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Com o voo do homem-bala sobre a fronteira do México com os EUA (2005), Javier Téllez discute o cerceamento do espaço no mundo contemporâneo
Postado em 19/08/2016 - 12:16
Na linha de frente
Artistas dos quatro cantos do mundo, como Annette Messager, Sonia Guggisberg, Olafur Eliasson e Javier Téllez, trabalham em fronteiras e campos de refugiados, chamando atenção para dramas individuais em meio à maior crise da história
Luciana Pareja Norbiato

Em procissão, um grupo de pacientes psiquiátricos caracterizados como palhaços e animais de circo rodeia um canhão gigante. Ele está localizado na fronteira do México com os Estados Unidos, onde um homem-bala se posiciona para voar no sentido do território norte-americano. Ouve-se a contagem regressiva e, num estrondo, David Smith faz facilmente a travessia com a qual muitos imigrantes mexicanos sonham, caindo com segurança numa rede de proteção no lado dos EUA. A ação inusitada fez parte da performance One Flew Over the Void (Bala Perdida) (2005), que o venezuelano Javier Téllez criou para o in_Site05, festival de arte que faz a ponte entre as cidades de San Diego (Califórnia) e Tijuana (México). No trabalho de Téllez, a empreitada artística audaciosa traz nas entrelinhas o questionamento das barreiras impostas pelo mundo contemporâneo tanto ao transtorno psíquico quanto aos imigrantes, que aumentaram consideravelmente nos últimos anos, graças aos conflitos em regiões como Oriente Médio e África. Em comum, o cerceamento do espaço de circulação, feito pelos muros do manicômio ou pelas cercas das fronteiras entre países, incluindo as que rodeiam os campos de refugiados.

Esses são espaços cada vez mais comuns na Europa – seja em Atenas, na Grécia, seja em Calais, na França. Cercados por grades com concertina (arame cortante) no topo e vigiados pela polícia local, acomodam vários contêineres, barracas ou tendas. São eles que, customizados ou não, fazem as vezes de casas e estabelecimentos de habitantes em estado de transição. Se já não vivem mais a violência institucionalizada das guerras civis e conflitos em suas regiões de origem, esses imigrantes forçados são quase prisioneiros em países que não os reconhecem como cidadãos.

O direito ao trânsito é controlado, as atividades são vigiadas por guardas com metralhadoras e, às vezes, da noite para o dia, o local é evacuado em ações truculentas, parecidas com as reintegrações de posse no Brasil.

Com 65,3 milhões de pessoas no mundo forçadas a migrar por causa de guerras e conflitos,  segundo dados da ONU divulgados em junho de 2016, é espantosamente alto o contingente de moradores desses centros de recepção nada calorosos, com suas enormes caixas de transporte marítimo de carga usadas como dormitório. Não surpreende que os refugiados de Calais, uma das maiores concentrações de povos em trânsito da Europa, tenham resistido a trocar suas barracas improvisadas e mais orgânicas pelos contêineres, no começo deste ano.

3 Pantins PQ (2015), instalação de Annette Messager para a exposição Dessus Dessous, no Musée des Beaux-Arts de Calais (Foto: Marc Domage/ADAGP, Paris, 2015)
3 Pantins PQ (2015), instalação de Annette Messager para a exposição Dessus Dessous, no Musée des Beaux-Arts de Calais (Foto: Marc Domage/ADAGP, Paris, 2015)

Foi lá que a francesa Annette Messager fez a mostra Dessus Dessous (de outubro de 2015 a maio de 2016) no Musée des Beaux-Arts local. Como Messager declarou na época da abertura, “expor em Nova York é fácil; em Calais, não, e é exatamente onde a cultura é mais necessária”. Com a apropriação da estética precária com que os imigrantes montam suas tendas, a artista criou instalações que conspiram contra a hegemonia discursiva da padronização mercadológica, usando como matéria-prima elementos corriqueiros agrupados, como sutiãs e bonecos.

Os terrenos apátridas são a face amarga do capitalismo globalizado, tentando conter a crescente falência do modelo mundial de divisão por Estados. É forçoso reconhecer por direito o que a prática já atesta: as fronteiras criadas ao longo da história para delimitar economias, centralizar gestões e padronizar comportamentos não dão mais conta das interações humanas e da diáspora contemporânea, que refuta o passado colonial.

