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Aparição (Manifestation, 2016) é exemplo da iconografia sui generis do artista, que reincorpora o delírio à situações aparentemente banais (Foto: Eduardo Berliner)
Postado em 15/12/2016 - 10:00
Eduardo Berliner: presença ausente
Em individual na Casa Triângulo, o artista carioca apresenta um trabalho inspirado na literatura, que é também uma obra de ficção cuja gramática é o fazer pictórico
Luisa Duarte

As obras de Eduardo Berliner em Corpo em Muda, sua segunda individual na Casa Triângulo, em São Paulo, possuem muito daquilo que Freud nomeou como das unheimliche, ou “o estranho”. No conhecido ensaio de 1919, o pai da psicanálise utiliza-se de um conto de Ernest Theodor Hoffman, O Homem de Areia (1815), para demonstrar a vinculação da noção de estranho com aquilo que remete a algo conhecido, familiar. O conto faz parte da literatura fantástica e nos apresenta situações características da vida burguesa que, repentinamente, se revelam assustadoras, fantasmagóricas. A ambiguidade entre ficção e realidade permeia todo o conto, mantendo o leitor em um estado de incerteza sobre a veracidade dos fenômenos expostos.

Um dos pontos de partida para o conjunto de dezenas de trabalhos, que incluem desde pinturas de larga escala até mínimos desenhos e aquarelas, encontra-se no livro A Desumanização, do luso-angolano Valter Hugo Mãe. No romance, o escritor narra a história de uma menina que, diante da morte da irmã gêmea, passa a interrogar a respeito do que fora feito do seu corpo. Nas palavras dos curadores da mostra, Priscyla Gomes e Felipe Kaizer, “aquilo que é sepultado vem a equivaler à imagem do corpo que se desagrega sob a ação dos bichos da terra e ao cerne de algo fecundo. Estabelece-se a condição dúbia da menina plantada, de um corpo que é, ao mesmo tempo, carcaça e semente. (…) Um corpo em muda do qual brotam elementos díspares ou ambíguos, onde convivem partes desconexas”.

Sem Título (2015), elefante (2016) e Ataduras (Bandages, 2016 - Foto: Cortesia Casa Triângulo/ Eduardo Berliner)
Sem Título (2015), elefante (2016) e Ataduras (Bandages, 2016 – Foto: Cortesia Casa Triângulo/ Eduardo Berliner)

O corpo em muda seria justamente o estado com o qual Berliner trabalha, ou seja, um estado de transição entre o estranho e o familiar, no qual habitam, simultaneamente, a promessa de vida e o lastro da morte, o prosaico e o brutal, o humano e o animalesco. Uma criança com braços de urso, um cachorro com cabeça de criança, uma menina sentada em um sofá, cujo livro em suas mãos revela-se uma máscara. Será justamente do atrito entre dimensões díspares que surgirá o universo fantasmagórico próprio ao artista, capaz de instaurar uma espécie de presença ausente que permeia toda a exposição.

Colagem de coisas do mundo
Sejam inspiradas em fotografias, sejam fruto da observação ou somente imaginadas, as obras de Berliner têm em comum um ethos avesso a um modo de estar no mundo marcado pela normatização, pela aniquilação da face delirante de que nossa imaginação é capaz, mas que uma época desencantada e pragmática como a nossa teima em inibir.

Capa (2016 - Foto: Eduardo Berliner)
Capa (2016 – Foto: Eduardo Berliner)

Esse gesto que cultiva a fabulação e o absurdo parece ser resultado de um processo de criação que deriva de um tempo mais noturno do que diurno. Se o dia é a hora em que os fatos acontecem, as ações são executadas, a noite seria o momento no qual o frenesi diurno cessa, os movimentos são interrompidos e uma camada de sonho entra em cena, dando origem a outro tipo de linguagem. Uma linguagem silenciosa, que olha antes para dentro do que para fora, que não possui compromisso com os fatos, mas, sim, é devota dos desvios do inconsciente e sabedora de que a memória é algo vivo que chega até nós com distorções e sem aviso prévio. Por isso, por exemplo, um balanço para crianças traz em suas correntes não um banco, mas fragmentos de corpos. As aproximações aqui obedecem a uma lógica da colagem de coisas que, no mundo tal como o conhecemos, habitam diferentes gavetas. O artista faz questão de bagunçar essa ordem prévia, catalogada, em favor de uma mistura que faz nascer algo até então inaudito.

Essa obra que é filha de um tempo noturno é também aquela que requer de nós uma paciência do olhar. Corpo em Muda foi pensada para o novo espaço da Casa Triângulo. Por isso telas imensas, que ocupam de maneira imponente o generoso cubo branco, convivem com desenhos mínimos. Esse jogo com diversas escalas solicita diferentes tempos e distâncias. Chegamos bem perto de cada desenho, nos afastamos para apreender a cena completa das grandes pinturas. Nesse processo de idas e vindas costura-se uma atmosfera capaz de unificar as dezenas de trabalhos.

Tubulação (2012 - Foto: Eduardo Berliner)
Tubulação (2012 – Foto: Eduardo Berliner)

Essa atmosfera, por sua vez, sublinha a capacidade de instaurar presenças ausentes, ou seja, menos do que representação de coisas, essas pinturas transpiram medo, espera, angústia, desencontro, fraqueza, irmandade, transmutação, tudo isso sem cair num gesto puramente subjetivo ou piegas, pois o artista jamais ilustra tais afecções. Estamos diante de um trabalho que se declara inspirado na literatura e é, a seu modo, também uma obra de ficção, cuja gramática é o fazer pictórico.

Corpo em Muda reafirma Eduardo Berliner como autor de um universo próprio, um artista cujo caminho segue à revelia de agendas, que por vezes ditam os rumos da produção no campo da arte contemporânea. O encontro com esse universo nos lega uma deriva por tempos noturnos e paisagens internas, nos permitindo lembrar que, a despeito de um presente que faz o elogio diário de uma vida compartimentada, residem em nós, e no mundo que habitamos, sendas insuspeitadas de absurdo e fabulação à espera de um olhar que saiba promover fusões improváveis. Aí reside o solo fértil do qual brotam corpos em muda.