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Postado em 12/02/2012 - 5:04
Fotografia apaixonada
Paula Alzugaray

A câmera-cúmplice de Nan Goldin em três slideshows no Rio de Janeiro

Há muitos mais beijos e abraços do que olhos roxos em “A Balada da Dependência Sexual”, a obra da fotógrafa norte-americana Nan Goldin, que já é um clássico contemporâneo e está em exibição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Goldin, ao contrário de outros gênios conterrâneos como Diane Arbus ou Martin Parr, não é uma artista que persegue o monstruoso ou o aberrante, mas que procura dignificar os estados da alma e os padrões de comportamento que escapam ao senso comum. Isso se faz e se mostra no gesto apaixonado da câmera ao documentar as relações humanas e na maneira envolvente com que a artista edita suas imagens em longas narrativas audiovisuais. 

Definidos por Ligia Canongia, curadora da mostra no MAM, como um “cinema fotográfico”, os slideshows de Nan Goldin podem ser interpretados como curta ou media-metragens. Projetados em salas escuras, devem ser assistidos do começo ao fim (não necessariamente nessa ordem), pois são obras discursivas, que contem frases, parágrafos e capítulos imperdíveis, decisivos para a compreensão do todo.
Há três slideshows de Nan Goldin atualmente em cartaz no Rio de Janeiro. Com 42 minutos de duração e composta por 720 fotografias realizadas entre 1978 e 1986, “The Ballad of Sexual Dependency” é uma sociologia da noite. Ou da paixão pela noite. Começa com casais das mais diversas idades posando para a câmera. Em posturas até singelas. Mas logo o olhar da fotógrafa se entrega ao fato e passeia sem discrição pelos cenários próprios das sextas-feiras de rock’n roll. A câmera se volta então para moças e rapazes em ação: em casa, na produção para a festa; nos carros; nas portas de boate; nos banheiros, até enveredar em beijos, abraços e afetos de toda ordem. 

Ao som de uma trilha sonora que vai de Maria Callas a Velvet Underground, a balada tem muitos climas. Transcorre do êxtase à depressão, passando por camas vazias e chegando, de maneira comovente, a túmulos com as inscrições: pai, mãe, marido, mulher.
Na sala ao lado, “Heartbeat” (traduzido para “Pulsação”), é dedicada aos pais da artista “que dividem a cama há 72 anos”. Com 15 minutos e 245 slides, a obra é composta por cinco ensaios fotográficos de momentos de intimidade de jovens casais franceses, alguns acompanhados de filhos que dividem com eles a banheira ou a cama. Essas imagens são, não raro, interpretadas como ameaça aos bons costumes. No entanto, essa obra, comissionada pelo Centro Georges Pompidou em 2000, está muito mais próxima de um atentado amoroso. E a trilha interpretada por Björk contribui consideravelmente para esse impacto.

Nan Goldin afirma que seu trabalho é uma decorrência da cultura das snapshots, as câmeras baratas que popularizaram a fotografia antes da entrada em cena da fotografia digital. Mas se hoje o portador de um smartphone pode atingir o estatuto de um fotógrafo profissional, nos anos 80, quem portava uma snapshot era definitivamente um fotógrafo amador, em outras palavras, um amante da fotografia. Como tal, não representava maiores ameaças ao retratado, já que era virtualmente impossível que uma imagem em baixa resolução ganhasse publicação em qualquer meio de comunicação expressivo. Em seu apreço à fotografia amadora, Goldin forjou seu estilo: chegar tão perto de seu objeto fotográfico, atingindo tal intimidade de modo a confundir-se com ele. Criou, assim, uma fotografia apaixonada. 

“The other side” nasce precisamente dessa proximidade apaixonada ao tema. A série teve início em 1972, quando Goldin viveu com um grupo de drag queens e começou a registrar seu cotidiano com comprometimento e intimidade. Essa câmera “insider” faz toda diferença. O resultado são imagens que passam muito longe dos clichês frequentemente associados a esse gênero híbrido da natureza humana. E encantam pela beleza e cumplicidade. 

Embora tenha a dignificação da raça humana como estratégia, Goldin também tem olhos para paisagens solitárias. E cada uma das imagens da série “Landscapes”, impressas em Cibachrome, funciona como um respiro em meio à intensidade da vida social da fotógrafa. No MAM, estão expostas 15 dessas fotografias raras, poucas vezes exibidas. Entre elas, um Cristo Redentor improvável, entre brumas, fotografado em 1997. Sua presença melancólica na exposição nos lembra que os planos de Nan Goldin vir fotografar no Rio de Janeiro em 2012 se dissiparam como nuvem. Mas o projeto irrealizado deixa dúvida sobre como a câmera cúmplice de Goldin teria se comportado diante de um fenômeno tão pouco familiar para ela quanto os rituais afro-brasileiros. Difícil imaginar a câmera de Nan Goldin na posição de turista.