icon-plus
Postado em 10/08/2015 - 5:02
Certas incertezas
Mario Ramiro

A chamada “Fotografia dos Espíritos”, desde o seu surgimento, pode ser entendida não apenas como uma modalidade fotográfica que procurava comprovar por meios técnicos a existência de manifestações “espirituais”, mas também uma das formas que irão ilustrar a “primazia do olhar como fonte de conhecimento dos fenômenos do mundo”

“(…) A palavra ‘sobrenatural’ empregada em relação a essas coisas me parece imprópria. O fato de não conhecermos uma coisa não a exclui da natureza ou não a põe sobre a natureza. É apenas um aspecto da natureza que ainda não conhecemos. Um dia esses fatos psíquicos, hoje considerados sobrenaturais, estarão conhecidos e fichados, como tantos da química.” Monteiro Lobato (Carlos Heitor Castello Branco, “Monteiro Lobato e a parapsicologia”, 1972, pg. 21)

Foto Do Espirito Joo - Ettore Bosio 1920-1921

Legenda: Foto de espírito João, 1920 – 1921, Ettone Bosio

Numa carta de 25 de março de 1913 o escultor Arnold Rönnebeck escrevia ao pintor Wassily Kandinsky para narrar o seu encontro com Louis Darget em Paris, um homem que mantinha um espaço de trabalho em seu apartamento chamado de cabinet fluidifié, onde Rönnebeck teria visto uma coleção com cerca de 5000 fotografias “do fluído vital, do pensamento e fotografias espíritas”, colocadas em pequenos envelopes presos às paredes, que iam do chão até o teto. O escultor descreve as muitas imagens expostas naquele ambiente, além de uma experiência da qual ele e um amigo teriam participado com Darget, obtendo chapas fotográficas com registros das pontas dos dedos claramente marcados por manchas vermelhas, amarelas e verdes.

A chamada “Fotografia dos Espíritos”, desde o seu surgimento, pode ser entendida não apenas como uma modalidade fotográfica que procurava comprovar por meios técnicos a existência de manifestações “espirituais”, mas também uma das formas que irão ilustrar a “primazia do olhar como fonte de conhecimento dos fenômenos do mundo”. Kandinsky tinha um evidente interesse pelo assunto e Darget era uma valiosa fonte de referência para esse gênero fotográfico. Tanto quanto Kandinsky, outros artistas da vanguarda como Brancusi, Duchamp, Hilma af Klint, os futuristas Boccioni, Balla e os irmãos Bragaglia, como a pioneira da dança moderna Loïe Fuller, mantiveram em algum momento de suas vidas um vínculo com as chamadas ciências ocultas ou com o novo sistema de crenças surgido em meados do século 19 nos EUA e que se espalhou rapidamente pela Europa.

Considerado uma “ciência do espírito”, o Moderno Espiritualismo, ou o Espiritismo, como se tornou conhecido entre nós, parte do princípio da existência da vida após a morte e de que os mortos podem contatar os vivos, tendo o domínio de determinados meios para isso. Pelas sessões conduzidas por um médium seria possível receber as transmissões do mundo dos mortos por meio de uma “telegrafia espiritual”. “Quem ainda acredita na opacidade dos corpos?”, perguntavam os futuristas no seu Manifesto Técnico da Pintura de 1910. “Porque deveríamos desprezar em nosso trabalho a força dupla da nossa visão, tal como os Raios-X nos ensinaram?”

O pintor Umberto Boccioni dizia que os futuristas foram iluminados pela visão ultra-sensitiva das novas descobertas científicas e que aquela nova visão afirmava o papel desses artistas como visionários e os novos médiuns da arte. O estudioso norte-americano Jeffrey Sconce afirma que a revolução cultural espiritualista seria uma primeira resposta popular ao advento do telégrafo, a tecnologia de comunicação que inaugurou a ideia da telepresença. Inspirados por um aparelho que podia enviar mensagens por centenas ou milhares de quilómetros na velocidade da luz, os espiritualistas conceberam uma tecnologia ainda mais fantástica que poderia vencer a própria inacessibilidade espaço-temporal estabelecida pela morte. Afinal se o telégrafo de Samuel Morse, de forma quase “mágica”, havia tornado possível o contato entre pessoas separadas por grandes distâncias, ocupando uma dimensão material e outra que prescindia do corpo no espaço, porque não haveria também uma técnica de contato com o mundo do além?

