas, espelhos e caminhos) (1978-81), de André Taniki [foto: coleção Fondation Cartier pour l'Art Contemporain]
Sem título (1978-81), de André Taniki [foto: coleção Fondation Cartier pour l'Art Contemporain]

ENCONTRO ENTRE ARTISTAS E XAMÃS

A partir do ano 2000 a arte Yanomami teve outro marco importante: o encontro entre xamãs yanomami e artistas de diferentes países no interior da floresta. Como uma experiência intercultural de intercâmbio estético e filosófico, o encontro promovido na comunidade de Watorikɨ, casa de Davi Kopenawa, por ele, Bruce Albert e Hervé Chandès – diretor geral da Fondation Cartier pour l’Art Contemporain – colocou em relação artistas não indígenas e xamãs para que pudessem construir, através da arte, reflexões estéticas que dialogassem com o pensamento xamânico yanomami. Ou seja, a arte enquanto território comum para se pensar o mundo através de imagens, elemento central para os artistas e xamãs. 

Entre os convidados estavam Adriana Varejão, Raymond Depardon, Gary Hill, Wolfgang Staehle e Stephen Vitiello, além de outros artistas que, posteriormente, participaram da exposição L’Espirit de la Forêt, realizada pela Fondation Cartier na França, em 2003, também com obras de artistas Yanomami. A efervescência artística que tomou conta do Demini naquele momento foi fundamental para que Joseca Mokahesi pudesse se apropriar definitivamente do conceito de arte como forma de expressar sua visão do universo yanomami, visível e invisível, além de abrir janelas para que a arte yanomami despontasse no mundo da arte contemporânea. 

No ano seguinte, em 2004, é criada a Hutukara Associação Yanomami (HAY), marco fundamental para a defesa dos direitos indígenas e também da consolidação do protagonismo yanomami na luta política no âmbito nacional e internacional. Com Davi Kopenawa como presidente da associação desde sua fundação, a HAY é uma das mais atuantes organizações indígenas no Brasil e a principal representante dos povos habitantes da Terra Indígena Yanomami. Entre suas diversas iniciativas, como as de proteção territorial, manejo etnoambiental e saúde, a Hutukara também tem acompanhado a trajetória dos artistas yanomami e os projetos de exposições, reforçando sempre o viés político da circulação das artes yanomami.

Sou o espírito feminino Parahorioma, circundada por sopros de vento. O perfume das árvores roko ahi se espalha por toda parte rio abaixo, suas flores cobrem o chão. Nossa floresta dos xapiripë é toda adornada por magníficas flores azul claras (2013), de Joseca Mokahesi Yanomami [foto: Isabella Matheus]
No início, Mamoruna morava em uma bela savana. No lugar onde Mamoruna vivia não tinham outros Yanomami, ela vivia bem solitária. A casa onde ela morava não era grande, era pequena. Onde Mamoruna vivia não tinha um grande rio, somente um igarapé. Do lado de fora de sua casa tinham folhas perfumadas de puu hanapë, que eram usadas para se enfeitar. Nos primeiros tempos, Mamoruna fez surgir o urucum e assim fez surgir as pinturas corporais vermelhas. Mamoruna já possuía todas essas coisas que ela cultivou e fez surgir, como o urucum, a árvore ama ehi que as mulheres usam as folhas para se enfeitarem, as folhas perfumadas de puu hanakɨ e os cestos rasos. Mamoruna é uma grande mulher, foi ela quem fez surgir o que se usa de fato na pintura corporal. Mamuruna (2017) de Joseca Mokahesi Yanomami [foto: Isabella Matheus]
Sem título (2023), de Ricardo Yanomami [foto: Hutukara Associação Yanomami]

DA FLORESTA PARA O MUNDO

Desde a primeira exposição com os artistas yanomami, a Fondation Cartier Pour L’art Contemporain, através do encontro intelectual entre Hervé Chandès e Bruce Albert, tem sido uma importante parceira para a circulação da arte yanomami, incluindo trabalhos de Joseca, Ehuana Yaira, Taniki e Kalepi em diversas mostras, como Histoires de Voir, Show and Tell (2012), Nous Les Arbres (2019), Les Vivants (2022) e Siamo Foresta (2023). A arte yanomami também protagonizou um importante marco para a arte indígena contemporânea em 2022, com a exposição Joseca Yanomami: Nossa Terra-Floresta, a primeira individual de um artista indígena no MASP, um dos mais relevantes museus de arte contemporânea no Brasil. Todos os 93 desenhos apresentados na ocasião hoje compõem o acervo do museu. O ano seguinte, 2023, marca também a publicação do novo livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert, O Espírito da Floresta, trazendo um compilado de textos e ensaios sobre ecologia e a cosmovisão yanomami, mas com especial destaque para os encontros por meio das artes. 