A motivação em enfrentar essa realidade por estratégias antinormativas une artistas de vários países, entre eles a paulistana Sonia Guggisberg e o dinamarquês Olafur Eliasson. Cada qual, à sua maneira, criou uma relação com refugiados para oferecer auxílio, consolo e visibilidade aos dramas coletivos e individuais.

Meeting Point
É pela via da sutileza que Sonia Guggisberg aborda a questão. Em idas pontuais a Malta, Lampedusa e Atenas, em 2015, ela captou em vídeo e fotografia momentos de respiro dentro da rotina controlada dos imigrantes, nos quais a dor encontrava espaço para aflorar.

Foto de um cemitério de barcos grego (2015), de Sonia Guggisberg
Foto de um cemitério de barcos grego (2015), de Sonia Guggisberg

Quando têm permissão para sair dos campos de refúgio, para circular nas cidades onde estão abrigadas, essas populações que têm em curso pedidos de asilo costumam se reunir em praças públicas. “Em Malta, os campos são divididos por sexo e gênero, então esses locais de encontro são onde as famílias podem se juntar novamente”, diz Guggisberg à seLecT.

Ao longo do dia, diferentes grupos se alternam e interagem de formas diferentes, de acordo com a região de origem. É uma maneira de buscarem normalidade no dia a dia em regime de exceção. Avisada por um amigo local, a artista postou-se em uma dessas praças de câmera em punho. Daí veio o vídeo Meeting Point, parte de uma série de vídeos e fotos que apontam para uma nova direção na trajetória artística da paulistana. “Quando embarquei nessa viagem, senti necessidade de fazer um registro documental da situação. Essas pessoas nunca voltarão aos seus países. Essa é uma ilusão do europeu. Vai haver um redesenho do mapa-múndi”, diz.

Em se tratando de uma artista que tem a água como fio condutor do trabalho, Guggisberg dá um tratamento sensível e delicado à diáspora contemporânea. Prova disso é a entrevista que fez com um pai de família sírio que fala de sua situação com grande sofrimento. Sem perspectivas de conseguir um visto, sem dinheiro, sem emprego, vivendo em acampamento, passando frio e fome, ele não tem como prover seus familiares. Em vez de focar no rosto do personagem, o quadro está fechado em sua roupa, o que enfatiza o desespero na voz. O entrevistado não quis falar diretamente para a câmera. Mais tarde, recomposto, concordou em ter seu rosto gravado. Mas Guggisberg não gravou, considerando que a primeira versão, indireta e captada no calor da emoção, expressava perfeitamente a condição de seu entrevistado.

liasson faz oficina em Viena com refugiados sírios pelo projeto Green Light (Foto: Cortesia Studio Olafur Eliasson)
liasson faz oficina em Viena com refugiados sírios pelo projeto Green Light (Foto: Cortesia Studio Olafur Eliasson)

Para reverter essa sensação comum aos refugiados, Olafur Eliasson criou Green Light, um projeto de acolhimento e interação. “Ele surgiu num momento em que a situação dos refugiados estava começando a se tornar uma crise de fato, e nos convencemos de que a arte poderia oferecer uma plataforma para canalizar situações de deslocamento, de sentir-se bem-vindo, de exercitar generosidade e de empatia”, disse Eliasson à seLecT. Realizado na Thyssen-Bornemisza Art Contemporary Foundation, em Viena (Áustria), entre março e julho deste ano, consistiu numa série de workshops em que refugiados e nativos trabalharam juntos na construção de uma luminária feita de materiais recicláveis, como copos de iogurte, e luzes de LED verdes. Além de construir as luminárias, os imigrantes tiveram aulas de alemão e cozinharam coletivamente. “Green Light não é apenas uma luminária, é também uma tentativa de delinear novas estruturas em uma sociedade em transformação. É um modelo, uma metáfora, uma metodologia que espero que possa ser copiada e feita em diferentes contextos.” Além disso, é uma forma de aqueles que compram a luminária doarem 300 euros para instituições como a Caritas Internacional e a Cruz Vermelha de Viena (ela pode ser adquirida neste site). Todas as informações do projeto estão no website do artista.