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Nada Quase Nada - Paço das Artes (Foto: Ana Alexandrino)
Postado em 11/04/2016 - 3:18
Dias & Riedweg: o ateliê é a rua, a obra é a vida
Como uma dupla de artistas do mundo se radicou no Rio de Janeiro e tirou poesia, filosofia e lições de vida dos dramas, da desigualdade, da marginalidade e da violência
Márion Strecker

Mauricio Dias e Walter Riedweg estão otimistas com o Rio, onde vivem desde 2000, sabe-se lá até quando. Dias é carioca e Riedweg é suíço. Eles se conheceram na Europa, foram um casal por dez anos, se separaram, mas continuam a morar e trabalhar juntos, agora numa grande casa em Santa Teresa, no Centro do Rio. A propriedade inclui o ateliê, a pousada em que recebem hóspedes e a família expandida que formaram desde que, há sete anos, Mauricio Dias adotou (ou foi adotado por) duas crianças que conheceu na Favela de Santa Marta, que na época tinham 10 anos. As crianças agora estão com 17. Os dois trabalham juntos há 22 anos. Suas obras estiveram nas bienais de Veneza, de São Paulo e na Documenta de Kassel, e também fazem parte de acervos de instituições importantes no Brasil, na Europa e nas Américas. A bibliografia sobre a dupla é extensa e envolve a atenção de críticos como Mary Jane Jacob, Catherine David, Paulo Herkenhoff e Guy Brett, entre muitos outros. Seus trabalhos são projetos de longo prazo e incluem a participação intensa de outras pessoas, como imigrantes, porteiros, travestis, crianças de rua, pacientes psiquiátricos, presidiários ou de outras pessoas que eles vão conhecendo no percurso. Riedweg é músico e veio também do teatro. Dias começou com gravura e pintura. Juntos eles criam performances, desenvolvem laboratórios e filmam, antes de editar as imagens e preparar suas instalações, que são expostas em museus, galerias ou outros lugares. Nesta entrevista, eles falam de filosofia, da conceituação do trabalho, da relação com o Rio, da evolução da cidade e da vida que vivem.

Caminhão de Mudança/Moving truck - D&R - Inst Kunst Museum, Luzern (Foto: Atelier Dias e Riedweg)
Caminhão de Mudança/Moving truck – D&R – Inst Kunst Museum, Luzern (Foto: Atelier Dias e Riedweg)

Mauricio Dias: Em 1994, a gente veio para o Rio trabalhar pela primeira vez em Devotionalia. Coletamos 1.286 cópias de cera, como se fosse tradição de ex-votos. Essa era a época da Chacina da Candelária (oito jovens sem-teto foram executados por policiais militares), da Chacina de Vigário Geral (21 moradores da favela também foram mortos por policiais militares), em que o Rio de Janeiro estava em plena guerra civil. Essas crianças que viviam na rua, e eram muitas, mais ainda do que hoje, a gente propunha que elas mesmas fizessem cópias dos pés e das mãos. A gente ia com um carrinho velho cheio de argila e gesso, cera de parafina e um fogareiro e ficava estacionado duas semanas em cada lugar, debaixo de viaduto, em favelas, em praças. E gravava essas conversas em vídeo. Esse projeto durou um ano e foi uma libertação. Na verdade, a gente queria ficar na rua. Até então, nunca tínhamos pego uma câmera.

Vocês filmam com câmeras fotográficas?
MD: Sim. A gente faz tudo: filma, edita, conceitua. Cada trabalho tem um jeito de edição diferente, que já é determinado na maneira de filmar. Não fazemos vídeo documentário.
Walter Riedweg: Tivemos aprendizagens paralelas. Na Basileia (Suíça) havia um coletivo de vídeo chamado VIA. Eu fiz parte desse coletivo. Pipilotti Rist fazia parte desse coletivo. Ele ainda existe. Nessa época não havia esses equipamentos tão facilmente. Lá se formaram as primeiras classes de videoarte.
MD: A gente só mudou de vez para o Rio em 2000. Recebíamos todo tipo de convite: fazer projeto na fronteira do México, residência na África do Sul, no outro mês era Veneza, sempre envolvendo pessoas locais, questões locais. Em 2002, fizemos uma primeira individual com trabalhos de diversos lugares, e pela primeira vez as pessoas viram que esses trabalhos eram, sim, relacionados. As maiores influências vêm da época em que a gente trabalhava em salas de aula na Suíça e éramos literalmente postos para apagar incêndios de professores que entravam em curtos-circuitos com turmas que não tinham uma língua comum.

