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Postado em 22/07/2012 - 2:32
Jovens, enlouqueçam
Todas as antologias falham, até mesmo quando são boas antologias, como é o caso desta Granta – Os Melhores Jovens Escritores Brasileiros...
Ronaldo Bressane

Sei bem: estou no meio da famigerada Geração 90 – Os transgressores, que tomou lá seu quinhão de tomates. Polêmicas várias esmiuçaram o subtítulo, até mesmo antes do lançamento do livro, como se pode ler nesse engraçadíssimo post do blog da Raquel Cozer – não perca os comentários furibundos. O pensador Francisco Bosco refletiu sobre o motivo básico de tanto ódio voltado à eleição dos Vinte Melhores e cometeu um belo artigo sobre as vicissitudes da meritocracia numa sociedade que se pretende democrática.

Os rejeitados abriram um constrangedor blog com os textos que não foram aprovados. Santiago Nazarian, que talvez pudesse estar aqui, escreveu com mordacidade sobre o sentimento de estar de fora. A revista Época, numa matéria confusa, caiu na lábia do escritor Felipe Pena, organizador de Geração Subzero – Autores congelados pela crítica e amados pelos leitores, para duelar as duas antologias (Raquel fala mais sobre o assunto aqui). André Barcinski, por fim, lembrou que, à parte a grita trazida pela Granta, ninguém lê porra nenhuma no Brasil e a controvérsia está ou condenada ao vazio ou ao zunzunzum levantado pelas moscas que habitam as garrafas peludas da Mercearia São Pedro, bar da Vila Madalena paulistana que é notório reduto de mais da metade dos escritores desse livro – quase todos com quem dividi balcão.

Pois é: de cara alerto ao leitor que este é um texto viciado, posto que sou amigo da maioria. Mesmo assim resolvi tentar o que, à parte o crítico Adriano Schwartz em um escasso artigo na Folha de S.Paulo e o professor Felipe Charbel em sua crítica ferina n’O Globo, poucos de fato fizeram: ler a antologia e resenhá-la texto a texto.

Uma das falhas mais evidentes do livro me parece ter sido a pressa por lançá-lo na Flip. Tudo bem, ler quase 300 contos em pouco tempo não é mole, e o processo de seleção costuma ser um porre, mesmo que no júri estivessem leitores poderosos, entre eles Manuel da Costa Pinto, Beatriz Bracher e Italo Moriconi. Assim, as eventuais gralhas de edição, errinhos de revisão tolos, repetições de palavras e, no aspecto físico, o papel ruim, a ausência de orelhas (desbeiçando a capa), o pouco inventivo projeto gráfico e as fotos horríveis (tirando as das moças, claro) dão ao volume um aspecto de coisa feita nas coxas. Outra falha é a de misturar contos com trechos de romances: se os segundos demonstram a ambição dos autores, perdem dos primeiros no conceito básico da tensão e acabamento definitivos próprios ao gênero. Este não é o defeito maior, mas sim o de deixar claro que, no meio desses vinte, há evidentemente três pelotões.

Os Craques, que talvez nem devessem estar ali, e sim em uma antologia com os Melhores Brasileiros; o Banco de Reservas, em que surgem as confirmações felizes de escritores com alguns títulos já lançados, este sim o núcleo do livro; e a Peneirinha, onde os jogadores podem ou estar voando daqui a uns anos ou ainda necessitando, como de fato estão, de arroz e feijão e fermento. São, todos os vinte, ótimos escritores, e um que outro poderia talvez ser substituído por outro ótimo escritor que ficou de fora (jamais citarei quem). Mas enquanto há obviamente raros Messis e muitos Neymares, há vários Gansos e até uns Lulinhas (quem lembra da eterna promessa do Corinthians?) que tornam o jogo todo bastante desigual.

PENEIRINHA
Invertendo a pirâmide da crítica formal (primeiro as qualidades depois os defeitos), começo pelos que precisam de sustança pra botar de pé a obra. E digo porquê: é simplesmente covardia colocar ao lado do crítico Vinícius Jatobá, que nunca publicou ficção, um Daniel Galera, tradutor e editor de quatro costados já no quarto romance. O conto do carioca, “Natureza-morta”, é um longo fluxo de consciência faulkneriano vertido em sôfrega pontuação, cortado vez em quando por cenas de uma casa em pedaços. Percebe-se que o narrador recorda episódios de sua vida pobre como polícia e bandido num subúrbio carioca, em uma voz que às vezes se pretende mimética da personagem e às vezes do autor, ocasionando tanto imagens felizes quanto flashes de clichês ou palavras “poéticas” em demasia.

