icon-plus
Igor Vidor durante treino de condicionamento físico para o projeto LPO (Levantamento de Peso Olímpico, 2016), a ser realizado durante as Olimpíadas (Fotos: Cortesia do artista/ Galeria Luciana Caravello)
Postado em 02/05/2016 - 12:33
O artista enquanto atleta
Igor Vidor coloca-se fisicamente em processos de transformação na elaboração de projetos artísticos com engajamento social
Paula Alzugaray

Alto verão, fim de semana no Parque do Flamengo. As pistas das vias de alta velocidade do Aterro estão interditadas para carros, abrindo espaço para a prática de esportes ao ar livre. Tudo é diversão, até que quatro garotos sem camisa passam correndo a toda velocidade. Sob gritos de “pega, pega”, eles se separam e cada qual desaparece em um percurso entre as palmeiras, os abricós-de-macaco e as abundantes espécies que fazem os caminhos sinuosos do parque idealizado em 1965 por Lota de Macedo Soares, com paisagismo de Burle Marx. A cena não é incomum. Confunde-se à rotina de esportistas ou às correrias que se seguem aos furtos, que nos últimos anos fazem a fama do local. No entanto, o evento descrito não era uma coisa nem outra, mas uma ação promovida pelo artista Igor Vidor com três jovens que trabalham com malabarismos nos semáforos da cidade.

“Um mês antes, eu havia presenciado uma perseguição na Glória”, diz o artista à seLecT. “Quatro policiais, dois agentes oficiais e uma viatura do conselho tutelar abordaram um menino, que se recusou a acompanhá-los e escapou. Ele não havia roubado nada, era um jovem negro e levava bolinhas de tênis.” O acontecimento presenciado veio ao encontro de uma pesquisa que ele desenvolve com jovens em situação de risco, moradores de rua, em sua maioria negros ou pardos. A ação Corra Como se o Sol Pudesse Alcançar Você (2015) foi criada especificamente para observar as reações geradas diante dos corpos negros em movimento. O título da ação é uma apropriação do nome do programa esportivo de verão do Parque do Flamengo. “Apesar de estarem usando tênis novos e de cada um deles ter colocado sua melhor bermuda, uma concentração de garotos negros correndo sempre gera uma comoção”, diz Vidor, que comprou tênis para os garotos e também participou da ação. “Me pergunto o que legitima uma simples corrida, quais instâncias simbólicas cercam esse tipo de conclusão sobre o corpo negro em movimento.”

Polaridades como vantagem e desvantagem;, sucesso e fracasso pautam a série Anywhere is My Field (2016)
Polaridades como vantagem e desvantagem; sucesso e fracasso pautam a série Anywhere is My Field, 2016 

A cidade move
“A cidade do Rio me move muito”, diz esse paulista de 28 anos, que estava morando em Londres, quando foi convidado a integrar a equipe de educadores do Museu de Arte Rio. A performance do Parque do Flamengo tem relação direta com sua formação pessoal e histórico profissional. Ele foi atleta profissional de futebol até os 18 anos e depois trabalhou por seis anos em projetos educativos de instituições como a Bienal de São Paulo, o Itaú Cultural e o Instituto Tomie Ohtake (SP) e a Whitechapel Gallery (Londres). “Comecei a jogar aos 7 e a maioria dos meus amigos era de negros”, diz ele, que atuou no Corinthians, no São Caetano e no Juventude de Caxias (RS), onde foi convocado para a Seleção sub 18. Devido a políticas especulativas e desfavorecimentos provocados pela corrupção no futebol, Vidor foi impedido de participar do campeonato e acabou dispensado do clube. “Passei a maior parte da minha vida moldando meu corpo diariamente para uma única situação, e ver esse tipo de coisa acontecer era inadmissível.” Essa experiência envolvendo fracasso e desilusão foi decisiva para moldar a nova etapa. “Pra falar a verdade, acho que meu primeiro trabalho de arte foi abandonar o futebol”.