Apesar do grande número de artistas visuais envolvidos desde o século passado na pesquisa e na produção de obras em diálogo com esse universo temático, o tratamento do assunto no circuito internacional das artes visuais ainda hoje é cercado de restrições e preconceitos, ao contrário do que ocorre no cinema. A indústria cinematográfica assumiu sem maiores problemas o diálogo com esse campo temático e deu forma à nossa imaginação, anteriormente literária, quando evocamos imagens relacionadas às aparições, assombrações, representações de deuses, anjos e demônios, experiências próximas à morte, mediunidade, possessão, poltergeists. Nos roteiros do cinema-entretenimento os fantasmas normalmente retornam ao mundo dos vivos para finalizar negócios interrompidos, consolar os sobreviventes, visitar seus amores ou simplesmente provocar calafrios na audiência. Esses espíritos podem ser evocados tanto por conjurações verbais (escritores que se aventuram narrar eventos de natureza espiritual), como por aparelhos técnicos (aparições em ampliações fotográficas, vozes estranhas em meio aos registros sonoros) e o resultado é invariavelmente a descoberta de uma dimensão que se apresenta como paralela ao mundo dos vivos, mas em plena interação com ele. Uma dimensão muitas vezes “vigilante” que acompanha nossos passos e é, quase sempre, invisível e intangível.

Para Tom Ruffles, que estudou esse gênero no cinema, esses filmes não existem de forma isolada – eles são parte de uma ação cultural que engloba livros, revistas, programas de TV, sites na internet, grupos temáticos nas redes sociais, seitas religiosas. Mas apesar da postura refratária do circuito das artes visuais não deixa de ser notável o crescente número de projetos curatoriais e exposições de grande porte que vem sendo organizadas sistematicamente desde os anos 90 em vários continentes. No início deste ano o curador convidado para a 32a Bienal de São Paulo anunciou o eixo temático, apoiado sobre 6 pilares, em torno do qual o evento será organizado: “subjetividade, fantasmas, inteligência coletiva, sinergia, ecologia e medo”. Como em algumas das muitas exposições realizadas nos últimos anos – The Great Transformation – Art and Tactical Magic” (Vigo, 2009), Brought to Light: Photography and the Invisible (San Francisco, 2008), Le Troisième Oeil – La Photographie et L’Occulte (Paris, 2005), The Perfect Medium: Photography and the Occult (NY, 2005), Im Reich der Phantome – Fotografie des Unsichtbaren (Mönchenglad¬bach, 1997), Okkultismus und Avantgarde: Von Munch bis Mondrian (Frankfurt, 1995), – a próxima bienal de São Paulo irá adentrar o terreno do improvável e da incerteza ao incorporar em seu programa expositivo as muitas facetas do mundo invisível que ainda insistem em dar sustentação à nossa vida social.

E não serão apenas expressões artísticas que deverão dar forma a esse programa. As telenovelas, os noticiários e as redes sociais continuam assombrados por estranhos fenômenos que mais se parecem com alimento para o imaginário dos iletrados e das pessoas ingênuas de boa fé. Em setembro de 2002 um jornal da grande São Paulo parecia encerrar com um pequeno artigo uma série de reportagens sobre uma aparição, supostamente inexplicável, no vidro de uma residência na cidade de Ferraz de Vasconcelos, interpretada por muitos como sendo um “milagre”. A “Santa da Janela”, como ficou conhecida, havia passado por uma avaliação técnico-científica solicitada pela Cúria Diocesana da cidade de Mogi das Cruzes. Sem retirar o vidro do local a análise constatou que a imagem era resultado de “um processo de corrosão do vidro devido à exposição inadequada a fatores ambientais”. O artigo informava ainda que os laudos elaborados por professores de uma universidade federal apontavam que a mancha foi provocada pela chuva, umidade e variação de temperatura, resultando num ataque químico ao vidro.

Desde que se tornou conhecida publicamente essa aparição fantasmática deu origem a uma onda de romarias em direção à cidade, onde os peregrinos se concentravam em frente à residência para orações em grupo. Se os artistas não estão atentos ao poder do imaginário que conecta o mundo concreto com o mundo do invisível, certamente estaremos perdendo terreno para a enorme horda de profetas que pretendem fazer do nosso tempo um lugar em que o “pecado” da dúvida deverá ser banido.