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Ernesto Neto no interior da tenda ritualística montada na exposição Boa, no Museum of Contemporary Art Kiasma, na Finlândia, este ano (Foto: Petri Virtanen/ Cortesia Museum of Contemporary Art Kiasma/ Cortesia Galeria Fortes Vilaça)
Postado em 22/11/2016 - 4:03
Ernesto Neto: “Tudo está visível na dimensão espiritual”
Pesquisas recentes do artista carioca recaem sobre os mistérios da Ayahuasca. Esculturas penetráveis são ativadas em rituais xamânicos
Paula Alzugaray

“Paxpa/ Existe uma floresta encantada dentro de nós.” “Vozes da Floresta.” “aru kuxipa/ Sagrado Segredo.” Com títulos enigmáticos e convidativos, as esculturas que Ernesto Neto vem realizando nos últimos três anos apresentam importantes características em comum. Penetráveis, envolvem o visitante em uma suave confluência de cheiros, cores quentes e formas orgânicas pendentes. Permeando as extremidades desses espaços predominantemente ovais, almofadas macias e felpudas convidam a sentar e ficar. No centro, elementos variáveis. Às vezes, uma arvore tecida em fios, às vezes uma escada, sempre um altar, com cocares, pratos de oferendas, instrumentos musicais.

Em 2014, Neto apresentou a escultura penetrável Sweet Edge em individual no Guggenheim Bilbao, Espanha. No mesmo ano, integrou a exposição Histórias Mestiças, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, com Em Busca do Sagrado Giboia Nixi Pae (2014). Nas duas instituições, as tendas criadas reverenciavam os ambientes ritualísticos dos índios amazônicos Huni Kuin, com quem o artista tem realizado projetos conjuntos. Em ambos os casos, as esculturas foram palcos de sessões de Ayahuasca, o chá de plantas alucinógenas usado por diversas tribos indígenas e religiões como o Santo Daime como transporte para a dimensão espiritual. Em conversa com seLecT, Ernesto Neto fala como as vozes da floresta reverberam no espaço da arte.

Você acredita na espiritualidade da obra de arte?
Acho que a arte é o único lugar de subjetividade que sobrou nessa sociedade da objetividade que é a sociedade ocidental, que dominou o mundo com seu pensamento racional, econômico, científico. Como esse pensamento é da ordem da objetividade, o lugar que sobrou para a subjetividade é o lugar da arte. A arte sempre esteve conectada com a espiritualidade, em toda a historia da humanidade. Ela é a conexão com o espiritual.

Suas esculturas em forma de tendas ritualísticas são meios de canalizar essa espiritualidade?
Eu já venho trabalhando com isso há muito tempo. Essa dimensão espiritual para mim sempre foi clara. Sempre acreditei que estava trabalhando para o infinito, nunca trabalhei para o crítico de arte, para o público, para fulano ou beltrano. Meu trabalho sempre foi para algo maior, por isso que não existem segredos. Tudo está visível na dimensão espiritual e não tem como esconder coisas em uma escultura. Sempre trabalhei para essa dimensão espiritual, que pode se chamar de Deus, de Grande Espírito, aí depende do contexto social e cultural de cada um. Acontece que há três anos eu me encontrei com o povo Huni Kuin, que trouxe para mim uma dimensão espiritual do sagrado, da natureza, que eu compreendi. Encontrei pessoas que convivem com isso cotidianamente, decodificam isso e têm uma compreensão absolutamente profunda, em nível de conversar com as plantas e gerar uma ciência, um conhecimento. E gerando cura. Todo mundo sabe que a natureza cura. Se você está estressado na cidade, sente que está precisando ir para o campo ou praia para recarregar. Só que eles estão em uma convivência diária com a natureza há 10 mil anos, num lugar onde a gente se perdeu. Nesse processo de racionalização do pensamento, a gente se separou da natureza. A gente, inclusive, criou a palavra natureza. Sempre que falamos “natureza”, nós colocamos a natureza fora da gente. Os Huni Kuin e, provavelmente, vários outros povos indígenas não têm nem a palavra natureza. Eles são a natureza. Quando eles falam profundamente, é a folha falando, é o vento falando, é o rio falando, é a pedra falando, é o bicho falando. Então, entrei numa dimensão espiritual extremamente mais forte. Um dia, junto deles, eu disse ao Fabian, que é o filho do cacique lá do Rio Jordão, que eu queria fazer a dança da tartaruga em uma abertura de exposição. Esse é um caminho sinuoso que tenho feito no meu trabalho há 30 anos. E ele disse: “Vamos fazer juntos”. Aí a gente começou a fazer essa colaboração. Há muito tempo estou no lugar espiritual da arte, com as Naves, os Colchões, os Campos, os Espaços, lugares que tenho criado para as pessoas estarem, respirarem. Há vários anos falo que quero que as pessoas pensem pelos poros. E encontrei uma galera que está muito avançada nisso.

