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Versão chilena da intervenção O Museu É uma Escola (2009-em processo) realizada na fachada do Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos, em Santiago (Foto: Cortesia Alexander Gray, NY)
Postado em 04/01/2017 - 12:29
Luis Camnitzer: a arte como forma de pensar
O artista, crítico e pedagogo faz do corpo de sua obra artística e teórica um instrumento radicalmente dedicado à transformação cultural
Paula Alzugaray

“Em algum momento desafortunado da história, algum filisteu ou grupo de filisteus que ocupava uma posição de poder decidiu isolar a arte da educação e degradá-la da metadisciplina do conhecimento, como havia sido, à disciplina e artesanato que é hoje. Com isso conseguiram que, paulatinamente, o acento da atividade artística se concentrasse na produção de objetos, que a sociedade se dividisse em alguns poucos fabricantes e muitos compradores, e que a arte nas escolas fosse considerada um entretenimento de luxo prescindível, em lugar de permanecer como uma forma de pensar”.

Com estas linhas – premonitórias do estado atual da arte e da educação no Brasil –, Luis Camnitzer introduziu sua proposta para a curadoria pedagógica da 6ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, em 2009. O projeto visava, mais que exibir a inteligência dos artistas em exposição, estimular a inteligência do visitante, equipá-lo para ser também um criador e, finalmente, devolver à arte sua função de metodologia do conhecimento.

Fenster (Ventana,Window, 2001-2002/2010 - Foto: Cortesia Alexander Gray Associates, NY)
Fenster (Ventana,Window, 2001-2002/2010 – Foto: Cortesia Alexander Gray Associates, NY)

“Entretanto, seria ingênuo e arrogante pensar que uma 6ª Bienal do Mercosul possa conseguir tudo isso”, continuava ele. “Apenas podemos aspirar a criar um modelo que vá fertilizando lentamente o terreno para que, muitas gerações depois, se cumpra com uma revisão profunda da função social da arte.”

A mesma preocupação constante e a longo prazo rege a obra artística de Luis Camnitzer. Desde os anos 1960, quando realizou um de seus primeiros trabalhos conceituais, This is a Mirror, You are a Written Sentence (1966), em homenagem a Jorge Luis Borges e René Magrite, seus trabalhos configuram uma estratégia micropolítica para mudar o mundo. Impondo sutis e pequenas mudanças no corpo a corpo com cada espectador de sua obra, o artista vai fortalecendo seus argumentos para chegar a provocar uma reação em cadeia.

A obra de Camnitzer tem três engajamentos que podem ser considerados centrais: a linguagem, a educação e a América Latina. Seu livro Conceptualism in Latin American Art (University of Texas, 2007) é considerado um dos textos mais influentes sobre o assunto. A natureza internacional de sua biografia coloca-o em posição estratégica para pensar as coordenadas de centro e periferia. Nascido na Alemanha, em 1937, ele foi criado no Uruguai e reside em Nova York desde 1964. Mas considera que sua plataforma continua sendo a América Latina, mais precisamente a Montevideo dos anos 1950.

Library, 2006 (Foto: Cortesia Alexander Gray Associates, NY)
Library, 2006 (Foto: Cortesia Alexander Gray Associates, NY)

É de lá que ele observa o mundo e questiona a história escrita por aqueles que estão no poder. Um trabalho que aborda frontalmente essa questão é Art History Lesson nº 6, instalação composta de projetores de slides que projetam apenas luz, oferecendo ao espectador a chance de preencher os espaços em branco com seu próprio repertório imaginário. Em outras palavras, é dada ao leitor da obra a possibilidade de escrever outras narrativas ao que pressupõe ser uma lição de história.

Camnitzer lecionou em instituições de ensino de arte norte-americanas a partir dos anos 1960. Em entrevista ao curador Hans-Michael Herzog para o catálogo da exposição Luis Camnitzer, apresentada no Museo del Barrio, em Nova York, em 2011, e no Daros Museum de Zurique, em 2010, ele provoca: “Por sorte, me interessei em lecionar e pude viver do salario de professor e não da venda de arte. Nesse sentido, minha arte – boa ou má – é genuína”.

O distanciamento do mercado de arte possibilitou-lhe um recuo crítico fundamental para sua poética. Mas a vinculação, desde os 21 anos, com a atividade pedagógica tampouco privou-o de fomentar, desde muito cedo, a ambição de transformar a instituição de ensino. Todos os trabalhos selecionados neste portfólio, portanto, abordam essa vontade e determinação em suprimir a separação entre arte e educação. Há trabalhos que falam de forma ácida e crítica sobre o engessamento do ensino de arte, caso de Fenster (Ventana, Window, Janela) (2002/2010); ou This is a Poetic Statement. Identify the Elements That Construct the Poem, da série Assignment Books (2011).