Em “Teresa”, o editor e contista paraibano Christiano Aguiar incorre nesse perigo da “prosa poética”. Seu conto, o único com ressonâncias a um realismo fantástico e/ou maravilhoso (por que o realismo se tornou expressão dominante na literatura brasileira? falta de imaginação?), apoiado em uma linguagem bíblica, por vezes é de um lirismo “mole” que desperdiça a potência do argumento, sobre uma família dissolvida pela seca em alguma paragem anônima do Nordeste. O carioca Miguel Del Castillo faz um mergulho na memória, sombreada por perseguições políticas à família, de origem uruguaia, na época da ditadura. Dali emerge a figura de “Violeta”, avó de um primo militante, acometida de alzheimer, de certa forma símbolo de uma perdida delicadeza austral. Um texto contido, sem no entanto tensão dramática. O espectro dos anos sob os coturnos de ditadores bem como certa nostalgia da latino-americanidade perdida também são percebidos no conto do jornalista paulistano de ascendência argentina Julián Fuks, “O jantar” – em que o narrador faz uma visita à durona matriarca portenha. Aqui, a linguagem de feição psicanalítica é infelizmente embaçada por pompa e solenidade em demasia.

Tensão e humor são obtidos graças a um trabalho agudo de linguagem em “O que você está fazendo aqui”, da socióloga gaúcha Luisa Geisler, a caçula da antologia (21 anos). Em frases e períodos curtos, esboça-se a fragmentação espaço-temporal do protagonista, um alto executivo de uma agência internacional que está sempre em uma escada rolante de algum aeroporto do mundo, pensando se vai se entregar à relação com uma alemã enquanto é acossado por seu smartphone. Limitam o alcance da narrativa repetições de palavras e o bobo refrão Weltanschaaung (cosmovisão, em alemão) interrompendo os parágrafos, aceno infeliz à falta de espiritualidade do zeitgeist reinante e rolante. Também cosmopolita, a poeta carioca Laura Erber traz uma narrativa muito segura em “Aquele vento na praça”, em um texto bastante bem escrito, que, tratando da relação entre um agente da Tate Modern e um obscuro escultor romeno, lembra o primeiro Rubem Fonseca e alguns autores pós-modernos em sua discussão sobre os limites da arte e do mercado. O tom seco e cerebral, no entanto, são revestidos por uma frieza que não traz muita empatia à leitura.

BANCO DE RESERVAS
Melhor cronista brasileiro em atividade, o roteirista paulistano Antonio Prata segue em “Valdir Peres, Juanito e Poloskei” sua veia de memorialista. Ao esmiuçar em detalhes preciosos uma infância passada no começo dos anos 80, revela como as diferenças entre os brinquedos refletem os abismos sociais. O tom agridoce, leve e simpático, porém, não esconde certa frouxidão narrativa que um conto não pode ter. Mais longe da zona de conforto, o editor paulistano Emilio Fraia realiza em “Temporada” um conto perturbador, mais pelo que não diz pelo que diz. Um solitário fazendeiro recebe uma visita de um sujeito que o faz lembrar um episódio da juventude: ambos os tempos da narração são obscurecidos por uma ameaça difusa que nunca se explica ou se desvela, em uma linguagem sóbria e descarnada que lembra Mario Bellatin. A co-autora com Fraia do livro O verão de Chibo, a jornalista e tradutora paulistana Vanessa Barbara, publica um trecho do romance que ora escreve, Noites de alface, em que esboça os primeiros dias de um homem que acabou de enviuvar. Embora o texto tenha aqui e ali sentenças lapidares, marcas costumeiras da arguta linguagem de Vanessa, a rotina do velhinho antes e pós viuvez é tão fofamente chata que deixa a desejar ao prosseguimento do romance alguma aventura que não seja dar chineladas em baratas ou comer couve-flor.

Dois cariocas trazem olhares díspares em relação à sua cidade. A romancista Tatiana Salem Levy narra, na primeira pessoa, a experiência de uma mulher que volta ao Rio de Janeiro depois de sete anos fora, ao mesmo tempo em que lida com a separação de seu amor. Em “O Rio sua”, a condução fluente e ensolarada contrasta, infelizmente, com o excesso de clichês na linguagem e na “explicação” do Rio (cidade que cultua o corpo, a alegria, a beleza da paisagem etc etc etc). Seu conterrâneo, o excelente cronista JP Cuenca, persegue o caminho contrário: seu protagonista, lido na terceira pessoa, sente-se abandonado pela cidade. Se há reparo no texto “Antes da queda”, abertura de seu quarto romance, é que ele mais parece uma introdução do que exatamente uma narrativa – mesmo assim, poucas vezes se leu descrição tão sarcástica e virulenta do Rio contemporâneo: é como se Cuenca demonstrasse seu amor à cidade através do desvelo das hipocrisias que compactuam com o cartão-postal.

Movimentos psicológicos sutis e hesitações do desejo são temática usual da escritora chileno-carioca Carola Saavedra. Comparecem em seu “Fragmento de romance” com a costumeira velocidade de diálogos, arte bem dominada pela autora, que tem ótima audição para a respiração e os atos falhos de suas personagens – pena que a titubeante relação entre uma jovem hostess de boate e um escritor mais velho finalize de forma brusca. É um problema semelhante ao texto da tradutora gaúcha Carol Bensimon, cujo “Faíscas” é também um fragmento de romance – no entanto, a leveza do texto e a voracidade em beber o mundo feito Coca-Cola das duas amigas que partem em uma viagem sem destino pelo interior do Rio Grande do Sul são indícios de um texto ainda mais consistente do que seu bom par de livros anteriores.

