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Sem Título (2015), da série Ágrafo, que esconde material secreto sob tecido branco semitransparente e cordas (Foto: Edouard Fraipont/ Cortesia Galeria Luisa Strina)
Postado em 09/11/2016 - 10:00
Laura Lima: decifra-me ou te devoro
Na série Ágrafo, de Laura Lima, reconhecemos uma familiaridade com o território surrealizante, ao mesmo tempo pragmático e disruptivo, estético e ético
Marta Mestre

Raymond Roussel, escritor considerado por André Breton como “o maior magnetizador de todos os tempos”, foi um desses ilustres desconhecidos que influenciaram meio mundo de conhecidos, e que anteciparam as experiências de flutuação entre significado e significante realizadas na literatura, no cinema e nas artes visuais do século 20. Em grande parte de seus livros – Impressions d’Afrique (1910) e Locus Solus (1914), entre outros – Roussel desenvolveu pioneiros procedimentos de linguagem que viriam a ser usados especialmente pelos dadaístas e surrealistas. Por exemplo, o uso extensivo de palavras homônimas ou parecidas, como é o caso de “billard” (bilhar) e “pillard” (saqueador), permitiu-lhe construir frases e textos arbitrários na forma e no conteúdo, elevando, assim, a potência patológica da linguagem.

Sem Título (2015), da série Ágrafo (Foto: Edouard Fraipont/ Cortesia Galeria Luisa Strina)
Sem Título (2015), da série Ágrafo (Foto: Edouard Fraipont/ Cortesia Galeria Luisa Strina)

Os jogos de palavras, praticados incessantemente ao longo de toda a sua vida, levaram-no a descobrir espaços insuspeitos na escrita e a atestar a existência de uma segunda realidade – não como repetição da primeira, mas como alternativa hilariante –, até cometer suicídio por excesso de barbitúricos em um hotel de Palermo, na Itália, aos 55 anos.

Sobre o lado anedótico de Roussel, conta-se que, depois de atravessar o Atlântico para conhecer a África, ele vislumbrou o continente da escotilha do navio e, satisfeito, pediu ao comandante que desse meia-volta. Verdadeiro ou não, o fato ilustra bem o desinteresse pela verificação etnográfica do século 19, dando-se início a um gosto pelas experiências da linguagem desvinculadas do real e totalmente abertas à primazia da imaginação, marca do século 20.

Sem Título (2015), da série Ágrafo (Foto: Edouard Fraipont/ Cortesia Galeria Luisa Strina)
Sem Título (2015), da série Ágrafo (Foto: Edouard Fraipont/ Cortesia Galeria Luisa Strina)

Ágrafo, de Laura Lima, decorre dessa genealogia deslanchada por Roussel, embora não chegue a reivindicar uma paternidade, pois não se trata de reconhecer uma filiação para daí exercitar o vocabulário “autorizado” do cânone. Ainda assim, reconhecemos uma familiaridade entre Ágrafo e outros trabalhos de Laura Lima com o território surrealizante, ao mesmo tempo pragmático e disruptivo, estético e ético.

Encoberta, dissimulada e insinuando-se continuamente, a questão principal que Laura Lima apresenta com Ágrafo diz respeito ao que ainda não nos foi dado, ou sequer foi formulado. Os objetos aí instalados existem em um tempo em que a linguagem não acontece. Um tempo em que as coisas, ainda sem nome (“ágrafo” significa “o que não está escrito”), levitam em suspensão sem aderir aos signos e aos atos narrativos. Por razão desse descompasso, “ágrafo” soa como um “vazio que arranha” (termo utilizado por Luiz Camillo Osorio ao referir-se ao trabalho RhR, 1999), um fosso escavado nas palavras, da mesma forma que soará sempre estranho o enigma saído da boca de uma esfinge antiga. As palavras nos magnetizam sem que seu conteúdo “se chegue a colocar”.

