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Antoine Amarger, restaurador francês que está em São Paulo para restaurar o alto-relevo do monumento que guarda os restos mortais de D. Pedro I
Postado em 06/10/2016 - 7:57
Independência de cara nova
Em entrevista para seLecT, restaurador do Musée Rodin fala de seu trabalho no monumento do Ipiranga (SP)
Luciana Pareja Norbiato

A cruzada de Antoine Amarger por São Paulo tem um objetivo nobre: começar o processo de restauração do Monumento à Independência, complexo projetado pelo escultor Ettore Ximenes e pelo arquiteto Manfredo Manfredi, ambos italianos.

Finalizado em 1922, o conjunto escultórico tornou-se mausoléu em 1972, na comemoração dos 150 anos da Independência do Brasil. Foi quando os restos mortais de D. Pedro I e de suas duas mulheres, D. Leopoldina e D. Amélia, foram transferidos de Portugal para o lugar.

Amarger é um dos maiores especialistas em restauração de sua área, bronze. Com um ateliê de restauro que leva seu nome, recebe peças de coleções particulares de toda a Europa e mesmo além, mas trabalha com várias instituições de peso, como o Musée Rodin, o Museu do Louvre e o Musée Matisse, sem contar projetos e aulas que faz ao redor do mundo inteiro.  

Para o Parque da Independência, sob gestão do Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo, ele elaborou um projeto que contemplava o Monumento inteiro, com todos os mais de dez bronzes que compõem os grupos frontal e laterais do complexo. Isso inclui também a base de pedra em elevação, que acabou caindo no gosto dos skatistas que frequentam o local graças aos seus degraus e bordas, escurecidos pelas manobras com as rodinhas.     

Vista do painel frontal Independência ou Morte antes da restauração que deve acabar no começo de novembro
Vista do painel frontal Independência ou Morte antes da restauração que deve acabar no começo de novembro

Infelizmente, com a impossibilidade de custear a renovação de todo o Monumento de uma vez, o restauro começou pela peça principal, o alto-relevo Independência ou Morte, que representa o Grito do Ipiranga e é inspirado pela pintura homônima (1988) de Pedro Américo.

O fato de a tela estar no Museu Paulista, sob gestão do governo do Estado, ao contrário do Parque da Independência, teria atrasado a visita de Amarger para estudar detalhes da obra, por causa da rusga entre gestões municipal e estadual. Mas o término dessa primeira etapa do trabalho acontecerá no dia 9/11 (quarta-feira).

Enquanto a reportagem de seLecT torce para que a nova gestão municipal se empenhe em manter o programa de restauração da prefeitura anterior, aproveitou para dar uma passada no Parque da Independência e conversar pessoalmente com Antoine Amarger. Leia agora:

Como funciona o restauro de uma peça grande como esse alto-relevo?

O monumento foi feito em 1922 e naquele tempo não haviam fundições no Brasil. O escultor, Ettore Ximenes, que era italiano, trabalhou no começo provavelmente com uma fundição na Itália e, depois, como se tratava de um grande monumento, trouxe trabalhadores para fazer uma fundição em São Paulo. Foi o começo desse procedimento técnico aqui e, por isso,  encontramos vários problemas com relação à fundição da obra, como buracos por toda parte e problemas de junção.

De um ponto de vista estrutural, esse alto-relevo apresenta várias alterações, porque sua fabricação foi um tanto imprecisa. Há um problema de estrutura e de superfície, um problema de envelhecimento e da origem da pátina (processo natural de oxidação do bronze, que é um composto de cobre e estanho, que altera sua coloração). Primeiro, tomamos conta da estrutura para fazer os reparos necessários (como soldas e encaixe de pinos de suporte importados, pois não existem similares no país) para completar e sustentar os bronzes. Estamos repondo as partes faltantes, como as espadas (roubadas pelo público ao longo do tempo), que são 12 e já mandamos fazer 20, para o caso de necessidade de reposição.

Depois de um mês de limpeza e reestruturação, começamos a refazer a pátina (pela aplicação de um composto químico ativado por maçarico), para dar um aspecto completamente diferente ao bronze, porque antes o visual era muito feio, com vários riscos e irregularidades de cor. Não podíamos mais apreciar corretamente o relevo. A ideia é tornar sua cor mais homogênea para que seja realçado seu aspecto escultórico. Começamos com esse alto-relevo, mas a ideia seria restaurar todo o conjunto de bronzes até o bicentenário da obra (2022). Na semana passada, fomos ao Museu do Ipiranga (Paulista) ver a pintura que originalmente é uma espécie de modelo para o relevo. É uma tela realmente enorme, sete por quatro metros, e foi engraçado porque pudemos ver que vários detalhes da tela estão faltando no bronze. Então partimos da pintura para repor as peças faltantes, como os bronzes, por exemplo.

A pátina é de uma coloração geral esverdeada, é uma pátina natural, mas como toda pátina é irregular, o que é um problema. Do ponto de vista técnico, a pátina natural é mais estável que qualquer outra, então mantivemos a maior parte da pátina natural verde, 80%. Depois, como seu aspecto está feio, acentuamos algumas partes, principalmente onde somos obrigados a fazer algum reparo ou intervenção, para tornar o aspecto da peça mais homogêneo. Há várias concepções quanto à coloração, mas do ponto da técnica é melhor manter a pátina natural verde. Do ponto de vista estético, é interessante manter a aparência de antiguidade do monumento. Poderíamos colocar uma nova pátina, preta ou dourada, mas isso é um pouco estúpido. Um monumento antigo tem uma aparência natural de monumento antigo, como no restauro de uma pintura, em que não tentamos achar o visual inicial dela. Tem um processo natural de envelhecimento. É a mesma coisa com as pessoas: quando se envelhece é difícil voltar a parecer jovem com um facelift.