Ernesto Neto e colaboradores da tribo Huni Kuin, na instalação Vozes da Floresta (2016), no Kunsten Museum of Modern Art, na Dinamarca (Foto: Anders Sune Berg/ Cortesia Kunsten Museum of Modern Art/ Aalborg)
Ernesto Neto e colaboradores da tribo Huni Kuin, na instalação Vozes da Floresta (2016), no Kunsten Museum of Modern Art, na Dinamarca (Foto: Anders Sune Berg/ Cortesia Kunsten Museum of Modern Art/ Aalborg)


Ao entrar nas suas esculturas, o público pode se relacionar com o espaço de maneira pessoal, mas também participar de ações, de rituais conduzidos?
Realizamos dois trabalhos no Instituto Tomie Ohtake e um trabalho nessa exposição colaborativa em Bilbao, dentro do Guggenheim. Fizemos um trabalho espiritual onde a gente tomou o Huni, que é a maneira que os Huni Kuin chamam a Ayahuasca, conduzidos por eles, pelos cantos sagrados deles, cantos ancestrais. Isso é uma coisa que não dá para fazer publicamente, não é um show, um espetáculo. É um trabalho espiritual para convidados. Então, vejo o museu como um lugar-templo. O que acontece é que a arte, para os indígenas, nunca se separou da sociedade. Os desenhos que têm nessa bolsa, nessa pulseira, o desenho que tem no arco, na flecha, toda essa indumentária artística, estão lá para trazer força e proteção. Estão lá para conduzir essa espiritualidade. Não estão lá para ser uma coisa a ser contemplada. Não que ela não possa ser, mas está para ser utilizada, vivenciada. Como um Parangolé do Hélio Oiticica. Meu trabalho é para você entrar, sentar e meditar, ou simplesmente olhar.

Qual a diferença de participar de um ritual no meio da floresta e dentro do museu?
A diferença é que na floresta você está com toda a força dos seres divinos, sagrados, como as plantas, os bichos. Quando a gente bebe Ayahuasca, que é uma mistura de um cipó com uma folha – o cipó trazendo a força masculina e a folha trazendo a força feminina –, você está bebendo a força da terra. É uma coisa muito profunda e muito séria. E é uma coisa transformadora que, inclusive, a meu ver, pode transformar essa sociedade para o bem. Essa separação da natureza está fazendo a gente pegar tudo e não entregar nada. A gente está se autodestruindo tanto social quanto ecologicamente. A sociedade indígena tem um equilíbrio maravilhoso, e é uma sociedade brincalhona, eles acreditam na alegria como fonte da cura. Então, dentro do museu, o meu trabalho é trazer esse pensamento. Trazer a natureza para a arte e para o debate da arte. O que eu tento fazer enquanto artista é criar um ambiente propício, aconchegante, que traga força e proteção para que a gente realize aquele trabalho.

Que elementos são fundamentais para se criar esse ambiente?
Primeiro, o fogo. Seja uma vela, uma fogueira. Dizem que tudo isso começou quando o ser humano conseguiu controlar o fogo. E aí ele pôde sentar em roda. Ao meditar, ao olhar as labaredas, começou a desenvolver toda a capacidade humana. Toda capacidade intelectual humana é fruto da espiritualidade. Não é outra coisa que nasceu. A dimensão do ritual começa ali. A abertura de uma exposição é um ritual. A ritualidade existe em todos os movimentos da sociedade.

O ritual não é uma situação que se restringe a grupos de iniciados, que compartilham um código, que lhes confere uma condição secreta?
Não, acho que isso é um grande equívoco, uma visão preconceituosa sobre a questão em si. O grande segredo é que a saúde está na alegria e na dimensão espiritual. E essa dimensão material, da ilusão, que a gente está vivendo, acreditar que o ouro traz a cura, é um engano. O amor é o grande segredo, o amor incondicional. Essa coisa de fazer um ritual fechado, que ninguém pode ver, isso não tem nada a ver. A não ser que existam pessoas fascistas, autoritárias, que queiram massacrar outras crenças, outras verdades, aí você tem de se esconder para se proteger.

Aru Kuxipa/ Sagrado Segredo (2015), na Thyssen-Bornemisza Art Contemporary Collection, em Viena (Foto: Jens Ziehe/ Cortesia TBA21-Augarten/ Cortesia Galeria Fortes Vilaça)
Aru Kuxipa/ Sagrado Segredo (2015), na Thyssen-Bornemisza Art Contemporary Collection, em Viena (Foto: Jens Ziehe/ Cortesia TBA21-Augarten/ Cortesia Galeria Fortes Vilaça)

Você abre seus rituais para o público interessado?
Claro. Existem rituais com Ayahuasca, sejam indígenas ou não, acontecendo em São Paulo, no Rio de Janeiro e no mundo todo. Participa quem quiser. Agora, quando você toma uma coisa como essa, você vai entrar num processo extremamente forte. Então, isso é uma responsabilidade. Nosso grupo que faz trabalho indígena no Rio de Janeiro, quando as pessoas vão lá, tem de fazer uma entrevista, tem de conversar. Entende? Porque não é uma coisa qualquer.

Que grupo é esse?
É um grupo que foi formado por um jovem Huni Kuin que foi para o Rio de Janeiro. Assim como em São Paulo outras pessoas fazem trabalhos com Huni. Essa dimensão xamânica está se espalhando por toda a sociedade, não só a brasileira, mas também a europeia, a americana, a asiática.

Isso tem poder de modificar o mundo da arte?
A arte é o nosso suor, o nosso cheiro, o que o corpo exala. Se você transforma o pessoal, esse exalar também é transformado. O segredo mora dentro da gente. O segredo, mais uma vez, é o amor. É encontrar a serenidade dentro de si mesmo. Esses rituais todos te ajudam a encontrar a serenidade. Ioga, meditação, umbanda, candomblé, todas as religiões que são sérias. Quando elas se tornam controle social, perdem a sua legitimidade espiritual.