Procurando discernir a África através da escotilha inclinada do navio, Roussel pediu para regressar, desacreditando na experiência e acreditando em sua imaginação. Ou talvez não seja possível ser razoável, nem mesmo em alto-mar, ou aqui, diante desses objetos suspensos, cobertos por diferentes tecidos e amarrações de cordas que nos vedam o seu interior. Explico: os objetos caem das paredes de uma forma descoordenada e desequilibrada. Alguns dos formatos são familiares, principalmente os quadrados e os retângulos (esconderão pintura?), porém, os volumes e as formas pontudas desfazem as nossas primeiras suposições. De fato, não sabemos o que eles contêm, nem sabemos se virá a ser posta em prática uma estratégia de desvelamento, mas quem os venha possuir não escapará do enigma da esfinge. Porque ela continuará a nos olhar, a nos questionar, para, finalmente, nos devorar.

Inominável ou ocorrências do desejo
A ideia de decifração está, portanto, fora de questão para Laura Lima. Nem mesmo os glossários, aos quais a artista vem se dedicando, oferecem chaves de leitura. Nisso, o compositor Tom Zé, outro rousseliano sem o saber, tem aquele verso certeiro que parece vir ao caso: “Eu tô te explicando pra te confundir/ Eu tô te confundindo pra te esclarecer”.

Tecido, cordas, instrumentos, mármore e material secreto Sem Título (2015), da série Ágrafo (Foto: Edouard Fraipont/ Cortesia Galeria Luisa Strina)
Tecido, cordas, instrumentos, mármore e material secreto Sem Título (2015), da série Ágrafo (Foto: Edouard Fraipont/ Cortesia Galeria Luisa Strina)

Em alternativa, Ágrafo põe em marcha um jogo em forma de equação não linear, em que, de um lado, temos a linguagem e, de outro, a matéria. O que nos diz essa equação é que, quanto mais rarefizermos a necessidade de “grafar” (escrever, nomear, interpretar), mais aumentaremos a ocorrência de uma densa materialidade e substância. Partindo desse princípio, chegaremos a dois opostos complementares: no caso da linguagem, o balbucio ou a gagueira, e, no caso da matéria, uma erótica dos elementos.

Como surtos da linguagem, a gagueira ou o balbucio atualizam algo subitamente necessário e vital, criado por força de um encontro violento com o ainda não pensado e não pensável. Samuel Beckett chamou isso de “inominável” e Gilles Deleuze configurou-os como “ocorrências do desejo”. Ambos são evidências de um momento em que o compromisso entre significado e significante ainda não é grafado e o investimento discursivo é deslocado para a força da cena. Trazer uma vaca para passear numa praia de Ipanema (Vaca na Praia, 1994), por exemplo, ou a série de títulos fonéticos ou homônimos como Marra, Bala, Ágrafo, RhR são ocorrências expressivas de surtos.

Cordas, nós, liames, tecidos, padronagens, costuras ou redes sustentando objetos pendurados não estão aqui para dar concretude à cena, mas, antes, para enredar o espectador. Como no shibari, a arte japonesa de amarração por cordas, essa combinação de elementos imobiliza e investe contra a racionalidade instituída. Os objetos incorporam qualidades psicológicas e expõem marcas de sexualidade, dor e devassidão, expressas através da perfuração e do corte dos tecidos que cobrem os enigmas do interior.

Nuvem (2009) (Foto: Edouard Fraipont/ Cortesia Galeria Luisa Strina)
Nuvem (2009) (Foto: Edouard Fraipont/ Cortesia Galeria Luisa Strina)

Alguns autores preferem manter divididos os “cativeiros” do surrealismo e do construtivismo; em Ágrafo, ao contrário, perpassa a ideia de que é um erro apartá-los. O jogo da linguagem, solto e livre, reveste-se de uma densa materialidade. Sem contradição, Laura Lima nos mostra que a criação do enigma, enquanto práxis vital, acontece no momento em que a imaginação é “submetida” à maquinaria, que pode ser extremamente bela, mas também extremamente perversa: como podem ser a arte, a linguagem, a loucura, a escotilha de um navio, a esfinge.

Texto produzido para a individual de Laura Lima na Galeria Luisa Strina