Devotionalia
Mãos e pés de cera que integram a obra Devotionalia (Foto: Atelier Dias e Riedweg)

Como as pessoas se relacionam com o trabalho de que participam? Sentem-se coautoras?
MD: Depende. Quando o trabalho termina, os vínculos se guardam com algumas pessoas. De vez em quando encontramos alguém de Devotionalia. Teve uma situação engraçada: um menino uma vez foi assaltar o Walter, lembrou e falou: “Ô, tio!” Ou então a gente vai num Bob’s da vida e encontra um deles. Eu adotei duas crianças que saíram de um trabalho e vivem comigo há sete anos. Não tem regra. A gente não põe regra. Isso é a vida. Seria uma mentira querer moralizar isso.
WR: A gente faz um trabalho que se baseia nesse conflito, nessa tensão, na colaboração com os participantes. Seria possível fazer sem eles? Para eles seria possível fazer sem a gente? Então se cria algo além da gente e além deles também.

Por que decidiram morar no Rio?
MD: Em Devotionalia a gente passou nove meses indo para comunidades no Rio, lugares onde nem eu tinha ido. Para mim foi um período de gestação. Como uma gravidez do Brasil. Eu estava há 13 anos fora. Quando saí, era muito difícil ser artista aqui. Era uma coisa da elite. Vim de classe média baixa, minha mãe era professora, meu pai era agente imobiliário, classe média da zona norte. Eu morava longe da arte e a arte morava longe de mim. Ir para a Europa foi um atalho para virar artista. E voltar para cá foi uma descoberta totalmente inesperada. A gente foi vindo pouco a pouco, à medida que foram aparecendo trabalhos aqui. As entradas que a gente teve no Brasil foram muito fortes: Devotionalia no MAM (1995-1996) e Porteiros na Bienal de São Paulo (1998). A gente estava cansado de viver numa mala.
WR: Durante quatro anos administramos três apartamentos alugados e sublocados em três continentes: Basileia, Nova York e Rio. A decisão foi de tentar montar uma base no Rio. Devotionalia foi uma experiência muito intensa como porta de entrada para esta cidade. Eu tenho uma segurança de andar por aqui que veio desse projeto. Aqui me sinto, sim, em casa.

Como é essa história de que seus filhos saíram de um trabalho?
MD: O trabalho que a gente fez para a Documenta (2007) chama Funk Staden, que reconta a história de Hans Staden, que nasceu em Kassel. Ele naufragou na costa brasileira, foi capturado e solto pelos tupinambás porque não falava português. De volta à Europa, escreveu um livro que foi um dos primeiros best sellers. A Documenta colocou Funk Staden ao lado de pinturas do século 15, portanto, antes da época dos Descobrimentos. Essa coisa da floresta, Adão e Eva expulsos do paraíso. O paraíso era o trópico. O inferno, ao mesmo tempo, era o trópico, porque o selvagem que comia carne humana era o demônio. Nessa época do funk comendo solto aqui no Rio, a gente queria filmar. Mas apontar uma câmera nesses bailes era como apontar uma arma, porque eram financiados por traficantes. (…) A gente refez as xilogravuras do livro do Hans Staden em tableau vivant numa laje do Morro Dona Marta (onde fica a Favela Santa Marta). Escolhemos um capítulo que conta o ritual do festim antropofágico. A gente vê os funkeiros como se fossem os tupinambás. Eles atacam bonecas infláveis de sex shop, esse modelo do branco. O grito do tupinambá é revivido na cultura funk.

