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Paula Garcia durante a performance Corpo Ruindo, no Sesc Pompeia (Foto: Hick Duarte)
Postado em 09/11/2015 - 7:32
Cabras marcados
Paula Garcia e Marco Paulo Rolla revelam como performances deixam marcas – reais e metafóricas – no elemento central de sua produção artística: o corpo
Camila Régis

No início deste ano de 2015, quem passasse pela exposição Terra Comunal – Marina Abramovic + MAI, que ocupou o Sesc-Pompeia, em São Paulo, podia se demorar a assistir a Paula Garcia em ação, realizando a performance de longa duração Corpo Ruindo. Vestida com um uniforme de trabalho, a artista manuseava 4 toneladas de ferro-velho no interior de um espaço com paredes imantadas. Logo no primeiro dia de execução da obra, a artista fez um corte profundo no antebraço esquerdo, enquanto levava uma chapa metálica de um lado da sala para o outro. “Foi como faca na manteiga”, conta a seLecT.

Após ter recebido atendimento de primeiros socorros, Paula Garcia continuou executando sua tarefa. Desistir não era uma opção, já que o objetivo da obra era produzir – através do próprio corpo – uma reflexão sobre os níveis de brutalidade implicados nas atividades que operários e trabalhadores braçais enfrentam todos os dias. Aquele foi o primeiro revés de uma temporada marcada por níveis extremos de esforço físico e mental. Durante dois meses inteiros, ao longo de seis dias semanais e oito horas diárias, Paula Garcia carregou peso e respirou poeira de ferro, acumulando marcas de um processo transformador.

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Curativo no braço da artista (Foto: Paula Garcia)

“Fiquei com uma cicatriz no braço e marcas nas pernas.” As escoriações surgiam e começaram a fazer parte da rotina – como ocorre na vida dos trabalhadores espelhados pelo trabalho. “Sou artista, vivi isso numa situação excepcional. Mas era justamente do que estava falando. Existem milhões de pessoas que vivem assim normalmente”, explica. Contudo, a performance não era só cansaço. Em certas ocasiões, a artista atingia um estado quase meditativo, com a mente esvaziada pelo esgotamento. “Foi bonito porque houve momentos do trabalho com puro silêncio. Às vezes, quando terminava de fazer algo, suada, eu me sentava para tomar um café ou comer uma maçã.”

Mesmo o desgaste físico não sendo um objetivo, e sim uma consequência da obra, ele se tornou um agente desestabilizador do corpo, submetendo-o ao conflito e à precariedade. “Comecei a lidar com limites. Meu exercício ali era ter uma escuta absoluta de meu corpo e negociar com ele”, explica. “Eu imaginava que, se conseguisse passar por isso, viver isso intensamente, iria para lugares que nunca fui.”

A vontade de ir a “novos lugares” estava em sintonia com um corpo que queria se expandir e se ligar a forças invisíveis – no caso, representadas pelos ímãs. Ao usar sua própria materialidade, Paula Garcia fala de um corpo “coletivo, subjetivo e fragmentado” – que também carrega marcas.

Cicatrizes internas

Marco Paulo Rolla também participou da mostra Terra Comunal com a ação intitulada Preenchendo o Espaço. Mas foi em outro projeto que o artista mineiro bateu de frente com um limite de seu corpo.

Em 2002, ele participou da exposição Acidental, na extinta Galeria Duplo, em Buenos Aires. Na ocasião, a performance Café da Manhã/Breakfast foi executada para o público. Nela, o artista toma tranquilamente um desjejum em uma mesa posicionada rente à parede. A única trilha sonora do espaço é o tilintar dos talheres, o derramar dos líquidos, as mastigadas, o abrir dos sacos plásticos. De repente, a cena é interrompida por um salto abrupto do performer sobre a mesa.

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Registro da performance Café da Manhã/Breakfast, de Marco Paulo Rolla (Foto: Monali Meher)

Apesar de já ter realizado a ação outras vezes, naquele instante Rolla percebeu algo estranho. “Essa performance tem um momento muito rápido, a primeira coisa que tenho de jogar para fora é a cadeira. Mas, naquele contexto, ela ficou presa no meu pé. Como reflexo, fiz uma onda com o corpo. Senti dores depois e percebi que tinha me machucado.” Sua coluna sofreu uma lesão e só voltou ao normal após muitas seções de acupuntura.

O acidente foi um encontro com a vulnerabilidade do corpo, a partir do qual o artista passou a buscar novas maneiras de se fortalecer. Atualmente, pratica quatro modalidades de exercícios: Pilates, caminhadas, Gyrokinesis e Gyrotonic, ambos métodos de condicionamento físico que relacionam corpo e mente. Os cuidados com a alimentação também aumentaram – carne vermelha e o excesso de açúcar foram cortados.

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Registro da performance Café da Manhã/Breakfast, de Marco Paulo Rolla (Foto: Monali Meher)

A lesão ativou uma nova consciência, mas a própria performance Café da Manhã/Breakfast foi baseada em outro momento revelador. Aos 7 anos de idade, na escola, o artista fez uma encenação para a disciplina de educação moral e cívica. Sua função era apenas tomar café da manhã educadamente na frente do público. “Para mim foi muito esquisito. Eu era pequeno, mas foi quando entendi o descolamento da realidade. Guardei essa memória para fazer um trabalho, só não sabia que seria esse em específico. Ela virou esse pensamento que transforma o cotidiano em algo simbólico”, diz. Ambas as marcas – a real e a metafórica – serviram como momentos de ruptura que propiciaram mudanças. “Você percebe que sequelas indicam preposições para o resto da vida”, finaliza.

*Publicado originalmente na #select26