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Postado em 02/07/2014 - 6:01
Artista bom é artista morto
Márion Strecker

Hudinilson Jr. ganhou reconhecimento internacional e sucesso no mercado depois de morto, no ano passado

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Legenda: Hudinilson em cena da fotonovela “Casos (v.2)”, criada pelo grupo 3Nós3 em 1979, e editada por Mario Ramiro em 2014 (foto: 3Nós3/Reprodução)

Hudinilson Urbano Jr. morreu em sua cama, sozinho e doente, na manhã da quarta-feira 28 de agosto de 2013. Ele tinha 56 anos. Foi submetido a uma operação no fêmur sete meses antes e vivia de cama e Martini. Era alcoólatra assumido e fumante da pesada. Deixou amarelas de nicotina as paredes abarrotadas do pequeno apartamento no bairro do Paraíso, em São Paulo, onde morava num imóvel da família, no mesmo quarteirão que os pais. Seu corpo foi encontrado horas depois pela mãe, dona Cida, que tinha a chave e a quem ele não telefonou naquela manhã, como costumava fazer às 7 horas todos os dias. O artista e parceiro Mario Ramiro, professor da USP, foi um dos primeiros a serem chamados. Encontrou “ele gelado e os pais sentadinhos, esperando a perícia”, já que Hudinilson morreu sem assistência médica.

Acabava ali a vida de um artista incômodo, a quem chamaram de “marginal”, seja lá o que isso possa significar. Hudinilson morreu sem nunca ter saído do Brasil nem jamais ter aprendido outro idioma. O sucesso comercial não chegou a tempo. “Hudi morreu duro”, conta Ramiro. “Ele vivia de promessas e esperança. Quando estava sóbrio, era muito querido. No último aniversário, convidou várias pessoas, mas não foi ninguém”, lembra. “Às vezes, passava duas semanas sem atender o telefone. Estava cada vez mais fora do ar.”

Intransigente, narcisista e de temperamento difícil, Hudinilson não viu a inauguração da maior exposição já realizada sobre sua obra, aberta em abril numa espécie de bienal que acontece na Escócia. A Glasgow International expôs 95 obras de Hudinilson, com curadoria da diretora do evento, Sarah McCrory. O plano era ir. Por três vezes a galerista Jaqueline Martins havia marcado dia e hora para ele tirar passaporte. Nas três vezes ele bebeu até cair e não compareceu ao posto da Polícia Federal. Jaqueline levou dona Cida. “Os pais estão num processo muito interessante de descoberta do filho, redimensionando quem ele era e o que fazia”, diz a galerista.

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Legenda: Recortes de jornais, revistas, bilhetes, cartas e fotografias aparecem em Cadernos de Referência, de Hudinilson (foto: Divulgação)

Arte efêmera

O filho-problema começou pichando muros, fazendo arte-postal e intervenções, no fim dos anos 1970. Interditou galerias de arte, ensacou estátuas da cidade na calada da noite e deu telefonemas aos jornais com o grupo 3Nós3. Depois avançou no xerox, do qual foi pioneiro, e realizou ao menos duas vezes a célebre performance nu sobre a copiadora, reproduzindo partes do próprio corpo que eram cuspidas em papel pela máquina e ficavam disponíveis a quem quisesse. A efemeridade era parte do conceito da obra, um valor que se perde quando o poder do dinheiro e a cobiça do colecionismo avançam sobre um artista.

Não há consenso sobre como conduzir o seu legado, embora muitos defendam a ideia de uma associação de amigos e parentes, como Mario Ramiro, a pesquisadora Maria Adelaide Pontes e o curador Márcio Harum. O tema foi debatido publicamente, em mesa-redonda no Centro Cultural São Paulo, em 6 de novembro, à qual compareceram também Ricardo Resende, Tobi Maier, Maria Olímpia Vassão, além de Vera Chaves Barcellos e João Spinelli, que depois serviria de intermediário para uma doação ao MAC-USP. Uma fundação ou associação deveria cuidar não só de catalogar a obra, como também de definir doações, empréstimos e vendas.

“Um projeto para pesquisa, catalogação e extroversão do legado”, define outro amigo, Ricardo Resende, diretor do Centro Cultural São Paulo. Para o livro sobre Hudinilson, que prepara com a pesquisadora Maria Olímpia Vassão, Resende já tem a anuência da família e uma carta de interesse da editora CosacNaify, mas espera o resultado do Rumos do Itaú Cultural 2014 para viabilizar a publicação.