O Museu de Arte Moderna de São Paulo exibe versão da obra O Museu É uma Escola durante a exposição Educação como Matéria-prima, de fevereiro a junho de 2016 (Foto: Cortesia Alexander Gray Associates, NY)
O Museu de Arte Moderna de São Paulo exibe versão da obra O Museu É uma Escola durante a exposição Educação como Matéria-prima, de fevereiro a junho de 2016 (Foto: Cortesia Alexander Gray Associates, NY)

Library (2006) tem um discurso dúbio. Composta de tijolos organizados em estante, a instalação poderia sugerir um estado de petrificação do conhecimento ou, ao contrário, evocar a tradição e a qualidade construtiva da arte. É precisamente essa condição contraditória que lhe confere densidade, complexidade e dúvida. Vai de encontro com uma das grandes inquietações do artista, professor e aprendiz. “Todo meu processo educativo, desde a escola primária, consistiu em aprender respostas a perguntas que já tinham sido formuladas”, continua ele em entrevista a Herzog. “Nunca me ensinaram a fazer perguntas que não tinham resposta conhecida. Aí é onde a arte e a educação deveriam funcionar juntas.”

Deseducação
A série de intervenções O Museu É uma Escola (2009-em processo) tem uma história maravilhosa. O trabalho surgiu durante o planejamento de uma individual em um grande museu. Quando propôs um projeto educativo para a mostra, ouviu do diretor da instituição que aquilo “era um museu e não uma escola”. Em resposta Camnitzer manipulou uma imagem da fachada do museu com a frase: “O museu é uma escola. O artista aprende a se comunicar; o público aprende a fazer conexões”.

De lá para cá, vários museus efetivamente incorporaram a frase às suas fachadas. O Museu de Arte Moderna de São Paulo foi um deles. A frase foi incorporada ao edifício durante a exposição Educação como Matéria-prima, de fevereiro a junho de 2016. Com curadoria de Daina Leyton e Felipe Chaimovich, a exposição reuniu obras de artistas que abordam processos educativos em sua produção. Camnitzer participou também com uma série de Exercícios, proposições pedagógicas para exposições que sugerem dois passos: aprender a ver a obra de arte como possível resposta a um problema e observar a si mesmo enquanto trata de entender o que se está vendo.

La Banda de nu Hogar (2013), performance de Humberto Vélez com a participação da banda da Escuela El Hogar, Miss Panamá e Miss Education, e intervenção de texto de Luis Camnitzer (Foto: Cortesia Alexander Gray Associates, NY)
La Banda de nu Hogar (2013), performance de Humberto Vélez com a participação da banda da Escuela El Hogar, Miss Panamá e Miss Education, e intervenção de texto de Luis Camnitzer (Foto: Cortesia Alexander Gray Associates, NY)

Exemplo: exercício 6) Supõe-se, em geral, que a matéria existe em três estados: sólido, líquido e gasoso.
a) Especule sobre as consequências de um céu líquido.

Para coroar essa linhagem de trabalhos que fazem da subversão e do questionamento um processo construtivo, Camnitzer colaborou com o artista panamenho Humberto Vélez em Miss Education (2013-2015). O projeto, sem dúvida um dos mais radicais da história da arte contemporânea recente, consiste em uma intervenção no concurso Miss Panamá 2013. Vélez infiltrou seu júri  – o artista Luis Camnitzer, o curador Gerardo Mosquera e a galerista Orly Benzacar, diretora da Galería Ruth Benzacar, em Buenos Aires – no comitê do concurso de beleza. O projeto integrou uma série de eventos que exploravam as implicações do conceito “Pedagogia Radical: Arte como Educação”.

Utilizando como título um trocadilho com a palavra miseducation (deseducação), o artista traça um paralelo com o mundo da arte e suas estruturas de poder. O concurso está para as premiações de arte assim como o padrão de beleza feminina está para os critérios de legitimação do sistema da arte. “Busco romper os esquemas de poder da arte contemporânea, a fim de incluir novas formas de beleza, com valor e dignidade, por parte de nossos artistas latino-americanos”, diz Vélez à seLecT.

Eis aqui mais um belo exemplo de reação em cadeia e de fertilização de terreno. Quem sabe, depois de algumas gerações de infiltração nas escolas, nos museus, na vida cotidiana, na cultura popular e nas mídias de massa, consigamos cumprir com uma revisão profunda da função social da arte.