Funk Staden (2007) reencena no Morro Santa Marta episódios de texto do navegador alemão Hans Staden. Ao aproximar o universo do funk à descrição de rituais de canibalismo dos índios tupinambás, a obra denuncia preconceito contra o movimento carioca (Foto: Atelier Dias e Riedweg)
Funk Staden (2007) reencena no Morro Santa Marta episódios de texto do navegador alemão Hans Staden. Ao aproximar o universo do funk à descrição de rituais de canibalismo dos índios tupinambás, a obra denuncia preconceito contra o movimento carioca (Foto: Atelier Dias e Riedweg)

Assim conheceram os meninos?
MD: Nesse contexto eu conheci a família dos meninos. Eles eram muito pequenos, tinham uns 5 anos. Alguns anos depois, quando estávamos gravando Pequenas Histórias de Modéstia e Dúvida, o Rio estava vivendo uma grande transformação, com o processo de pacificação nas favelas. Muita gente é muito crítica desse processo de pacificação, dizendo que é um processo de redominação, de constrangimento. Mas quem viveu o Rio de Janeiro 40 anos sem isso, viu que esse processo de pacificação é, sim, um caminho. A gente chegou a subir o Morro do Alemão na época de Devotionalia e o caminho para subir era por onde o cocô descia, não tinha outro caminho. Hoje em dia, você tem teleférico, estradas, banco, cinema. Esse é um processo muito longo. Não é só um make-up da cidade para os Jogos Olímpicos.
WR: A matança de jovens masculinos no Rio foi pior que o índice de guerras que houve no mundo. Isso diminuiu drasticamente. Na Baixada ainda é assim e ninguém fala nada, mas no Centro da cidade já houve um progresso muito grande.

Como estão vendo a cidade?
MD
: Acho que o Museu do Amanhã é um ponto turístico incrível. Mas, como artista, coloco questões práticas. Se a gente tem problema para manter o MAM, como vamos manter o Museu do Amanhã com aquela arquitetura impossível de ser mantida? É caríssimo. É um museu que não tem conteúdo. Em matéria de contexto, acho muito fraco. Se fosse concebido para ser um espaço de feira, seria mais feliz. Agora, a carcaça acho legal. Parece um osso de baleia.
WR: A implosão da Perimetral foi muito importante, porque abriu a Praça XV, o Porto, a Praça Mauá. Acho fantástico o fato de terem recuperado uma visão que não existia mais. E com a pacificação do Alemão e agora da Maré, lentamente, seguindo pela Baixada, está se formando uma nova visão da própria cidade. Espero que essa nova juventude que vem daí, que não tem ambição de morar na zona sul, tenha ambição de fazer algo lá, que transforme. O Parque Madureira, por exemplo.
MD: Você já foi no Parque Madureira? É um parque longilíneo maior que o Aterro do Flamengo. Esse povo que pegava trem para andar de skate agora tem a maior pista de skate do Rio de Janeiro. Tem um monte de cachoeiras, um piscinão. Fui no fim de semana antes do Natal e fiquei passado com o que vi. O parque estava cheio, rolando samba, as pessoas atravessavam a rua levando seu isopor, um barato!
WR: Meu parceiro tem um grupo de dança em Nilópolis e eles se qualificaram para ir para um festival na Argentina. Como pagar as passagens? Esses jovens se plantaram no Parque Madureira durante dois meses, todo fim de semana, passando o chapéu. Levantaram R$ 4 mil. Para eles, o lugar de fazer isso era lá, e não em Copacabana. Para mim, isso é uma transformação.