E como a ideia é restaurar o Monumento peça por peça, é melhor manter a coloração verde do alto-relevo, porque assim ele não destoa das duas esculturas ao lado e da grande escultura no topo.

Qual é o desafio de fazer esse restauro em São Paulo em comparação com sua experiência no Musée Rodin, por exemplo?

Foi exatamente no Musée Rodin que eu criei essa abordagem de manter o aspecto natural da pátina, porque eu trabalhei lá por cerca de 15 anos e pude desenvolver um trabalho contínuo na relação com o conservador (que responde pela manutenção do museu). Nós debatíamos muito. Acho que chegamos a algo como uma abordagem francesa no que compete à manutenção de bronzes antigos. Essa é uma aplicação que desenvolvi no Musée Rodin há muito tempo atrás. É interessante propor um conceito que eu fiz surgir por experimentação.

Um desafio desse trabalho em São Paulo é fazer a transferência de expertise. Por exemplo, no Canadá, há 20 anos atrás, eu fui contratado pela Prefeitura Municipal de Montreal, e isso só se formalizaria se eu levasse pessoas de Quebec para formá-las em conservação de bronze, o que eu fiz com mais dois amigos de outros países. Em cinco ou seis anos o pessoal do Canadá nos dispensou, pois formou sua própria equipe. Isso é uma ótima faceta do trabalho. Lá, isso foi realizado por contrato, aqui é mais informal. Mas também é o resultado de uma longa abordagem, porque eu fiz minha primeira conferência na Bahia em 2003, dei uma aula na Pinacoteca em 2005, fiz estudos preliminares há dois anos atrás sobre esse monumento de parede, é normal que essa aproximação leve tempo. Houve também um bom link com o Senai, porque dei aulas lá, em que desenvolvi um campo específico da fundição artística.

Há dois rapazes brasileiros que não estão aqui hoje, mas estão acompanhando o trabalho, e conhecem muito bem o processo de fundição. Eles podem se especializar em restauro. Ou seja, estão aqui três pessoas francesas, outra argentina, no último mês uma garota tunisiana, e os três brasileiros, incluindo a Mariana (que estava na obra durante a entrevista). Temos uma espécie de campo de trabalho internacional, o que é muito bom para todos, inclusive para mim, porque descubro novos produtos. Por exemplo, para a limpeza, na França estou habituado a usar sementes de damasco trituradas (que são usadas em pistolas de ar comprimido para fazerem a abrasão da sujeira), no Canadá usei cascas de nozes e aqui eu descobri a noz do coco, o endocarpo da macaúba (a casca rígida do fruto da macaúba que fica entre a polpa e a semente), que é muito similar às outras. Encontrei uma nova matéria-prima e, com ela, um novo entusiasmo sobre o tema que pratico há cerca de 30 anos na França. Lá, todo mundo me conhece e conheço todo mundo, então é gostoso ir para outro país com novas pessoas, para quem tenho algo a passar, e que me traz novos produtos para o trabalho.

Detalhe do alto-relevo antes do restauro
Detalhe do alto-relevo antes do restauro

Você visitou outros monumentos em São Paulo?

Na verdade, não. Eu conheço monumentos da Pinacoteca, do MAC USP, o Monumento Amizade Sírio-Libanesa, que fica numa praça pequena (no Centro da cidade) e a estátua de Giuseppe Verdi na região da República.

Do que você viu, o que você pensa da conservação dos monumentos em bronze na cidade de São Paulo?

Esse é um novo campo em São Paulo, não há muita coisa feita, mas há o Departamento de Patrimônio Histórico (orgão municipal que conserva monumentos em São Paulo), que está tomando conta de tudo e tem um programa de restauro em fase inicial desde um par de anos. Com a continuidade desse projeto, quando há treinamento de pessoal, cria-se uma área de trabalho promissora para profissionais do restauro. Essa é a ideia. Na França, não faz muito tempo, há cerca de 30 anos ninguém ligava para as esculturas. No Canadá, há 20 anos, acontecia o mesmo. Isso é normal, é algo que depende do contexto econômico e cultural. As iniciativas para a solução desses problemas são lentas, e, quando há tantos outros problemas econômicos que são prioritários, por que cuidar de monumentos? Mas nas cidades os monumentos são muito importantes do ponto de vista simbólico, então é muito bom buscar intensificar esse processo, iniciando essa redescoberta do Parque da Independência. É uma forma de descobrir particularidades técnicas, como o fato de que esse bronze tem alguns problemas de fundição e montagem, o que é típico da técnica de fundição ainda incipiente aqui na época, criada quando o monumento foi construído. O que aconteceu no Brasil entre os séculos 19 e 20 é praticamente o mesmo que se passou na França no século 16, porque então ninguém sabia como fazer estátuas. Foram chamados escultores italianos que viajaram à França e ensinaram esse métier, porque antes tudo o que se fazia com bronze eram canhões, armas, de uso militar. Mas quando não havia guerra, de tempos em tempos não há guerra (risos), eles se perguntavam o que fazer nas fundições. “Vamos chamar alguns italianos para nos ensinar a fazer esculturas!” (risos)