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A instalação Oásis (2009), de Bruno Faria, instaura um espaço público na laje do Centro Cultural São Paulo (Fotos: Cortesia do artista)
Postado em 22/06/2016 - 6:54
Bruno Faria: Artista ambulante
Comércio popular, turismo, indústria cultural, serviços de informação pública e processos de mediação pautam performances e instalações do artista pernambucano
Paula Alzugaray

“Fui no Itororó, beber água não achei…” Como toda peça do cancioneiro popular, essa cantiga de roda tem sua origem desconhecida. Poderia dizer respeito a um cais na Bahia ou a uma fonte da antiga capitania do fundador da Vila de Santos, o Brás Cubas. Pode também se referir ao aterro do Ribeirão do Itororó, que antes corria solto onde hoje está situada a Avenida 23 de Maio, em São Paulo. Canalizado, ele beira trechos da avenida ou percorre caminhos subterrâneos, até desaguar no Ribeirão Anhangabaú. Foi vislumbrando os tempos de saúde e liberdade do Itororó que o artista Bruno Faria criou a intervenção Oásis (2009), na cobertura do edifício do Centro Cultural São Paulo (CCSP), que margeia a 23 de Maio. Equiparando-se ao comerciante informal que loteia as praias com um arsenal de cadeiras e barracas de aluguel, o artista criou uma praia urbana. Com vista para os engarrafamentos monumentais de uma das principais artérias da cidade, o espaço gramado da cobertura é literalmente um oásis, em relação à aridez cimentada do entorno. Não tinha uso público até ser ocupado pelo projeto e agora faz parte da vida dos moradores da região. Complementar ao Oásis, a intervenção sonora Miragem situava na rampa de acesso do CCSP uma torre com autofalante transmitindo informações para banhistas de uma praia hipotética. Cúmplices, os dois trabalhos conectavam-se na construção de uma heterotopia, no sentido foucaultiano de promover o encontro improvável entre dois espaços geográfica ou temporalmente diversos. Em Miragem, o ambiente da Avenida Vergueiro foi inundado com a sonoridade de um lugar imaginário. Em sentido inverso, em Oásis o artista dispôs-se a uma “escuta do entorno”, como coloca a crítica Gabriela Motta em texto de apresentação do trabalho.

Na intervenção Texcoco Soundtrack (2012), o artista perambula pela Cidade do México como um vendedor de CDs piratas, difundindo o som de carros em alta circulação
Na intervenção Texcoco Soundtrack (2012), o artista perambula pela Cidade do México como um vendedor de CDs piratas, difundindo o som de carros em alta circulação

A retórica do comerciante ambulante também pautou a intervenção sonora Texcoco Soundtrack (2012), colocada em campo na Cidade do México. Nessa ação, Bruno Faria circulou por linhas de metrô, camelódromos e áreas de comércio informal da cidade, como o Centro Histórico, Coyoacán e Xochimilco, levando uma mochila semelhante às carregadas por vendedores locais de CDs piratas, com caixas de som tocando música a todo volume. O artista perambulou pela cidade difundindo uma gravação do som de carros da Avenida Revolución – uma equivalente da Avenida 23 de Maio na Cidade do México. “Realizei um CD sem nenhuma edição, com apenas uma faixa, produzindo um som muito semelhante ao de água corrente”, diz Bruno Faria à seLecT. Com a intervenção, ele buscava chamar atenção – da população ou do público da arte, que depois viria a ter acesso ao trabalho – para o desaparecimento do Lago Texcoco, parcialmente aterrado para dar lugar à cidade. Vestido a caráter como um comerciante local, abordava os transeuntes com um arsenal de frases surrealistas: “Olá, olá, Texcoco Soundtrack, leve para casa um resquício do lago Texcoco”; “10 pesos por uma lembrança do Lago Texcoco’; “Leve de presente para os amigos”. Embora Texcoco Soundtrack seja um site-specific, pensado para o contexto histórico e geográfico mexicano, o trabalho se alinha ao Oásis, ao atentar para os processos de aterramento de lagos e rios que marcaram a construção da maioria das capitais latino-americanas.

A instalação Paisagem 97,5 FM (2013) usa como suporte o rádio, ícone da comunicação de massa
A instalação Paisagem 97,5 FM (2013) usa como suporte o rádio, ícone da comunicação de massa

A lembrança de paisagens remotas é um dispositivo recorrente na obra de Faria. Em Paisagem 97,5 FM (2013), o que se produz é o deslocamento simbólico de uma cidade, por meio da sonoridade de sua emissora de rádio mais popular. O trabalho integrou a exposição coletiva Metrô de Superfície, com curadoria de Bitú Cassundé e Clarissa Diniz, também no CCSP, em 2013. Consistia em três rádios de madeira transmitindo ao vivo o som da Rádio Recife. Mais uma vez instaladas em cantos imprevistos (como o alto-falante de Miragem), essas caixas de som tinham o discreto poder de transportar o incauto paulistano ao coração da capital pernambucana. A façanha fazia-se possível por meio de seus campeões de audiência: programas de paquera, hits populares, ritmos Calypso e programas policiais com informações atualizadas sobre os assaltos e homicídios do dia.