Outro livro que aguarda edital é sobre o coletivo 3Nós3, integrado por Hudinilson, Rafael França (1957-1991) e Mario Ramiro. “Sou o último dos 3Nós3 ainda vivo”, diz Ramiro. “Quero fazer, em vida, aquela coisa que todo mundo tem de fazer: o levantamento de tudo. Jaqueline está vendendo trabalhos do 3Nós3. Vou abrir uma conta-poupança agora e depositar esses valores todos. Vou pagar a produção e o restante, em princípio, deve ser dividido por três. Mas eu gostaria de ter fundos para a produção desse livro (do 3Nós3). Se não sair edital, com as vendas eu quero ir pagando, por exemplo, uma primeira parte do trabalho, que é a digitalização profissional do material”, disse Ramiro, mostrando o projeto à seLecT. Entre os trabalhos do 3Nós3 estão 11 “interversões” urbanas, como eles as chamavam, e duas fotonovelas em que Hudinilson aparece travestido e Ramiro como gigolô.

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Legenda: O estúdio de Hudinilson (foto: Mario Ramiro)

A vontade do artista

A velha amiga gaúcha Vera Chaves Barcellos, também artista, reivindicou o legado de Hudinilson para sua fundação no Rio Grande do Sul, “o lugar mais distante onde Hudinilson deve ter estado”, nas palavras de Jaqueline. A favor de Vera há o testemunho de amigos que sabiam desse desejo de Hudi, embora nem todos concordem em enviar tudo para Viamão, região metropolitana de Porto Alegre. Há também uma carta manuscrita, em que ele explicita o desejo de doar tudo à fundação de Vera. Quando os familiares de Hudinilson tiveram acesso ao teor do documento proposto por Vera, transferindo amplos poderes à fundação, mudaram de ideia. O interesse de outros museus e instituições, no Brasil e no exterior, contribuiu para o recuo. “Vera foi uma segunda mãe para Hudi, mas o contrato era obsceno”, diz Mario Ramiro. “Daria a ela curadoria exclusiva e única da obra.” Ricardo Resende, do CCSP, também sabia da vontade do artista.

“Mas penso que uma parte deveria ir, outra deveria ficar em uma instituição paulista e ter uma circulação em outras entidades nacionais e internacionais. A Fundação Vera Chaves Barcellos é uma iniciativa privada. O Hud deve estar presente em coleções públicas diversas”, disse ele à seLecT.

Enquanto vários amigos defendem a ideia de uma associação e insistem na necessidade da catalogação da obra para que se evitem sumiços, falsificações e dispersões, a família empresta obras para exposições e aos poucos se desfaz de parte do acervo, seja fazendo doações, como a que fez este ano para o MAC-USP, seja autorizando vendas. Quando isso acontece, restam nas paredes do apartamento as marcas brancas e os números, testemunhando a catalogação que, diligentemente, Ramiro e Adelaide, com dois alunos dele, começaram a fazer. “Grande parte da sua obra já foi catalogada por ele mesmo”, disse Ramiro, “pelas qualidades arquivísticas que a boneca tinha.”

Uma grande preocupação de Hudinilson Jr., compartilhada por vários dos seus amigos, era de que a família empacotasse e escondesse uma parte importantíssima de sua obra, em particular os chamados Cadernos de Referência, em que ele colava recortes de jornais e revistas, bilhetes e cartas, desenhos e fotos homoeróticas, surubas e sadomasoquismo, entre outros conteúdos. São mais de cem Cadernos, em tamanhos variados.

Ricardo Resende conta que trabalhava com Hudinilson no projeto do livro e de uma grande exposição desde 2003. “O Hudinilson não só tinha conhecimento como era o seu maior sonho: um livro e uma exposição em vida. O livro está encaminhado. A exposição, não. A exposição tentamos com duas instituições no ano passado, mas o curador de uma delas não queria lidar com o artista. O outro foi lacônico na resposta, não demostrando interesse à época“, contou Resende. O CCSP, atualmente dirigido por Resende, comprou de Hudinilson, em 2008, uma hemeroteca de 5 mil itens, na qual o artista documentou manifestações de arte e cultura urbana.

A doação para o MAC-USP enfureceu vários amigos. Levado por João Spinelli, também da USP, o então curador do museu, Tadeu Chiarelli, esteve pessoalmente no apartamento de Hudinilson com a pesquisadora Helouise Costa, no começo deste ano. Saíram com 31 obras em sacos plásticos, para desgosto do curador Márcio Harum, que registrou a cena com um celular, enquanto dona Cida assentia com a doação. “Foi a cena mais barata que já vi no mundo das artes”, disse Harum à seLecT.

