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A instalação Trapézio ou Uma Confissão, de Wesley Duke Lee, foi criada para a Bienal de Veneza de 1966 e é uma das raridades da coleção Roger Wright em exibição na Pinacoteca de São Paulo (Foto: Isabella Matheus/ Cortesia Pinacoteca)
Postado em 30/09/2016 - 10:00
Joias reveladas
Exposições trazem a público os acervos monumentais de Roger Wright e do casal Andrea e José Olympio Pereira
Luciana Pareja Norbiato

“Minha dica para quem quer colecionar é não fazer isso por pura especulação. Porque, se você compra uma obra de arte apenas pelo valor que ela pode alcançar, pode se decepcionar se ela não cumprir esse destino. Aí vai sentir desgosto cada vez que passar por ela na sua casa. Mas, se você compra uma obra por razões afetivas, não importa o preço de mercado, ela lhe dará uma alegria sem tamanho sempre que você olhá-la.” Foi essa a dica que José Olympio da Veiga Pereira deu a colecionadores neófitos em bate-papo no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em agosto deste ano. Por aí imagina-se a relação que um colecionador particular cria com suas peças. Cada trabalho é comprado por uma razão, em um determinado contexto, e passa a fazer parte da vida de seu proprietário. São tesouros restritos ao círculo permitido pelo colecionador, mesmo quando emprestados para mostras. Mas duas exposições hoje em cartaz em São Paulo trazem à tona os segredos de duas das mais importantes coleções particulares do Brasil: de Roger Wright e do casal Andrea e José Olympio Pereira, respectivamente, na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Instituto Tomie Ohtake.

Os acervos têm características bastante diferentes, mas não seus donos. Roger Wright, nascido na Inglaterra e criado pelos tios no Rio Grande do Sul, foi um dos sócios fundadores do Banco Garantia, pioneiro na venda de ações brasileiras no exterior. A mesma instituição onde José Olympio Pereira começou a carreira, até chegar ao cargo atual de presidente-executivo do banco de investimentos Credit Suisse.

In-Out Antropofagia (série Fotopoemação, 1973/2008), de Anna Maria Maiolino (Foto: Paula Alzugaray)
In-Out Antropofagia (série Fotopoemação, 1973/2008), de Anna Maria Maiolino (Foto: Paula Alzugaray)

Tanto Pereira quanto Wright começaram a comprar arte no início dos anos 1990, mas o futuro de suas coleções será radicalmente diferente. Enquanto o primeiro não tem planos para a posteridade (“talvez ajudar algumas instituições de arte”), uma tragédia abreviou a continuidade do acervo do inglês: em 2009, dias antes de Wright completar 57 anos, o avião bimotor que o transportava para Trancoso (BA) com sua mulher, os dois filhos e os netos, caiu na mata fechada e explodiu, matando toda a tripulação. O espólio ficou sob responsabilidade da mãe de Wright, Ellen Mouravieff-Apostol, e do meio-irmão Christopher. “Ele não tinha um plano concreto (de colocar as obras em uma instituição pública), como não tinha, inclusive, nenhum plano de desaparecer, como desapareceu. Mas era muito generoso, adorava o Brasil, adorava a arte brasileira e, certamente, um dia essa seria a ideia. Tenho certeza de que estou fazendo o que ele teria feito”, diz à seLecT Christopher Mouravieff-Apostol, responsável pelo contrato de comodato de 178 das 300 peças da coleção de seu irmão com a Pinacoteca do Estado de São Paulo.