Certa estética farsesca, de cunho metaliterário, comparece em dois textos bastante diversos. Com humor tipicamente pós-moderno, em “F para Welles”, o editor gaúcho Antônio Xerxenesky imagina uma assassina contratada para matar o diretor de Cidadão Kane. Passeando por referências pop como Joy Divison e o cinema dos anos 50, o texto, narrado na primeira pessoa, brinca com os clichês do romance policial. Sem humor nenhum, como é de praxe em sua obra de linguagem monocórdica, o paulistano professor de literatura Ricardo Lísias faz em “Tólia” uma bizarra autoficção em que o narrador, homônimo ao autor, viaja à Rússia para aprender a língua e jogar xadrez e acaba entrando para uma seita – projetando-se no futuro, o conto tem o mérito de aproximar à narração ultrarealista o tom do fantástico.

A morte da mãe é um fantasma para os dois textos mais bem realizados desta seção. “Mãe”, de Chico Mattoso, mostra um escritor em busca de identidade às voltas com a obsessão por imaginar o que aconteceria se sua mãe morresse – até que ela morre mesmo. A prosa polida do paulistano nascido em Paris interrompe-se repentina ao final do texto, o que nos deixa sem saber se se trata de um trecho de romance ou de uma narrativa em suspensão. Já em “A febre do rato”, do baiano-santista de ascendência chilena Javier Contreras, o narrador confronta a perda da mãe com a dura rotina após um acidente de automóvel, em que quebrou a perna. O cotidiano é animado pelo trabalho de tradutor do russo e acelerado pelo uso da cocaína (lembra muito o protagonista de O passado, de Alan Pauls). Nesse texto de pendor dostoievskiano, o surgimento de um rato torna a tensão quase insuportável. Mais um pouco e Javier e Chico sobem ao time de cima.

CRAQUES
O trio de atacantes que eu nem colocaria nesta antologia é formado por editores gaúchos de ascendência judaica: Michel Laub, Leandro Sarmatz e Daniel Galera. “Animais”, a ficção de parágrafos numerados de Laub, conta reminiscências autobiográficas assombradas por bichos como hamster, pato, gato, cachorro, lobo e ariranha, fragmentos de lembranças que sustentam uma bela elegia ao pai morto. O inventivo esquema enumerativo deste zoo, apresentado de modo leve e seco, represa uma emoção que se desprende com impacto no último período – sim, é assim que se conta um conto, folks. Em registro totalmente diverso, Sarmatz aproxima-se de Saul Bellow e Martin Amis para dar voz a um raivoso personagem que, às portas da morte, rememora ao filho sua vida. Entre humor rasgado e uma sinceridade desnorteante, o narrador conta suas memórias de judeu abrasileirado, em um monólogo que demonstra o ouvido esperto de Sarmatz, também dramaturgo. Por fim, em “Apneia”, Galera oferece a abertura de seu novo romance, Barba ensopada de sangue. Embora sejam só as 20 páginas iniciais de um livro de mais de 400, o texto tem uma inteireza sólida própria a grandes contadores de história, como Érico Verissimo e Cormac McCarthy. Um filho à procura da própria identidade e um pai desesperançado discutem a razão por que este anunciou que em breve dará fim à própria vida – e muitos causos se enovelam em um caudaloso diálogo, de onde sobressai a fascinante figura do avô, imperfeito espelho para o neto. Tecnicamente um texto sem reparos, de impressionante segurança narrativa, esboça-se neste trecho um dos lançamentos mais impactantes de 2012.

Falhas e gralhas apontados pelo crítico ranheta, ressalte-se a importância por mostrar, ainda que desigual, um bom conjunto de narradores da cena atual – sem falar que a polêmica levantada pelo lançamento, como costuma acontecer com toda antologia, nos faz refletir sobre o estado atual da nossa cultura, o que não é pouco. Pensando-se nos nomes, não creio em injustiças: para além do mérito deste ou daquele texto, é interessante notar que todos são escritores que tiram seu sustento diretamente da literatura ou da palavra escrita – e este é o caminho para a literatura brasileira se profissionalizar e brigar com as literaturas do mundão, a anglófona, a hispânica, a francófona, a alemã. Para o gosto pessoal deste leitor, se sobram repertório e técnica aos jovens escritores, falta experimentação formal; há menos busca de inventividade e imaginação do que apoio na observação e na própria experiência. Em outras palavras, há mais boas intenções do que tentativas de impossível, ainda que frustradas; mais eficiência do que loucura. Fico torcendo pelas coisas geniais que leremos quando os jovens melhores ficarem velhos – e piores.