A exposição A Luta Yanomami (2018) sobre o trabalho de Claudia Andujar, com curadoria de Thyago Nogueira e realizada pelo Instituto Moreira Salles em colaboração com a HAY, tem cumprido um papel importante para impulsionar a arte yanomami. Desde sua abertura, apresentou os desenhos dos xamãs Yanomami da Missão Catrimani realizados na década de 1970, junto aos trabalhos de Andujar. Após ter circulado por diversas cidades no Brasil e no exterior, em 2023 o projeto cresceu, incluindo os trabalhos da nova geração de artistas e cineastas Yanomami, como Sheroanawë Hakihiiwë, Joseca Mokahesi, Ehuana Yaira, Morzaniel Ɨramari, Aida Harika, Roseane Yariana e Edmar Tokorino, além dos desenhos históricos de Davi Kopenawa, Vital Warasi, Poraco Hɨko, André Taniki e Orlando Nakɨ Uxima. 

O lançamento da nova versão da mostra, The Yanomami Struggle, no The Shed, em Nova York, realizada em janeiro daquele ano, coincidiu com o momento em que a crise sanitária enfrentada pelos Yanomami havia ganhado visibilidade internacional. A abertura se tornou um evento histórico, pois conseguiu reunir Claudia Andujar, Joseca, Ehuana, Morzaniel, Davi Kopenawa, Bruce Albert, Carlo Zacquini e outros apoiadores da causa Yanomami em um grande encontro entre as diversas gerações da arte e luta Yanomami. De um lado, Claudia Andujar era consagrada pelo seu trabalho e trajetória, por outro, ela aos 92 anos admirava e celebrava a obra dos novos artistas Yanomami que, por sua vez, aprenderam com ela a potência de usar a arte como forma de luta. O contexto da exposição e a presença dos artistas yanomami durante a abertura possibilitaram um contato direto com notórias personalidades, como António Guterres, Secretário Geral da ONU e um dos principais líderes políticos mundiais. Davi Kopenawa e a artista Ehuana Yaira puderam cobrar diretamente Guterres por maior apoio na luta contra o garimpo e nas melhorias da assistência sanitária destinada aos Yanomami. 

Hehuriwë kɨ pë - Os espíritos das serras (2022), de Maurício Yanomami [foto: Daniel Jabra]

O DESABROCHAR DAS IMAGENS

Nessas últimas cinco décadas, a arte tem sido um território fundamental para as estratégias de defesa do povo Yanomami, tanto por meio de produções realizadas por parceiros não indígenas, como pela produção dos próprios artistas yanomami. Nesse novo tempo de ebulição das artes indígenas, novos nomes têm surgido com produções de grande potencial, como Sérgio Yanomami e Maurício Yanomami, da região do Marauiá (AM); Duarte Yanomami Payëkëiwë, da região de Maturacá (AM), Kalepi Sanöma e Yaki Sanomä, da região de Auaris (RR). A região do Demini (AM), onde vivem Joseca, Ehuana, Morzaniel e Davi Kopenawa, tem se tornado um polo de produção artística. Joseca construiu recentemente, com os recursos da venda de suas obras, uma escola para a comunidade, que ele tem chamado de “escola de arte yanomami”, influenciando a produção de jovens artistas como Frank, Katia, Ricardo e muitos outros. Para essa nova geração, a arte surge por meio da busca por novos caminhos de comunicação e produção de encontro com outros indígenas e não indígenas. Assim, os artistas voltam sua atenção para o conhecimento yanomami, o xamanismo, a mitologia, a floresta e seus sonhos. 