Inventário Tropical (2013) é uma instalação que usa como suporte outro ícone da comunicação de massa: o carro de som
Inventário Tropical (2013) é uma instalação que usa como suporte outro ícone da comunicação de massa: o carro de som

O carro de som, outro ícone da comunicação popular, foi suporte e veículo da performance Inventário Tropical (2013), realizada em torno da Praça de Casa Forte, no Recife. O projeto foi mais uma investida crítica de Bruno Faria em fazer frente aos problemas das cidades brasileiras. O trabalho denuncia um caso dissimulado de negligência de administração pública em prol de facilitação para a especulação imobiliária. “No ano de 1935, Roberto Burle Marx fez o projeto de reforma do jardim da Casaforte, o primeiro jardim público de sua carreira no Brasil”, anuncia o artista em alto-falantes, desde o interior de um vistoso carro de som. “A obra considerou a retirada do monumento (em homenagem aos heróis da insurreição pernambucana), considerando seu pouco valor artístico e ainda de gosto duvidoso”, continuava o orador, lendo um texto apropriado do inventário do processo de tombamento da praça pelo Iphan. Ainda segundo o texto, declamado em voz pausada e em tom didático, Burle Marx teria se inspirado no londrino Kew Gardens, criando jardins aquáticos de teor educativo.

O som e a escuta
A história das sucessivas descaracterizações do antigo Parque de Casa Forte é narrada em 20 minutos de performance sonora e motorizada. A ação foi registrada em vídeo que hoje constitui a obra Inventário Tropical. Este alterna imagens do carro em movimento e da pacata e inabalável vida dos usuários da praça. Articula-se a esse trabalho a instalação site-specific Manual Para Uma Nova Vista (2013), um espaço misto de estufa e museu, contendo um levantamento de imagens e textos sobre a praça e exemplares de mudas de plantas que pertenciam ao projeto original de Burle Marx, cedidas pelo Jardim Botânico do Recife.

A espetacularização da tragédia é objeto da intervenção Museo 1985 (2013), realizada nos escombros de uma casa destruída por terremoto, na Cidade do México
A espetacularização da tragédia é objeto da intervenção Museo 1985 (2013), realizada nos escombros de uma casa destruída por terremoto, na Cidade do México

Os processos de institucionalização da vida – o embate entre o caos da realidade e a ordem da instituição – ganham a atenção do artista em uma série de trabalhos que têm o museu como objeto de interesse. Entre eles está Museo 1985 (2012), intervenção urbana realizada diante dos escombros de um edifício desmoronado no terremoto que destruiu parte da Cidade do México, em 1985.  “Toda a cidade foi abalada, mas as áreas mais afetadas foram aquelas situadas sobre o aterramento do Lago Texcoco”, enfatiza o artista. O trabalho consistiu em montar uma lojinha de souvenires de um museu fictício, colocando à venda camisetas, sacolas, lápis, isqueiros e sedimentos de escombros dos edifícios colapsados.

Letreiro Objetivo (2014), sobre o antigo edifício da Associação da Imprensa de Pernambuco, é um monumento do esquecimento e do abandono de projetos culturais
Letreiro Objetivo (2014), sobre o antigo edifício da Associação da Imprensa de Pernambuco, é um monumento do esquecimento e do abandono de projetos culturais

Com essa arqueologia da tragédia realizada com indisfarçável humor, o artista chama a atenção para a negligência das construções que levaram ao colapso das estruturas do bairro Colônia Roma, em México D.F. Trata-se de fazer da intervenção artística um mecanismo de explicitação daquilo que ficou esquecido. Articula o mesmo dispositivo a intervenção Letreiro Objetivo (2014), em que instala um néon no alto de um prédio que foi um dos marcos da arquitetura modernista do Recife, projetado pelo arquiteto luso-brasileiro Delfim Amorim. Sobre o edifício que um dia abrigou a Associação da Imprensa de Pernambuco e um cinema de arte, Bruno Faria aplicou as palavras The End para toda a cidade assistir. Realizado com o Prêmio Funarte de Arte Contemporânea, o trabalho completava-se no interior da Funarte, na videoinstalação The End (2014), composta de uma montagem de créditos finais de cem filmes clássicos da história do cinema. Projetado em loop, o vídeo apresenta-se como um final inacabável. Articuladas, dentro e fora da instituição, essas duas obras compõem um pequeno museu do fim do cinema, talvez como uma forma de insistir na infinitude do pensamento crítico e na necessidade da livre circulação de ideias em espaços de convivência pública. E, por que não, uma melancólica antecipação do atentado sofrido em maio último pela sociedade brasileira com o desmantelamento do Ministério da Cultura.