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Postado em 06/10/2015 - 5:09
Fim do clique
Camila Régis

“Me atreveria dizer que estamos na era do fim do clique”, conta Iatã Cannabrava. Organizador do Paraty em Foco, maior evento de fotografia do país, fala com exclusividade à seLecT

Iata

Legenda: Iatã Cannabrava (Foto: Ekaterina Kholmogorova)

“Com a chegada da primavera, os habitantes das cidades, às centenas de milhares, saem aos domingos levando o estojo a tiracolo. E se fotografam”. Estas são as primeiras linhas do conto A Aventura de um fotógrafo, de Ítalo Calvino. Publicado no livro Os amores difícies, de 1970, o texto narra a história de Antonino Paraggi, um homem que desenvolve uma relação obssessiva com a fotografia e passa a clicar praticamente tudo ao seu redor. Antonino era “um daqueles que vão atrás da vida que foge, um caçador do inalcançável como os disparadores de instantâneos”. De tom premonitório, o texto, mais de quarenta anos depois, fala diretamente com uma geração que publica 80 milhões de imagens por dia no Instagram. 

Com o sugestivo tema “representação e autorrepresentação na era dos dispositivos eletrônicos”, a última edição do Paraty em Foco se dedicou a pensar a fotografia em mundo soterrado por imagens rápidas. Conversamos com o organizador do evento e também fotógrafo, Iatã Cannabrava, sobre a busca por temáticas relevantes no cenário fotográfico contemporâneo, uma década do maior festival de fotografia do país, a nova era dos fotolivros e, claro, as selfies. 

Como você chegou ao tema da edição deste ano?

Nos últimos anos, o festival vem tentando achar os pontos que são mais importante para a fotografia. Em dez anos de evento, vimos ser discutido por inúmeros anos seguidos se a fotografia é arte ou se o fotojornalismo desapareceu. Nenhum desses assuntos tem a menor importância hoje porque já foram discutidos. Sempre estivemos atentos à discussão do momento. Criamos o festival para ser uma plataforma de reflexão capaz de ajudar no desenvolvimento da fotografia, do campo da arte fotográfica e da fotografia como ofício, como um todo no Brasil e nos países vizinhos que também frequentado o evento. 

A questão da selfie virou insustentável. Acho que na verdade a selfie já foi chamada de autorretrato ou de retrato e tudo isso já foi chamado de fotografia. Eu mesmo brinquei e fiz uma selfie no palco. Tem muitos modismos e vivemos eles, mas acho que é preciso ter cautela na análise histórica. Acho que tem que separar os modismos e fazer uma análise mais profunda do que está acontecendo. Para fazer essa análise profunda, convidamos uma série de pessoas que desenvolve trabalhos não diretamente sobre selfies, mas de autorretrato, autorepresentação, fotografam pessoas que se fotografam e que fotografam condições, sensações, circunstâncias através da utilização de pessoas. Por exemplo, Arno Rafael Minkkinen, um fotógrafo finladês que tem uma relação fortíssima com a natureza, um homem grande que se confunde com seu país gelado. Ele faz a mímese fotográfica como ninguém. Ele precisa vir aqui falar um pouco sobre o que é essa história toda, o que é ficar 30 anos se retratando com a natureza ou retratando a natureza através do seu corpo.

Como você encara o papel do fotógrafo em um mundo onde todos podem tirar fotografias?

O fotógrafo é um roteirista. Na verdade, vamos fazer uma análise anterior. Fazendo um resumo muito simplista, a história oral começa com a fofoca e vira o romance, a novela, na sua forma elitizada. Na fotografia, tudo isso é muito novo. Não seria o Instagram e o Facebook, a fofoca, e o fotolivro, o romance? Então, qual o papel do fotógrafo profissional? Fazer aquilo que ele foi treinado, seja com a selfie ou seja numa escola. Ele foi treinado para contar história. Me atreveria dizer que estamos na era do fim do clique. A hegemonia do clique, do fotógrafo que aperta o botão na hora certa, já acabou faz tempo. Ao fotógrafo cabe ser o editor ou o roteirista.

Você mencionou os fotolivros e é um dos sócios da Editora Madalena, que trabalha muito com esse formato de publicação. Qual a principal diferença de pensar uma fotografia para impressão nesse suporte?

Parede é parede, livro é livro e parede de projeção é parede de projeção. São coisas muito distintas. Um trabalho que foi pensando para uma exposição não vai ter grande sucesso quando for transposto para o livro. A maioria dos fotolivros ou livros de fotografia até alguns anos atrás eram catálogos de obras de parede. Você tirava da parede e dizia “esta é a linda obra de fulano”. O fotolivro tem uma narrativa, um alinhavamento, uma sequência. O fotógrafo é quem alinhava as histórias contadas por imagens e as transforma em livros ou em exposições que transcendam as questões estéticas — totalmente inútil no dia de hoje, uma foto não precisa ser bela para ser importante, pode ser bela, mas não precisa. O fotógrafo é que coordenada essa série de tranformações no sentido de criar um discurso. Por exemplo, Antoine D’Agata que está aqui. Ele tem um discurso fenomenal sobre fotografar dor e sofrimento. Na abertura do festival ele disse “eu fotografo o que me entristece”. 

Esta é a 11ª edição do festival. Você consegue fazer um balanço desses últimos dez anos de evento?

O Paraty em Foco começou como um festival, como tantos outros começam, com a vontade de reunir pessoas. Começou com espaço para 50 ou 100 visitantes nos primeiros anos e rapidamente cresceu numa lacuna muito séria que existia para um festival de encontros. Não que não existissem festivais, havia projetos incríveis, mas projetos em São Paulo, no Rio, em Brasília. O Mês Internacional de Fotografia em São Paulo durou anos e anos, trouxe pessoas incríveis, criou redes. O Foto Rio até hoje existe. Mas todos eles se caracterizam por ter grandes exposições, grandes afluxos de público. E nenhum deles se caracteriza por fazer com que as pessoas se encontrem, como elas se encontram no Paraty em Foco. O evento desenvolveu um espaço privilegiado onde você pode vir e mergulhar num processo que podemos chamar de “Frequentação intensiva de fotografia”, ou seja, cinco dias ouvindo, vendo, sentindo e se emocionando através da fotografia e seus protagonistas. Isso muda a vida de qualquer um. Eu virei organizador de festivais e outros eventos porque estive no Colóquio Latino-americano de Fotografia em 1996 e jurei que ia fazer algo igual. Aquilo me emocionou profundamente.

Quais são os planos para o futuro? Existe um projeto de expansão?

Tem acontecido eventos relacionados ao Paraty em Foco no Rio de Janeiro e São Paulo, vai acontecer também coisas em Santos.  Acho que o próximo passo é reformular de modo mais grave o conceito de festival para ele não ficar velho. Outra coisa importante é que não adianta mais falar com as comunidades carentes. Precisamos ouvi-las e descobrir o que elas querem dizer, tentar atender um pouco essa demanda por união num país dividido. Quem sabe essa seja a maior função do Paraty em Foco no futuro. Fazer um experimento em Paraty de unificação, a partir da sabedoria e paciência, para ouvir o outro, fazendo um trabalho de ruptura dessa cisão da sociedade brasileira entre pobres e ricos, brancos e negros. Dizer que não existe racismo nesse país é uma piada. Fazer uma reflexão e um trabalho no sentido de propor novos caminhos para romper com isso. Acho que é essa a função de um festival de fotografia depois de dez anos de existência.