A arte, o xamanismo e os sonhos são fundamentados em imagens, embora o conceito de imagem (utupë) entre os Yanomami se diferencie substancialmente da imagem tal qual a compreendemos. Ainda assim, é nas fissuras proporcionadas pela linguagem da arte que se abrem espaços capazes de nos aproximar das imagens e do pensamento yanomami. Os Yanomami nos ensinam que Mari hi é o nome da árvore dos sonhos, criada por Omama – o demiurgo Yanomami. Quando as flores dessa árvore desabrocham, enviam sonhos aos Yanomami. Esta imagem evocada por Mari hi pode ser também imagem dos desenhos e pinturas Yanomami que florescem inspirados em sonhos, xamanismo e na beleza da vida na floresta, rompendo fronteiras e levando aos principais circuitos da arte mundial imagens inspiradas em mitos, sonhos e entidades xamânicas. Imagens que evocam outras formas de ser e estar no mundo, mensagens cosmopolíticas que se deslocam para lugares muito além da floresta Yanomami, abrindo brechas e possibilidades de diálogo que apenas a arte, em sua capacidade de tocar as pessoas, é capaz de alcançar. Arte que é sonho, xamanismo, floresta. Nas palavras de Kopenawa, “é flecha no coração dos brancos”.

Escola construída por Joseca Yanomami, na região do Demini (AM), Terra Indígena Yanomami [foto: Ludian Yanomami, 2024]
Filha da resistência (2023), de Duarte Yanomami Payëkëiwë [foto pelo artista]
Sem título (2023), de Kalepi Amarildo Sanöma [foto: Hutukara Associação Yanomami]

Ana Maria Machado é mestre em Antropologia Social e tem graduação em Pedagogia. Desde 2007, trabalha junto ao povo indígena Yanomami e atua junto aos povos indígenas no Brasil há mais de 20 anos. Trabalhou pela Comissão Pró Yanomami (CCPY) e Instituto Socioambiental (ISA) no programa de educação yanomami e orientou diversas pesquisas realizadas pelos Yanomami, que deu origem ao livro Xapiri thë a oni – Palavras Escritas sobre os Xamãs Yanomami, ilustrado por Joseca Mokahesi, e no longa-metragem, dirigido por Morzaniel, Urihi Haromatimapë: Curadores da Terra-Floresta e ao livro Yëpëmu thëã oni, sobre os ritos da primeira menstruação, escrito e ilustrado por Ehuana Yaira. Coordenou a ação Saberes Indígenas nas Escolas Yanomami (MEC/UFMG), que resultou na publicação de 12 livros nas línguas Yanomami sobre temas variados. Participou do Projeto Diversidade e Vitalidade das Línguas Yanomami (IPHAN/ISA) e é uma das autoras do livro Línguas Yanomami no Brasil – Diversidade e Vitalidade. É falante fluente de Yanomam e trabalhou na tradução dos filmes A Última Floresta e A Queda do Céu. Tem prestado assessoria aos artistas Ehuana Yaira e Joseca Mokahesi, colaborando no trabalho de orientação de pesquisa e tradução no Brasil e no exterior e em parceria com a Fondation Cartier pour L’art Contemporain. Como membro da Rede Pró Yanomami, atua junto à Hutukara Associação Yanomami e diversos Yanomami no apoio contínuo aos trabalhos de denúncia sobre a invasão garimpeira na Terra Indígena Yanomami e violações dos direitos humanos. Colabora com jornalistas no Brasil e no exterior e mantém parceria especial com a newsletter Sumaúma. 

Daniel Jabra é mestre em Antropologia Social e graduado em Arquitetura e Urbanismo. Desde 2016, trabalha junto ao povo Yanomami em iniciativas para a promoção e defesa de seus direitos. Atualmente, integra o Programa de Extensão em Direitos Humanos, Educação e Saúde Yanomami/Ye’kwana (UFMG) e a Ação Saberes Indígenas na Escola Yanomami (UFMG). É pesquisador da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, coordenador do Projeto Marauiá – Escola Yanomami e colabora com o Núcleo Audiovisual Xapono Yanomami – NAX. Há mais de 10 anos, atua nos campos da curadoria e produção cultural com diversos artistas indígenas e não indígenas. Foi produtor executivo da Galeria Jaider Esbell de Arte Indígena Contemporânea, entre 2021 e 2023, sendo responsável pela estruturação do acervo de Jaider Esbell e sua coleção de Arte Indígena Contemporânea. Presta assessoria para Joseca Mokahesi Yanomami e trabalha com o coletivo de artistas Yanomami em colaboração com a Hutukara Associação Yanomami.