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Capa da seLecT #10 (out/nov 2012), que trouxe matéria exclusiva sobre viagem da performer ao Brasil
Postado em 12/05/2016 - 3:00
“Não existe paraíso”
Marina Abramovic, em entrevista exclusiva para seLecT, concedida durante sua viagem de pesquisa pelo Brasil
Paula Alzugaray

Marina Abramovic planejou passar o último dia do calendário maia em Alto Paraíso, Goiás. Seria o nono dia de uma viagem de um mês e meio que ela realizou por quatro estados brasileiros, pesquisando métodos tradicionais de cura e purificação. Aos 66 anos, ela começou seu roteiro na pequena cidade de Abadiânia, encrustada no antigo caminho do ouro do Planalto Central, e atual morada de João de Deus, cirurgião espiritual de renome internacional. Planejava estar em Alto Paraíso, considerado o lugar mais seguro do planeta, no dia 21. “Mas acabei ficando com João de Deus, porque ele sugeriu assim. Aceitei o destino. Foi bom, porque tive uma conversa muito interessante com vários médiuns, falando sobre a mudança de estrutura de nosso planeta. Eu estava no lugar certo, na hora certa”, conta ela.

O desvio de rota veio a calhar. Não fosse a sugestão de João de Deus para que Abramovic continuasse suas meditações mediúnicas, inclusive assistindo-o em cirurgias, a artista seria mais uma entre os 10 mil turistas que se acotovelaram em Alto Paraíso no dia em que o mundo não acabou. A viagem fluiu então com muitos banhos de cachoeira, visitas a xamãs e espíritos das florestas e vivências de diversas qualidades de rituais. Durante todo o tempo, a artista iugoslava esteve acompanhada de uma equipe de nove pessoas, com as quais realizou fotografias e um documentário do processo de pesquisa da viagem.

Entre elas estava a artista brasileira Paula Garcia, colaboradora de Abramovic desde o fim de 2011. No 23o dia de viagem, quando chegou em Salvador para conhecer os rituais do candomblé, Marina Abramovic conversou com seLecT pelo Skype, compartilhando generosamente suas primeiras descobertas.

seLeCt:
Você já visitou o Brasil várias vezes. Qual a importância do País em seu trabalho? O que está aprendendo nesta viagem?

Marina Abramovic:
Minha relação com o Brasil tem muito tempo. A primeira viagem foi para aquele grande simpósio ecológico no Rio. Naquela ocasião, 12 artistas foram convidados a viajar para a Amazônia para realizar pesquisas. Eu tinha um interesse em minerais e cristais, que surgiu depois de um trabalho na Muralha da China, quando percebi que meu estado mental mudava ao andar sobre diferentes solos, com cobre, ferro ou cristal. Foi muito duro me separar de Ulay, então eu não quis ficar na China para pesquisar minerais. Fui fazer essa busca em outro lugar. Esse lugar foi o Brasil, onde descobri diversas fontes de minerais e onde fiz tantos trabalhos em diferentes períodos da minha carreira. Depois da performance The Artist is Present, no MoMA, voltei a pensar nos minerais. Então, estou de volta a esta viagem, que chamo hoje de pesquisa. Ela começou há 23 dias e tem dois propósitos: um deles é procurar diferentes ideias sobre meu trabalho e o segundo é uma pesquisa pessoal.

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Retrato com jesus, no Vale do amanhecer, no Distrito Federal, em 31 de dezembro de 2012: “Eu nunca havia tido uma ligação com jesus antes”

Em seu Manifesto Sobre a Vida do Artista, você declara que “o artista deve reservar para si longos períodos de solidão”. Você associa a viagem a essa necessidade de solidão?

Aqui estou acompanhada. Mas depois da viagem vou ter um tempo só para mim, para processar o que aprendi. Estou assimilando muita informação e minha cabeça está cheia de ideias. Para processá-las, definitivamente, preciso de solidão. Outra coisa importante para mim é ser nômade. Não tenho sempre uma família específica ao meu redor. Sou livre. As ideias simplesmente vêm e me carregam para qualquer lugar. Amo a sensação que chamo de “espaço entre”. É quando você deixa sua casa, seus hábitos, uma situação de segurança, mas ainda não chegou a um novo lugar, onde vai construir novos hábitos. O “espaço entre” é a viagem, quando você está completamente aberto ao destino, às novas ideias. Esse é um dos mais criativos espaços para os artistas estarem.

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Reflexões na cachoeira Arcanjo, em Goiás. (Fotografia da série Lugares de Força)

E que estratégias você está criando para atingir esse “espaço entre” durante esta viagem? Você caminha, medita?

