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Postado em 20/10/2011 - 6:19
Latinos for export
Nirlando Beirão

Nosotros, de Latinoamerica, passamos muito tempo importando Coca-Cola e ketchup Heinz. Pero ahora, yes, tenemos até executivos para exportação

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(Colagens do artista Nino Cais)

Países vendem e compram mercadorias. No âmbito das trocas culturais, também barganham signos e imagens. Às vezes, essas imagens, impregnadas de simbologia e até de afetividade, acabam por se transformar em mercadorias.

O capitalismo é implacável: imagens são também submetidas ao cálculo do valor agregado. Daí a diferença entre Beatriz Milhazes, com suas detonações cromáticas de mais de milhão de dólares, e Maria Martins, a escultora ainda hoje subavaliada e que, no entanto, Marcel Duchamp amou em todos os sentidos. O tribunal financeiro dos leilões não busca a suposta justiça artística, rende-se ao pragmatismo da oferta e da procura. Nosotros, de Latinoamerica, passamos muito tempo importando Coca-Cola, ketchup Heinz e Chevrolets rabo-de-peixe e exportando café, açúcar e jogadores de beisebol. O mais americano dos esportes só tem Martinez, Reyes, Delgados. Na mão dupla do tráfego comercial, consumimos, mas também exportamos mitos.

Que a Virgem de Guadalupe os abençoe. Mitos é que nos fazem entrar na foto panorâmica da caótica geopolítica da globalização. 

Che Guevara. Carmen Miranda. Evita Perón. Frida Kahlo. Yma Sumac. Diego Rivera. Ricardo Montalbán. Tito Puente. Célia Cruz. Katy Jurado. Cesar Romero. Cantinflas. O Zé Carioca. Vem de longe o fascínio das nações da parte de cima do mapa-múndi com nosso elenco de hot latinas e de latin lovers, de bombshells de quadris generosos e de revolucionários de sangue quente. Hoje temos Neymar, Messi, Bündchen, Santoro, Saldanha, Darín e Herchcovitch. Mas essa é outra história.

Até o século 19, os colonizadores da Europa aprenderam a nos tratar com condescendência e paternalismo; no século 20, o novo colonizador da América quis nos tratar a dólar e chicote. Na relação entre o poder hegemônico e o courtyard dependente, a desigualdade nos reduzia ao mero estereótipo. Latino era nicho e ali devia resignadamente ficar. Aprisionados no que eles queriam que fôssemos, arrastamos em lamúrias e ressentimento a síndrome de underdog, ou como disse Nelson Rodrigues (um escritor que os americanos jamais vão entender), o complexo de vira-lata.

Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, expôs num vilarejo qualquer a alegoria latino-americana de figuras espectrais que não há como dizer se são reais, se são fantasmas, se são miragens. Bem que a literatura depois tentou quebrar o molde, em busca de identidade própria, porém, acabou por impor outro, nas brumas entorpecentes do realismo mágico e nas exsudações calorentas de uma Macondo que extrapolou fronteira para se revelar intercontinental – o mundinho reiterado do P, prazer, preguiça, punição e putaria.

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Sul do Norte e Norte do Sul

Notem bem: escrevo no passado, refiro-me a pessoas, a situações, a conteúdos simbólicos que, nas chacoalhadas recentes da conjuntura mundial, ganham outras referências. Hegemonias políticas e culturais fraquejam nas cambalhotas das crises que começam no bolso para expor na sequência as mediocridades da alma. Tanto que o Tio Sam, como previa o velho samba de Assis Valente, teve de entrar na nossa batucada. E na salsa, e na rumba, e na cumbia, no mambo, e até na música cafona dos mariachis. O bumbo de Mercedes Sosa, em resposta vingativa, agora atordoa a cabeça dos ex-senhorios do continente.

Yes, no passado nós tínhamos bananas. Sí, hoy tenemos bacanas. Da Pequena Notável a galãs para exportação. Rodrigo Santoro, Gael García Bernal e Ricardo Darín fazem a América com uma determinação bilíngue. Hollywood já não nos humilha mais com a supremacia imperial da linguagem. Mudança drástica de temperatura: Alice Braga afronta o cânone estético antimorenas de um jeito que nem a tia dela, Sônia Braga, apesar de seus hits estrondosos (O Beijo da Mulher Aranha, Dona Flor), conseguiu suplantar. De uma geração para outra, barreiras caíram.

Hollywood bem que se esmerou naquilo que o crítico mexicano Octavio Paz, Nobel de Literatura em 1990, chamou de “deslocamento”: a impressão persistente do latino recém-chegado de flutuar no ar. “Flutua porque não se mistura nem se funde com o outro mundo, o mundo norte-americano, feito de precisão e eficácia. Flutua: não acaba de ser nem acaba de desaparecer” (em O Labirinto da Solidão).

