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Postado em 02/07/2015 - 2:00
As duas vidas de Mário de Andrade
Gustavo Fioratti

Figura central no modernismo brasileiro, Mário de Andrade (1893-1945) também viveu a frustração de ter se sentido subvalorizado como intelectual na maturidade.

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Legenda: Escritor Mário de Andrade (1893-1945). Créditos: Arquivo IEB/Divulgação.

Essa é uma das conclusões a que chega Eduardo Jardim, autor da biografia Eu Sou Trezentos – Mário de Andrade, Vida e Obra, lançada agora pela Edições de Janeiro (256 págs., R$ 49,90).

Ao mesmo tempo que expõe o êxito do artista e o consagra como pensador fundamental do século 20, o livro narra questões pessoais mal resolvidas e a frustração de não ter materializado, por completo, um projeto que traçava pontes entre a arte e a política.

O livro chega às livrarias nos 70 anos da morte do escritor, que será homenageado, entre os dias 1o e 5 de julho, pela Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). À seLecT, Jardim falou sobre sobre seu perfil múltiplo.

Como foi a pesquisa para o livro e que importância as correspondências tiveram?

Meu interesse é antigo, pelo modernismo e pelo Mário de Andrade. Li toda a obra dele, que está em sua maior parte publicada, a bibliografia que existe e as correspondências. Mário escreveu carta para caramba. Mais de 1.500, muita coisa já publicada.

Ele tinha o hábito de falar sobre seu íntimo, seus sentimentos?

Com amigos ele é mais afetivo. Algumas cartas são de trabalho, outras adotam um tom professoral. Ele tinha um tom de mestre com os mais jovens, mesmo com Drummond, falava de professor para aluno. Com Manuel Bandeira, grande amigo, era o mais íntimo possível. Mas há uma coisa engraçada, a intimidade só parecia ocorrer em cartas. Quando estavam juntos, Manuel estranhava, achava Mário reservado. Dentro de casa e nas rodas de conversas, era expansivo, mas dizia-se dotado de “bivitalidade”, considerava uma vida de cima e outra de baixo. A de cima, intelectual. A de baixo, impulsiva, erótica.

Há algum detalhe na obra que exemplifique essa personalidade?

Tem o verso de um poema que diz “eu sou trezentos”, muito significativo. Do ponto de vista da literatura, ele não era só um escritor, tinha atuação pública. Há o fato de que a vida dele teve um momento de máxima realização, mas, a partir de um 1938, houve uma frustração. No final da vida, Mário vive um drama, como se fosse um fracasso. Em uma conferencia de 1942, ele diz: “Meu passado não é meu companheiro”. Há este desencontro de momentos na vida dele.

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Legenda: Biógrafo de Mário de Andrade, Eduardo Jardim. Créditos: Cris Reis.

E os antigos amigos?

Não sei se o evitaram, mas os velhos amigos não ficaram por perto. No Rio, ao mesmo tempo, descobre o samba, faz planos de escrever um livro com Vinicius [de Moraes]. Teve um lado de boemia que deve ter sido legal. Depois dos 40, volta a São Paulo, mas fica mal até a morte. É quase um suicídio. Ele tem doenças típicas de quem se deprime. Morre aos 51 anos, mas com uma aparência de ser muito mais velho.

É importante saber que ele era homossexual para compreender sua obra?

Não pelo fato de ele ser homossexual, mas pelo fato de que havia um lance sexual. Dizia-se dotado de pansexualidade. Ao mesmo tempo, era um cara que se censurava, muito autocrítico. Ele leva o tema da homossexualidade para a obra, há o conto Frederico Paciência, por exemplo, em que dois rapazes desenvolvem algo amoroso mas não conseguem assumir a história. Dá para pegar a questão pela obra, mas não há documento falando exatamente sobre a vida pessoal. Acho que os amigos, as pessoas que tomavam conta da obra do Mário, criaram um certo tabu em torno da questão. Os jornalistas começaram a ficar excitados, militantes criaram uma pressão que reforçou o próprio tabu. Deveríamos tratar a questão de forma mais natural.

Ele se deixa abater apenas por questões profissionais?

Tem uma atuação de escritor e intelectual nos anos 1920, depois tem o período em que escreve Macunaíma, em que faz o retrato do Brasil e levanta a discussão de que a arte deveria ter uma dimensão social. Tinha o propósito de concretizar esse projeto como uma ação política, como se sua vocação intelectual se justificasse ali. Isso tem a ver com a geração modernista, mas acho que Mário levou mais a sério. No momento em que não toma mais nenhum lugar importante, quando vem para o Rio, onde vai ser professor em uma universidade que acaba fechada, ele sente que seu lado intelectual foi posto em xeque. Mas há um contextos desfavorável também, ele estava ligado com pessoas que foram perseguidas, ficou muito mal com a invasão dos alemães em Paris, que era uma referência cultural. No Rio, ficou isolado da mãe, figura importante para ele.

Ele teve algum grande amor então?

Não sei quem, mas que ele amou, ele amou. Uma coisa curiosa. Eu estava falando um dia aqui na UFRJ e o antropólogo Peter Fry fez o seguinte comentário: “Eu percebia a coisa da homossexualidade do Mário porque ele tinha uma concepção de cultura e de arte que leva em conta a ligação da produção erudita com a popular”. Fry achou que a experiência dos gays no período tinha a ver com a coisa de um homem de uma erudição buscar um cara popular, e isso era parte da experiência homossexual da geração. Não é curioso?