Ramiro conta que ficou estupefato com a atitude dos colegas da USP. Contou que Hudinilson não era a favor de doar trabalhos para instituições. Ricardo Resende qualifica a doação ao MAC-USP como “um golpe enquanto pensávamos a fundação ou o Projeto Hud”. “Foi oportunista, já que foi esse o museu que não se interessou por uma mostra do artista ainda em vida”, disse Resende.

“Nossa visita foi realizada com a mãe de Hudinilson, que nos recebeu no ateliê de seu filho com hora marcada”, defende-se Chiarelli. “Ela nos acompanhou durante toda a visita, esclarecendo dúvidas, sugerindo obras para doação”, disse. “Enquanto escolhíamos as obras para o museu, um rapaz surgiu dizendo que estava sendo feito o inventário da obra de Hudinilson. Prontamente dissemos a ele que poderia inventariar as obras que estávamos recolhendo”, diz Tadeu Chiarelli, mencionando outros 26 trabalhos do artista que estão no acervo do MAC-USP.

Da doação vapt-vupt resultou uma “exposição-solo” improvisada, aberta no final da gestão de Chiarelli à frente do museu. Nessa exposição, os trabalhos são todos light, há diversas obras do início da carreira, quando o corpo feminino aparecia. “Como a intenção era homenageá-lo e tornar seu nome e sua produção mais conhecidos, optamos por não mostrar as obras mais fortes que temos no acervo”, comentou Chiarelli. “Mostrar obras mais fortes obrigaria interditar a exposição para menores desacompanhados”, argumentou.

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Legenda: A galerista Jaqueline Martins folheia um Caderno de Referência (foto: Márion Strecker)

Fenômeno de mercado

Meses antes de morrer, em 2013, Hudinilson começou a ser exposto em feiras de arte, como a SP-Arte e a Arco, em Madri. No fim do ano, foi homenageado no Centro Cultural São Paulo. Este ano, além da individual na Galeria Jaqueline Martins, em São Paulo, curada por Márcio Harum, e uma exposição na Galería García, em Madri, Hudinilson está numa coletiva no CCSP, em duas coletivas no MAC Nova Sede, no Ibirapuera, além da “mostra-solo” já mencionada. A partir de setembro, Hudinilson estará na Bienal de São Paulo e na Bienal de Taipé, na China, com curadoria de Nicolas Bourriaud. Hudinilson estará ainda na Frieze, em Londres, em outubro. Sua galerista negocia exposição com uma instituição importante em Nova York, além de obras para diversas outras coleções públicas.

Se, em vida, ele dependia do empenho, da monitoração e dos favores dos amigos, depois de morto Hudinilson virou um fenômeno do mercado de arte. Sua individual na galeria paulista este ano praticamente se esgotou, enquanto na exposição anterior, em 2012, vendeu apenas dois trabalhos. Obras que custavam R$ 3,5 mil valem agora R$ 15 mil, conta Jaqueline Martins, que começou a trabalhar com ele no fim de 2011 e remunerava o artista em prestações, para evitar que ele gastasse tudo com bebida. “Ele me testava o tempo todo. Quando eu chegava, ele não desligava o filme pornô. O máximo que eu pedia era para abaixar o som”, conta ela. Numa das primeiras visitas, ele abriu a porta, avisando: “Você sabe que eu não gosto de mulheres, não sabe?”

Atualmente, a casa de Hudi passa por certa higienização. Seu leito de morte foi retirado e muitas das obras já deixaram as paredes, restando no lugar as marcas brancas e os números da catalogação iniciada por Ramiro e Adelaide. “Agora, somos nós que assumimos a condição de porta-vozes da obra”, disse Ramiro. “Olha, olha lá”, exclama ele, que estava se recuperando de um acidente doméstico quando recebeu seLecT em sua casa. “São flores de Narciso”, diz apontando uma obra de Hudinilson na parede e contando que na pedra tumular do amigo estará escrito Eco-Narciso. “Narciso, que definha contemplando a própria imagem. Eco, essa voz que vai se propagando, e fica sempre aquele chamamento”, diz ele. “Por ser fofoqueiro como ele era, e Hudinilson era fofoqueiro pra cacete, toma lá! Quem mandou se meter com os deuses?”

*Reportagem publicada originalmente na edição #18