Crime Master - Still 11 - Dias & Riedweg
Crime Master – Still 11 – Dias & Riedweg

Fiquei com a impressão de que você não acabou de contar a história das crianças.
MD
: Entre 2008 e 2010, fizemos vários trabalhos nesse contexto do funk e fez as Malas para Marcel. São 12 malas. A gente as colocava no espaço público, deixava as pessoas levarem e filmava atrás. Essas malas nos levaram de novo para o Dona Marta. Depois começamos a frequentar as favelas em pleno processo de pacificação e foi aí que conhecemos o Vitor, que estava com 10 anos, e chegou em frente à câmera e falou para mim: “Eu vou te adotar”. E me adotou. Adotou a gente, o trabalho, a casa, e aos poucos ele veio morar aqui. Ele tem uma irmã gêmea, que é a Vitória. E a mãe queria que eles viessem embora e aí eles vieram e estão aí. O Vitor está no Sesi, começando a fazer Comunicação Visual. A Vitória vai fazer Escola Normal.
WR: Ele tinha uma condição difícil em casa, a família não tinha mais sustento, uma situação desesperadora.
MD: O Vitor tinha 10 anos e ele é um conversador, um sedutor. Acho que ele viu na gente uma possibilidade. Ele tem uma coisa forte com desenho, com imagem, com teatro, é um contador de piadas nato. Era uma coisa estranha e ele gosta de coisas estranhas, como todo mundo. Como Oswald de Andrade: “Quero tudo aquilo que não me pertence, tudo aquilo que eu não sou”. Outras vezes que a gente foi filmar, ele estava lá de novo, depois descobriu meu telefone, começou a me ligar. Um dia ele disse: “Quando é que você vem me buscar?” Aí eu falei: eu vou te levar pra passear. Cheguei lá e ele estava de banho tomado, de tênis, e falou: “Estou pronto e essa é a Vitória, minha irmã gêmea, ela também vai te adotar”. E aí começou. Foi que nem uma história de amor básica. Tudo o que eu fazia eu achava muito melhor com eles. Se eu fosse ao cinema, à praia, a um restaurante, tudo era mais legal com eles. E eu fiquei apaixonado, e eles ficaram apaixonados e essa paixão virou uma família.
WR: Eles transformaram toda a vida nessa casa, transformaram a nossa relação com o entorno da casa, eu conheço todos os jovens de Santa Teresa. Eles nos presentearam com uma vida normal.
MD: Pequenas Histórias de Modéstia e Dúvida foi feito nos lugares onde eles nos levaram nessa época que estavam entrando na nossa vida. Sábado à noite no parquinho da favela era um programa com Vitor e Vitória. A cidade fora dela é o anoitecer da birosca de Santa Marta.

Agora vocês têm trabalhado com pacientes psiquiátricos, envolvendo encenação e riscos.
MD: Em 2012, recebemos um convite da Coleção Prinzhorn, que é um museu de art brut na Alemanha, que tem a famosa coleção de pacientes psiquiátricos que Hitler colocou com os modernistas para fazer a exposição da Arte Degenerada, em Munique. Esse museu foi fundado por um psiquiatra, precursor de Nise da Silveira, que começou a inserir essas questões da arte como possibilidade terapêutica. Quando fizeram 150 anos, eles pediram a vários artistas contemporâneos trabalhos que refletissem a coleção. O que nos chamou a atenção foi a representação da indumentária, muito exuberante. Traziam os arquétipos da farda militar, roupa de mãe, viúva, sacerdotes, mas de forma muito burlesca. Refizemos as roupas com carnavalescos e propôs fazer um vídeo com pacientes internados em um hospício aqui no Rio, o Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (Ipub), atualmente UFRJ. Achamos em um dos pátios do hospício um teatro do século 19, lindo, com palco italiano, que se chamava Corpo Santo. Estava interditado, repleto de latrinas, uma pirâmide de escombros. Usamos durante meses para fazer ioga, exercícios de teatro. Um belo dia, quando os loucos entraram lá, encontraram uma penteadeira e um espelho. Em volta, 20 dessas roupas exuberantes. Não precisamos dizer nada. Cada um pegou uma roupa. A gente gravava, eles gravavam e tudo era aplaudido por eles mesmos. Usamos o vídeo como se fosse um cabaré de sketches. Na única externa, eles estão com as roupas e entram no mar. Virou uma coisa operística e profunda, comovente. O vínculo com essa instituição não se desfez.