Para o poeta José Lino Grünewald, Nelson Rodrigues era insuperável no uso de adjetivos. De fato, ao nomear O Óbvio Ululante sua coletânea de crônicas do jornal O Globo, o escritor definiu o cúmulo da evidência. Conta Ruy Castro, organizador do livro de 1993, que a expressão refere-se ao Pão de Açúcar. Foi criada por Nelson Rodrigues ao comentar o susto que Otto Lara Resende teria levado ao notar a pedra desde a janela de seu carro, no mesmíssimo trajeto que realizava diariamente de casa para o trabalho. “Durante anos, o Pão de Açúcar, de tão óbvio, passou despercebido por Otto. Era como se não existisse. Mas um dia, enfim, Otto o enxergou. Era o óbvio ululante”, teria concluído.
Como Nelson Rodrigues, Marcos Chaves faz a crônica cotidiana do que ulula no Rio de Janeiro. “Trabalho com o óbvio”, diz ele a seLecT. Os buracos nas ruas e as próteses nas paredes – fraturas e cicatrizes da cidade – são elementos familiares tanto na vida do carioca quanto na obra fotográfica do artista. Mas o óbvio ululante por excelência, o Pão de Açúcar, é de fato seu grande tema, explorado com esmero e à exaustão na série Sugar Loafer (iniciada em 2014 e em processo). Loafer, explica o artista, é a tradução para o inglês que o Google Translator dá para o francês flâneur, sujeito relativo ao verbo flâner, que significa passear, vagar. Exaltado na prosa de Baudelaire e na crítica de Walter Benjamin, o flâneur deambula pela cidade a fim de experimenta-la. Observador privilegiado da vida moderna parisiense do fim do século 19, se relaciona, com prazer voyeurístico, com os moradores da cidade em suas atividades diárias. A flânerie é antepassada das andanças de João do Rio pelas ruas do Cais do Porto carioca nos anos 1910 e da deriva embriagada de Hélio Oiticica pelas vias labirínticas da Favela da Mangueira, nos anos 1960. Ainda que a insegurança limite o desfrute do espaço público, o Rio de Janeiro sempre favoreceu a deriva. Este é o dispositivo disparador da atividade artística de Marcos Chaves de um modo geral e, especificamente, em Sugar Loafer.
A bicicleta como veículo de criação
A série foi desenvolvida sobre duas rodas, ao longo do percurso que o artista faz de sua casa, em Santa Teresa, até Ipanema. “A bicicleta tem a velocidade perfeita para a observação”, diz. Desde um ponto de vista transitório, ele se relaciona com o que há de perene na paisagem – o Pão de Açúcar – e passageiro – as vidas e as coisas que passam sob a pedra. Em trânsito, enquadra o grande ícone da cidade entre as traves de um gol da Praia de Botafogo; ou o obstrui atrás das grades de aço de uma arquibancada em construção.
No trajeto, ele reconhece os carroceiros, os andarilhos, os moradores de rua. Descobre seus hábitos alimentares – pescar marisco nas pedras do quebra-mar e comer ali mesmo, em frente à Avenida Rui Barbosa – e suas invejáveis habilidades construtivas. Assim ele conheceu Hamilton, um maranhense de passagem pelo Rio, que lhe chamou a atenção pela engenhosidade de seus ninhos e suas tendas, fabricados com objetos catados. Fotografou três de suas casas, derrubadas e reconstruídas a cada batida policial. Da casa-totem, com a cópia da cadeira de Charles Eames pregada com fita durex a uma coluna, à casa-barco de isopor com barraca de sol, passaram-se semanas. Seu trânsito pelo Rio culminou com a casa-casulo, um objeto que o artista identificou como “helioiticiquiano”, em referência aos Ninhos (1969) que Hélio Oiticica criava em espaços arquitetônicos e urbanos. “Miséria? Que miséria?”, pergunta-se Marcos Chaves.
Se o Rio de Janeiro é, desde sua fundação, uma cidade de paradoxos, da beleza que encobre uma pobreza sem-fim, Sugar Loafer inverte o jogo. Coloca a pedra fundamental como pano de fundo do grande teatro da vida como ela é. Enfocadas em primeiro plano – na praia, na água ou no quebra-mar – cenas que poderiam ser vistas como miséria e precariedade tornam-se liberdade e invenção. Caso da academia de ginástica ao ar livre do Aterro –, com seus equipamentos feitos com baldes, latas e cimento – criada e conservada por uma cooperativa da praia. O espaço entrou para a série Sugar Loafer e foi reinterpretado pelo artista na instalação Academia (2015), uma espécie de readymade das academias ao ar livre, feita com esculturas de cimento, tubos de ferros, madeira e tapewares. “A prefeitura instalou uma academia-padrão lá ao lado, mas ninguém usa. Só querem saber da academia dos Flintstones”, ri o artista, para quem o humor é uma arma eficaz de mudança de comportamento.
Cidade erótica
Opina o crítico Paulo Herkenhoff que o Pão de Açúcar é um problema pictórico antigo da cidade – de Taunay a Tarsila do Amaral, passando por Thimóteo da Costa e Guignard. Entende-se que é problema porque é assunto de relevância; um fato-estético da geografia que exerce grande poder de atração sobre quem passa por ali ou sobre ele ouve falar. Se o Rio de Janeiro é mundialmente conhecido como um destino erótico, o Pão de Açúcar entra como fator importante para essa consideração, coloca o artista.
“Para mim, ele sempre foi um aliado, uma solução”, garante. O grande ícone já protagonizara um clássico de sua obra, “Eu Só Vendo a Vista” (1998) – para Herkenhoff o trabalho mais político de Marcos Chaves, “que aborda o colonialismo interno no País e no Rio em sua resistência ao capital imobiliário”. Depois, o Pão de Açúcar foi a imagem de abertura do vídeo Day and Nightshots (Oferta e Procura) (2015), exibido em Destricted.br, projeto coletivo sobre sexo, erotismo e pornografia, apresentado no Festival do Rio, em 2010, e no Galpão Fortes Vilaça, SP, em 2011.
Na lenda do gigante que jaz adormecido nas montanhas do Rio – e que inspirou várias gerações de viajantes, do gravurista inglês John Landseer (1769-1852) à propaganda do uísque Johnnie Walker (2011) –, o Pão de Açúcar é o pé dessa figura deitada, enquanto a Pedra da Gávea é a cabeça e o Corcovado, o pênis. Mas no vídeo de Marcos Chaves, ele é promovido: assume a forma de um pênis e torna-se símbolo da paixão que irrompe no calor das praias cariocas, debaixo de calções apertados.
Pé, pinto ou peito, o Pão de Açúcar de Marcos Chaves é a confirmação de que a percepção que o flâneur tem da cidade passa sempre pelo apelo erótico das coisas. Não podemos esquecer outro enamorado, desta vez um paulista, Oswald de Andrade, quem cantou pela primeira vez a poesia que há “no Pão de Açúcar de Cada Dia”. Depois veio João Bosco musicar o poema (Escapulário, Pau-Brasil, 1925) e completar que, “diante da pedra, são todos iguais”. Assim são as casas, os casulos, os carroceiros e os atletas abraçados diante da pedra e da câmera de Marcos Chaves. Óbvios, e todos iguais.