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Foi-se o tempo em que a usina de mitos da América tinha de recorrer à branquela Nathalie Wood, quando a heroína latina, a Maria de West Side Story, era obrigada a seduzir plateias de capiaus de Delaware e do Tennessee. Hoje, Hollywood badala a esguia Penélope Cruz. Contudo, como o preconceito espreita em cada entrelinha de script e em cada urgência de casting, os assobios ainda contemplam a centimetragem de ancas de Jennifer Lopez e de Cameron Diaz. E enquanto Andy Garcia insistir em lembrar que é cubano, em sua impenitente militância anti-Fidel, não será nem a sombra de um Al Pacino ou um Robert de Niro.

Até as câmeras de Hollywood nosotros já podemos pilotar, com méritos reconhecidos de direção, do que dão provas Guillermo Del Toro, Robert Rodríguez, Walter Salles e Fernando Meirelles. Ninguém há de reconhecer neles qualquer sotaque latino, a linguagem é universal, se bem que cada um busque estilo próprio. Meirelles rodou seu novo longa-metragem 360 em seis países e dirigiu atores de nove nacionalidades diferentes. O mundo visto por um brasileiro? 

Carlos Saldanha, da milionária animação A Era do Gelo (três longas do tipo arrasa-quarteirão) inverte de vez, em Rio, o parâmetro da reserva de mercado. Ele que poderia, por CEP e formação, se fazer passar por um legítimo manhattanite, agora escancara sua paixão pela cidade natal e se regozija: sou brasileiro. Sul do Norte e Norte do Sul, o Brasil pipoca de ambiguidade ao definir se é ou não é um dos hermanos latinos. Em geral, quando se trata da cantilena “o mundo se curva”, a gente prefere dançar solo. 

Mas, já que interesses econômicos quase sempre aproximam mais do que vínculos eletivos, o sangue da latinidad tipo Mercosul começa a pulsar em nossas veias abertas.

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Talentos exportados

É de se orgulhar que o icônico Abaporu, de Tarsila do Amaral, imponha-se hoje, com merecida pompa, no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, em vez de repousar no MoMA, no MFAH (Museu de Houston) ou dormitar na sala de visitas de algum magnata de São Paulo. Um dia as escolas brasileiras ainda hão de ensinar quem foi Simón Bolívar antes que o cinema americano faça isso por nós (como já fez com Emiliano Zapata, arregimentando um Marlon Brando para lá de caricato).

Em ofícios de puro refinamento, igualmente, tais como a arquitetura, exportamos talentos (Isay Weinfeld e Marcio Kogan estão aí para não nos deixar mentir). Na moda, Alexandre Herchcovitch – para citar apenas um – abre alas na trilha aberta por Oscar de la Renta e Carolina Herrera. Mas, se for o caso de extravasar o espírito canarinho em berreiro de ufanismo digno de Galvão Bueno, vamos direto ao big business: quando um texano, um californiano bebe hoje sua Budweiser, ícone tão americano quanto o hot-dog e as sopas Campbell, está pagando royalties ao capitalismo made in brazil, zil, ziiiilllll.

Atende pelo nome de Carlos Brito o executivo que toca a Ab InBev, a maior cervejaria do mundo desde a compra da Anheuser-Busch pela joint belgo-brasileira da InBev, em junho de 2008. Outro Carlos – Carlos Ghosn, CEO da Renault/Nissan – é um de nossos executivos for export dignos de figurar no Hall of Fame da Harvard Business School. Nasceu em Porto Velho, Rondônia.

Na política, embora os argentinos tenham posteriormente desgastado o fascínio de ter uma mulher no poder, Eva Perón é de toda a galeria de ídolos de nuestra América o mais intrigante. Na representação do enigma latino-americano, a sra. Perón, madre de los descamisados em costume de Chanel, foi única. “Seu caráter excepcional não se mantém só pela beleza, nem pela inteligência, nem pelas ideias, nem pela capacidade política, nem sequer pela origem social, nem por sua história de interiorana humilhada que vai à forra quando chega ao topo”, escreve a crítica Beatriz Sarlo. Eva Perón era a soma desses elementos, todos juntos, combinação desconhecida num cenário em transformação.

O Primeiro Mundo comprou o mito Evita e o devolveu, em roupagem da Broadway e em figurino de Hollywood, como produto fotogênico da indústria do entretenimento, devidamente desidratado de política e de idealismo. No leito de morte, corroída ainda na flor da idade pelo câncer atroz, Evita teria dito, com aquele seu invariável pendor militante: “Volveré y seremos millones”. No simulacro gringo, ela voltou e era apenas uma – a Madonna.