O público agradece. A coleção de Wright constitui um conjunto significativo da vanguarda dos anos 1960. É um recorte de 80 trabalhos desse período que a Pinacoteca exibe até 2019, em parte do andar térreo. “Esta exposição integra a mostra de longa duração que se chama Arte no Brasil: Uma História na Pinacoteca de São Paulo. Ela começa com uma seção da era colonial até a década de 1920; vamos abrir uma seção de 1920 a 1950, e a mostra do Roger Wright complementa, chegando até meados dos anos 1980”, explica à seLecT José Augusto Ribeiro, curador da mostra Vanguarda Brasileira dos Anos 1960 – Coleção Roger Wright. Trazendo a produção dos artistas que então resistiam à ditadura militar (1964-1985) por meio de novas formas estéticas – apropriações do pop e das tecnologias incipientes, tridimensionalidade, incorporação do espectador na obra –, a mostra tem preciosidades quase inéditas do grande público. Entre elas, Trapézio ou Uma Confissão (1966), um enorme ambiente imersivo de Wesley Duke Lee. Há também trabalhos emblemáticos de Rubens Gerchmann, Carlos Vergara e Tomoshige Kusuno, entre outros. Mas o segredo que os trabalhos revelam coletivamente é o retrato de uma geração que usou a arte para lidar com seu tempo. “O caráter sistemático das aquisições do Roger foi decisivo para a constituição de um conjunto que, como núcleo, é importante. Esse é um dos principais conjuntos desse período”, diz Ribeiro. A capacidade de síntese e abrangência é a característica de outra exposição de coleção particular focada em recorte específico, na Galeria Estação, em SP. Um Certo Olhar – Coleção Celma Albuquerque apresenta um recorte do acervo da galerista mineira especializada em arte popular e falecida em dezembro de 2015.

Aula magna
A exposição Os Muitos e o Um: Arte Contemporânea Brasileira na Coleção Andrea e José Olympio Pereira evidencia a qualidade individual de cada obra para estimular uma experiência estética única em cada espectador. “Sou professor de arte (em Yale) e trabalhei no MoMA, então tenho um enorme respeito pelas pessoas que partem de um pensamento estruturado. Mas acho que a primeira experiência com a arte deveria ser aquela que não passa pelo saber, mas pelo olhar”, diz à seLecT Robert Storr, curador norte-americano, duas vezes diretor da Bienal de Veneza, convidado pessoalmente por José Olympio para realizar o recorte, com a ajuda de Paulo Miyada, curador do ITO. “Eu e Pereira temos uma relação de longa data. Foi um desafio trabalhar com uma coleção tão grande em um espaço lindo, mas não usual”, completa Storr.

Surpreende na exposição a abrangência de trabalhos de qualidade máxima, de fases sempre consideradas icônicas – mais expressivas e valiosas – de cada artista. Entre eles, Waltercio Caldas, Tunga, Anna Maria Maiolino, Carmela Gross, José Damasceno e Alfredo Volpi, este com uma dezena de peças ocupando majestosamente a sala redonda do instituto. O conjunto de 300 peças de mais de cem artistas brasileiros impressionou especialistas. Na abertura da mostra, estimava-se que o valor dos trabalhos expostos seria de algo em torno de R$ 500 milhões. Não à toa, o casal ocupa a 68ª posição no ranking dos cem maiores colecionadores de arte do mundo divulgado em junho último pelo site ArtNet.
Nem a dona da coleção, Andrea Pereira, vê com frequência todas as suas mais de 2 mil obras, majoritariamente contemporâneas, dos anos 1950 até hoje. “Há uma parede do Henrique Oliveira com um de seus relevos, que antes estava guardada e havíamos acabado de instalar em casa. Não se passaram duas semanas e o curador pediu a obra para a exposição”, conta à seLecT. “Quando vi, tomei um susto. Pensei: ‘Nossa, tudo isso é meu’?”

Trazida à luz, a coleção confirma ao curador internacional que “em nenhum lugar das Américas há maior efervescência artística do que no Brasil”, segundo declarou. Para o público, é uma aula magna de arte contemporânea. “Enquanto a obra de arte é segredo, ela não acontece como um bem cultural social. Quando ela é vista, passa a ser parte da cultura de um povo”, diz Miyada.