Rolam as pedras
Metáforas da queda e do perigo surgiram logo nos primeiros trabalhos. Na individual intitulada O Sublime Como Possibilidade Diante da Morte, decorrente de residência artística no Ateliê Aberto (Campinas, 2011), Vidor apresentou dois vídeos que exploram as relações entre êxtase e terror na prática de esportes radicais. O texto Êxtase Sublime, em que o crítico Guy Amado discorre sobre a potência simbólica e visual do surfe de ondas gigantes, e publicado na edição 10 de seLecT (fev/mar de 2013), foi usado pelo artista no trabalho de conclusão do Bacharelado em Artes Visuais no Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo. “Diz muito a respeito do que tenho pesquisado e, na época, foi um propulsor pra outras coisas.” As noções de sucesso e fracasso, vantagem e desvantagem – instâncias naturais do mundo do esporte –, continuam a pautar sua pesquisa. Elas se materializam em Anywhere is My Field (2016), projeto em que desenha campos de futebol em encostas de terrenos íngremes. O trabalho evoca a performatividade do jogo de futebol a partir das características do relevo. Traduz as inquietações do artista, enquanto jogador, ao comparar as topografias dos campos profissionais e de várzea. Mas essa obra também elabora uma base simbólica mais complexa. Ao desafiar o corpo do jogador a reagir às leis da gravidade, Vidor processa o mito de Sísifo, o titã condenado por Zeus a levar uma rocha sobre os ombros até o topo de uma montanha. Ao chegar lá, a pedra sempre volta a rolar para o vale, levando o titã a reiniciar a tarefa, ad infinitum.

Screen Shot 2016-04-29 at 15.27.35

Obra da série Anywhere is My Field (2016)
Obra da série Anywhere is My Field, 2016 

Força de resistência
Anywhere is My Field executa, em poucas linhas traçadas em terrenos acidentados, uma ideia de performance. O trabalho se dá como suspensão da realidade, ao promover uma performance imaginária, onde a ação é apenas sugerida e é lançada a pergunta: que desempenho teria o corpo em plena ribanceira? O corpo ganha protagonismo novamente no trabalho LPO (Levantamento de Peso Olímpico) – título provisório –, que está em pleno desenvolvimento na Vila Autódromo, comunidade ao lado do Parque Olímpico, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, onde se concentrarão as principais atividades dos Jogos Olímpicos. Sísifo continua atuante aqui. O trabalho tem como eixo o campo de alta-tensão gerado entre moradores e forças públicas, desde que se iniciaram as remoções e desapropriações daquela comunidade, em 2013. As histórias por trás de cada casa demolida, detalhes raramente lembrados nos planos de reformas urbanas e nas estatísticas, serão pano de fundo da ação de Igor Vidor, que deve ganhar a forma final de um filme-instalação na época das Olimpíadas. A força de vontade das cerca de 3 mil pessoas da comunidade original de Vila Autódromo, que vêm resistindo a sucessivos intentos de remoção ao longo dos últimos 20 anos, é traduzida pelo artista na forma do levantamento de pesos. O trabalho consiste em fazer 2.833 levantamentos de peso, no interior das casas que não foram demolidas. Esse era o número de pessoas que haviam sido removidas até a realização deste texto, quando Vidor conversou com seLecT. “Estou treinando há seis meses. Ganhei 6 quilos de musculatura e tenho hoje apenas 9% de gordura no corpo”, diz. Em LPO (2016) entra em ação um dispositivo de transferência socio-corporal. O trabalho se dá no embate físico do artista com o contexto social que ele quer abordar, na medida em que ele executa no próprio corpo a problemática vivida pelos moradores da zona em conflito. E, ao modelar seu corpo, de certa forma ele retoma os anos de treinamento intenso para a prática do futebol. A incorporação da realidade social, e a sua manifestação em performance, se dá ainda em outro trabalho em processo, que será apresentado na exposição Linguagens do Corpo, a partir de 17 de maio, no MAR. Com o título provisório de Corpo Fabélico (2016), o trabalho envolve 80 jovens de Vila Aliança, comunidade localizada no bairro de Bangu. Escalados do projeto de futebol Craques da Vila, os garotos estarão envolvidos em uma corrida, novamente sob os gritos “pega, pega!”. Só que, desta vez, seus movimentos serão condicionados em círculos, no espectro da Praça Mauá, o coração do novo Porto Maravilha.

Frame do vídeo Corra Como Se o Sol Pudesse Alcançar Você (2015), realizado durante ação no Aterro do Flamengo
Frame do vídeo Corra Como Se o Sol Pudesse Alcançar Você (2015), realizado durante ação no Aterro do Flamengo