A cozinha do site-specific Restauro, de Jorge Menna Barreto, não segue receitas e não repete um prato. Para o artista e pesquisador, que é professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o site-specific não é uma categoria artística, mas um método de trabalho. Em outras palavras, ele explica, não é um espaço físico, mas um espaço praticado. Ele também chama seu projeto para a 32ª Bienal de São Paulo de escultura ambiental.
O artista decidiu não fazer uma representação de floresta, como poderia ter feito, usando fotografia, filme ou desenho. O que Menna Barreto quer mesmo é pensar como uma floresta, conta ele, citando um texto de Dion Worcman que traduziu (An Introduction to Thinking Like a Forest).
Restauro é um restaurante-obra, aberto diariamente enquanto durar a Bienal. O público é o motor do trabalho. O alimento é o protagonista da mediação.
Jorge Menna Barreto nasceu em Araçatuba (SP), em 1970, e fez toda a carreira acadêmica em Artes. O bacharelado foi em Porto Alegre, na UFRGS, de onde trouxe um sotaque gaúcho familiar. O mestrado foi na ECA-USP, onde também se doutorou em Poéticas Visuais. O pós-doutorado foi em Florianópolis, na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Hoje, ele vive e trabalha no Rio de Janeiro, mas tem passado a maior parte dos dias em São Paulo, com uniforme de cozinheiro, recebendo os visitantes-clientes no restaurante da Bienal.
O trabalho é resultado direto da pesquisa sobre as relações entre agroecologia e as práticas site-specific em arte, que realizou no pós-doutorado na Udesc. “Não é um quiosque vegano funcionando”, disse o artista à seLecT. “É um projeto anfíbio. São questões que me afligem há muitos anos e encerram uma problemática. A gente está diante da fome das pessoas. Aquilo que a gente come define a paisagem em que vivemos. O trabalho é endereçado à célula do seu corpo, no que traz e no que deixa de trazer. Restauro pretende não apenas restaurar as nossas energias, mas também fazer uma regeneração ambiental a partir de um cardápio 100% à base de plantas”, diz ele. “Não é apenas alinhado com um propósito mais amplo, expandido. Além de uma comida politizada, ou um ativismo alimentar, a gente pretende que nossa comida seja encantadora. Diversidade contra a monotonia. Pensar como uma floresta. Pensar a partir da diversidade. Sustentar a vida de muitas espécies. Aceitar a espontaneidade dos alimentos.”
Restauro explora uma grande variedade de ingredientes, preparados com técnicas diversas e servidos de forma criativa em potes de vidro transparentes reciclados. O resultado surpreende em complexidade de texturas, cores, aromas e sabores. Na equipe de Menna Barreto está a inventiva banqueteira Neka Menna Barreto, sua prima. O trabalho começa no apoio financeiro que eles dão a vários produtores agroflorestais (“Comprar é a única forma de apoio”) e vai até a compostagem do que sobra da cozinha. Plantas colhidas em trabalhos que estão na própria Bienal, como a obra-horta da portuguesa Carla Filipe, também vão parar na cozinha de Jorge Menna Barreto.
Não há encomendas específicas aos produtores. Cozinha-se o que a natureza dá com pouca ou nenhuma intervenção dos homens. Alimentos com origem na monocultura e aqueles criados com agrotóxicos não entram ali. Barreto menciona que haveria 25 mil espécies comestíveis de plantas no mundo, entretanto, 70% da alimentação viria de apenas cinco espécies: trigo, arroz, batata, milho e cana. A cozinha de Jorge Menna Barreto também não está interessada em carne. “Cerca de 90% do desmatamento da Amazônia é causado pela agropecuária. É importante que a gente reflita sobre os nossos hábitos alimentares, para gerar uma intencionalidade naquilo que comemos e para que o desmatamento não seja um acaso, mas algo que possamos reverter a partir da simples escolha que fazemos três vezes por dia.”
Ele se sente mais pós-hippie do que hippie, já que se interessa por tecnologia e questões industriais. “O que Restauro traz como novidade é a dimensão econômica. Lido com dinheiro”, diz o artista. Entre as características econômicas desse restaurante-obra, além de “praticar a agrofloresta”, está cobrar preços justos, duas ou três vezes menor que os valores cobrados no restaurante vizinho do MAM, por exemplo. Com isso, o restaurante serve igualmente aos funcionários da Bienal, entre eles os mediadores.
Foi o mesmo MAM que mostrou no 32º Panorama da Arte Brasileira a série Desleituras. Criada em 2010, é composta de capachos de material vinílico contendo contrações de palavras, como Dexistir, Infixidão, Eusência, Desvisão, Doceano, Indestino, Nadagem, Improvisório e Espenso. Ao estranhamento se segue o desvendar das palavras que foram fundidas. E de por que teriam sido fundidas.
No Panorama, o público era convidado a colocar o capacho na frente de uma obra que lhe parecia ter relação com o termo, servindo ao trabalho dos mediadores do museu. Hoje, os capachos são vendidos pela Galeria Carbono como projeto, com direito a troca, caso se danifiquem com o uso. Jorge pensou que esses capachos seriam sempre usados no chão, entre um “dentro” e um “fora”, nunca pendurados na parede. Afinal, são palavras fronteiriças para locais fronteiriços. “Fronteiras são espaços de fusão linguística”, comenta. Esses capachos foram a conclusão do seu doutorado em Artes na ECA-USP.
Um trabalho mais antigo, que também expressa sua relação amorosa com as palavras, é Con fio, de 1998. São dois tijolinhos de cobre, num deles está escrito Con e no outro, fio. É na operação de aproximar os dois tijolinhos que surge a palavra Confio. Na versão original, Menna Barreto mandou fundir 400 quilos de cobre. Os tijolinhos foram distribuídos para o público da exposição Remetente, em Porto Alegre. A obra continua a receber atualizações.
A atualização, aliás, é uma característica de seus trabalhos, como Massa, mostrado na Bienal de Havana, em 2000. Quando cada visitante se aproximava de uma escrivaninha, uma pessoa perguntava qual era o seu peso. Esse peso era somado ao peso coletivo dos visitantes anteriores. O peso coletivo acumulado até o momento era então carimbado numa sacola de papel kraft, que o visitante podia levar embora. Esse trabalho já teve continuidade em Fortaleza, São Paulo e Belo Horizonte. Cada etapa do projeto partiu do peso resultante da cidade anterior.
Nota-se que a noção do coletivo e de como traçamos a história da humanidade e do planeta está no centro das preocupações de Jorge Menna Barreto. A pergunta que não quer calar é se Restauro vai ter continuidade. O que será da cozinha de Jorge Menna Barreto quando a Bienal acabar?