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Na imagem, a bióloga e feminista Bertha Lutz (1894-1976). Formada em Ciências Naturais pela Sorbonne, a pesquisadora foi deputada federal e participou da luta pelo voto feminino no Brasil (Foto: Divisão de Impressos e Fotografias da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos - NPCC13397)
Postado em 15/02/2016 - 3:47
Duras ciências
Preconceitos e vícios comportamentais retardam a carreira das mulheres na área científica
Camila Régis

Em 2005, o reitor da Universidade de Harvard, Lawrence Summers, sugeriu, durante uma conferência, que mulheres são menos aptas para as ciências exatas. Dez anos depois, em junho de 2015, Tim Hunt, vencedor do Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, participou da Conferência Mundial para Jornalistas de Ciências, na Coreia do Sul. Na ocasião, o professor da University College London falou que “três coisas acontecem quando há mulheres no laboratório: você se apaixona por elas, elas se apaixonam por você e elas choram quando são criticadas”. Após desculpas públicas, ambos perderam seus empregos e acalorados debates ressurgiram sobre a presença feminina nas chamadas hard sciences, que englobam disciplinas como Engenharia, Matemática, Física e Química. A primeira grande questão que se impõe é: por que ainda há poucas mulheres no meio científico?

Diretora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Marcia Barbosa, além de realizar pesquisas em fluidos complexos, desenvolve um estudo sobre a participação de mulheres na ciência brasileira. A carência de atuação feminina no campo seria uma das razões para disparidades tão gritantes quanto esta: no Brasil, mulheres ocupam apenas 5% dos altos cargos nos institutos e departamentos de Física. “Pais afastam as meninas, mas não os meninos, de qualquer aventura juvenil que signifique perigo, agressividade ou sujeira. Ciência é risco, necessita agressividade e normalmente faz sujeira”, diz Barbosa à seLecT. “Meninas são presenteadas com brinquedos pouco dinâmicos e criativos. Na adolescência, ciência é associada com falta de feminilidade.”

Marcia Barbosa, diretora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Foto: Julian Dufort para Lóreal Foudantion)
Marcia Barbosa, diretora do Instituto deFísica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Foto: Julian Dufort para Lóreal Foudantion)

Clube do Bolinha
No dia 11 de setembro de 2003, durante a cerimônia de posse do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou o órgão de “Clube do Bolinha”, já que dos 24 integrantes apenas um era mulher – Wrana Maria Panizzi, ex-reitora da UFRGS. Treze anos após o evento, a fala ainda é verdadeira. Depois de analisar uma década de bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), nas áreas de Física e Medicina, Marcia percebeu que nada se alterou significativamente. “A ideia de que para as coisas melhorarem basta esperar é falsa. Os porcentuais de bolsistas 1A, 1B, 1C , 1D e 2 nessas duas áreas muito competitivas não mudaram. No entanto, em países onde existe uma política de ação afirmativa, o porcentual se ampliou. Se não se faz nada, nada acontece.”

Na ciência institucional há ainda outro elemento que pesa contra a atividade científica feminina: a maternidade. Atualmente, bolsistas de doutorado têm o direito garantido à licença caso engravidem. Entretanto, de acordo com Marcia, que também foi presidente do Comitê Assessor de Física do CNPq, o benefício ainda não é totalmente eficiente. “O programa de pós-graduação (que tem uma gestante) é ‘punido’, pois o fato de uma bolsista demorar mais tempo para terminar o doutorado reflete negativamente na avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).” A passos curtos o órgão federal aplica algumas medidas para fomentar o debate sobre a pauta, como o programa Promovendo a Igualdade de Gênero, que busca identificar barreiras e ressaltar biografias de mulheres cientistas de destaque.

Sem passado
Ao longo da história, a escassez de mulheres em papéis protagonistas foi um fator que permeou muitas esferas do conhecimento. Professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, a historiadora Margareth Rago acredita que essa exclusão aconteceu porque a cultura como se conhece segue um pensamento moderno que surgiu no século 19. “Nem sempre foi assim, antes algumas nobres eram mulheres da sociedade, mas com a Modernidade, a ascensão da burguesia e sua definição do que é mulher, do que é homem, do que é família, do que é amor, aconteceu a remodelação da vida. É um modo de viver moderno, mas o moderno quer dizer branco, masculino e burguês.”, diz Rago à seLecT.

Margareth Rago, professora da Unicamp (Foto: Camila Régis)
Margareth Rago, professora da Unicamp (Foto: Camila Régis)

Ela reconhece que, em perspectiva, os avanços na representatividade feminina foram exponenciais nas últimas cinco décadas. “Até os anos 1970, não tínhamos passado. Quando se pensava sobre mulheres na história, só se falava de Cleópatra, Joana D’Arc, Maria Antonieta, Princesa Isabel e as amantes”, explica. “Mas faz 50 anos que o feminismo do segundo momento ganhou muito espaço. Hoje existe uma produção enorme. Temos a história das mulheres na Revolução Francesa, na Revolução Russa, no Fascismo, no Brasil. Tanto à direita quanto à esquerda.”

Esse processo de inclusão se mostrou benéfico não só para cientistas e pesquisadoras, mas para o saber em si. “Na minha área de estudo, a entrada das mulheres foi impressionante, porque não gerou só a história das mulheres. Nasceu a história do mundo privado, daquilo que na cultura era considerado natureza, como a maternidade, a sexualidade, a prostituição, o corpo, o aborto, a histeria, o discurso médico.”

Tanto Margareth Rago quanto Marcia Barbosa apontam que a produção do conhecimento nem sempre é neutra e por isso mesmo deve ser guiada pela multiplicidade. Essencializar funções de acordo com o gênero, designando o que homens e mulheres podem fazer, racha ao meio as possibilidades do pensamento científico. “Se continuarmos vendo o mundo em oposições binárias, se não criticarmos essas formas de pensar, vamos continuar excluindo e pensando hierarquicamente. A questão é: como libertar o pensamento dessas categorias que congelam e excluem?”, finaliza a historiadora