Não gosto de me comportar como turista, gosto de me colocar no meio das situações. Então, não estou fazendo meus rituais, mas aceito os rituais que me são propostos. Com João de Deus passei a maior parte do tempo na Sala da Corrente, realizando a cirurgia espiritual em meu próprio corpo, aceitando suas disciplinas e conselhos. Foi uma entrega completa às mais diversas situações, buscando aprender com elas, para depois poder usá-las em meu próprio trabalho. E, como meu instituto no norte do estado de Nova York ficará pronto em dois anos, estou também procurando ideias e métodos de diferentes culturas. Atualmente, temos um título de trabalho para tudo, “a corrente”. Refere-se à corrente de energia que estamos experimentando aqui, na natureza, com as pessoas. Nós realmente estamos tentando seguir a corrente, porque temos algumas ideias soltas sobre o que fazer todos os dias, mas ao mesmo tempo surgem coisas que não esperávamos abraçar. Então é uma pesquisa para abrir antenas.

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Marina Abramovic se submete a uma limpeza do corpo com pombo branco, na feira de São Joaquim, na Bahia

Você já afirmou que lê todo tipo de mitologia. De que forma a mitologia maia influenciou sua viagem? Que símbolos relativos à morte e à transformação estiveram envolvidos no trajeto?

Em primeiro lugar, eu gostaria de deixar claro que você pode ler muita literatura, escritos de filósofos, poetas e viajantes, mas isso definitivamente não o modifica. Você lê o livro, fecha o livro e é exatamente o mesmo. O interessante para mim é tirar do livro algumas diretrizes para lidar com essas coisas. Passei um ano inteiro com os aborígenes da Austrália Central, em lugares onde mesmo os australianos não vão, porque são extremamente desconfortáveis, cheios de moscas, sujos, quentes, são simplesmente o inferno. Também passei anos com os tibetanos. É importante extrair norteadores dos livros, mas o que realmente importa é sua própria experiência. Li sobre o calendário maia por muito tempo e uma das ideias envolvidas é que o Brasil Central é o lugar mais seguro para se conectar com essa ideia do fim do calendário, que não é, na verdade, o fim do mundo, é apenas a mudança da dimensão de nosso planeta. A passagem da terceira dimensão para a quarta. Dizem que Alto Paraíso é o mais seguro lugar do planeta, porque seu solo brilhante de cristais pode ser visto da Lua. Por isso planejei estar lá no dia 21. Mas acabei ficando com João de Deus por mais uma semana, porque ele sugeriu assim. Aceitei o destino e passei o dia 21 em Abadiânia. Foi bom porque tive uma conversa muito interessante com vários médiuns, falando sobre a mudança de estrutura do nosso planeta e de como a consciência está mudando. Acredito nesse tipo de coisa, então, eu estava no lugar certo e na hora certa. E o mundo simplesmente não acabou como em Melancolia, o filme de Lars von Triers.

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A artista atravessa ponte em Alto paraíso, em fotografia da série Lugares de força

O que você faz para contribuir com a mudança do planeta?

Cada pessoa neste planeta faz o seu trabalho, com as possibilidades que ela tem. O padeiro tem o trabalho de fazer o melhor pão possível; o jardineiro tem de cultivar as mais fortes plantas, há o arquiteto que projeta o edifício mais especial. Como artista estou ocupada com o meu legado, que será um instituto para trabalhos de arte de longa duração. Quero elevar a consciência das pessoas ao dar tempo para elas. Temos de criar um espaço onde as pessoas podem ter tempo para experimentar a si mesmas. Estamos vivendo nas cidades, com o estresse, vivemos uma vida sem tempo. E mais a cultura materialista. Então, nós temos de dar uma consciência diferente. Para dar uma consciência diferente, as pessoas têm de ter tempo para entender isso.

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Fotografía em Alto Paraíso, Goiás, em dezembro de 2012 (Série Lugares de Força)

Qual é sua ideia de paraíso?

Tenho uma má notícia para você: não há paraíso (risos). Paraíso é um conceito errado. Desejar o paraíso é pedir para sofrer, porque desejamos ser tocados pela felicidade. Mas a felicidade é um conceito falso. O que temos de realmente abraçar é uma filosofia de vida em que levamos as coisas ruins e coisas boas juntas, sem fazer distinção entre elas. O sofrimento é muito importante. Não a depressão, a depressão é uma doença e deve ser curada. O sofrimento é essencial, muito mais importante do que o desejo e o paraíso. É no sofrimento que você aprende e realmente entende o que está acontecendo com você em um plano mental, espiritual e físico.

*Publicado originalmente na edição impressa #10.

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