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Postado em 10/08/2015 - 7:43
O Fazedor de Fantasmas
Luciana Pareja Norbiato

The Forbidden Room, novo longa de Guy Maddin, com exibição confirmada na próxima Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, foi realizado a partir de sessões de espiritismo com a participação dos atores

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Legenda: Frame do filme The Forbidden Room (2015)

Tem gente que define Guy Maddin como o David Lynch canadense. Bobagem. Se à primeira vista o famoso diretor norte-americano e seu colega do Norte compartilham o gosto pelo sobrenatural, Maddin foi buscar no expressionismo alemão e no cinema mudo a inspiração para a exuberante construção de um universo em que o Além anda de mãos dadas com o humor kitsch.

Tudo começou quando o pequeno Guy (nascido em 1956), temporão de quatro filhos, perambulava sonhando acordado pela casa. Numa dessas ocasiões, ele achou os álbuns de fotos antigas de seus pais, ainda não desanimados pelo passar dos anos. “Os fantasmas jovens e alegres nesses álbuns sugeriam que o passado era algo com que valeria a pena se comunicar. Eu não sabia o que era uma sessão espírita. Hoje percebo que estava fazendo contato com o passado só de ver as fotos.” Para Maddin, a fantasmagoria é um componente da realidade. 

Não é de se espantar que seu primeiro filme, o curta The Dead Father (1985), tivesse como protagonista um pai morto que volta frequentemente para saber se as coisas vão bem com sua família. Partindo daí, Maddin foi angariando fama e atraindo estrelas a seus longas independentes, como The Saddest Music in The World (2003), em que Isabella Rosselini interpreta a dona de uma cervejaria que tem próteses de pernas de vidro contendo bebida. Ou My Winnipeg (2007), uma “docufantasia”, na denominação do próprio diretor, que homenageia sua cidade natal com uma história surreal.

Trazendo a femme fatale de filmes noir dos 1940 Ann Savage como a mãe fictícia do diretor, o filme apresenta uma dose de dados bizarros e duvidosos, como a suposição de que Winnipegem seria a campeã mundial de sonambulismo. Desde o curta do pai defunto até hoje, já são nove longas e mais de uma dúzia de pequenas produções, ainda pouco conhecidas no Brasil. Aqui, à exceção de retrospectivas como a da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2004) e do CCBB (2009), os filmes de Maddin quase não são exibidos e não chegam ao circuito comercial.

My Pictures 017, Photo By Jody Shapiro

Legenda: A ex-femme fatale dos anos 1940 Ann Savage como a mãe fictícia do diretor no “docufantasia” My Winnipeg (2007), ao lado de Wesley Cade (foto Jody Shapiro)

De volta aos vivos

Em sua nova empreitada, o longa The Forbidden Room (2015) e o webprojeto Séances, Guy Maddin superou-se em excentricidade e experimentação visual. Resolveu trazer de volta ao mundo dos vivos 33 curtas-metragens de grandes nomes do cinema mundial, como Jean Vigo, Erich von Stroheim, Ernst Lubisch e Alfred Hitchcock. Mas como trazer de volta roteiros antigos que, na maioria dos casos, deixaram como registro apenas seu título? Claro, com sessões espíritas.

Delas participaram a norte-americana Geraldine Chaplin, o francês Mathieu Amalric, a britânica Charlotte Rampling, a portuguesa Maria de Medeiros e a francesa Luce Vigo, entre outros. Dessa forma, Guy Maddin conciliou a ideia original de recuperar filmes perdidos com a impossibilidade de resgatar seus roteiros originais. O corte a partir de centenas de horas de gravação deu origem a The Forbidden Room. Lançado em janeiro de 2015 no festival de Sundance, tem exibição confirmada para a próxima edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Fantasmas nas máquinas

Ao lançar mão do grande volume de gravações que não entraram no longa, o webprojeto Séances permite que qualquer internauta “faça sua própria sessão espírita com o cinema perdido”, segundo Maddin. A cada vez que alguém visita o projeto, assiste a uma combinação única de “fragmentos espirituais interrompendo uns aos outros, disputando pela atenção do espectador, enquanto fazem um filme totalmente novo”. Assim que o internauta deixa o site, esse filme desaparece. Guy Maddin deu uma entrevista exclusiva à seLecT falando de sobrenatural, sexualidade e, claro, cinema, que é publicada aqui na íntegra (veja também a galeria de imagens):

Seus filmes são uma mescla de estranhamento, luxúria, mistério, sobrenatural, fetiche e diversão, embalados num ótimo pacote vintage de cinema expressionista dos anos 1920. De que maneira eles estão relacionados, ou expressam (ou não) o mundo em que vivemos atualmente? Você acha que o mundo hoje sofre de falta de imaginação?

Há hoje tanta imaginação no mundo dos filmes quanto sempre houve – talvez até mais! Eu me sinto extremamente empolgado pela liberdade que os cineastas têm agora de cruzar as fronteiras dos gêneros que os diretores antes honravam com mais respeito.

Amo o fato de que os filmes agora podem ser verdade, ficção, cinema-ensaio e poema simultaneamente, e os espectadores entendem como reagir a transgressões inovadoras, dançam sobre o caixão do documentário tradicional, de enfoque mais literal. Amo a forma como todo mundo parece entender que ficção ou exagero podem conter mais verdade que um documento certificado!

A invenção cinematográfica agora pode ser levada a cabo com bom gosto e surpresa, graças ao aumento bombástico de opções que o cinema digital nos dá – e esse comentário efusivo está partindo de mim, alguém que ama mais do que ninguém a boa e velha película e todos os temperos e texturas deliciosamente analógicos de sua emulsão. Porque por mais que o cinema digital mude e abra possibilidades, uma coisa não muda nunca: as imagens na tela são espíritos, fantasmas, memórias.

Cinema tem sido sempre a mídia assombrada. Tão logo um ator é filmado, há o registro desse alguém que ele foi antes – seja uma gravação de cinco minutos ou cinco décadas atrás – ou seja, o ator e sua imagem estão imediatamente se separando um do outro no tempo, envelhecendo de duas maneiras diferentes.

O ator em nosso mundo físico envelhece como todos nós – rugas, doenças, morte – enquanto a outra, a imagem, envelhece com riscos, dessaturação da cor, colapso da química ou do pixel, mas sem rugas ou doenças! A visão que temos na tela é um fantasma ou memória ou espírito da pessoa no mundo corporal. Quando nós assistimos um filme, estamos vendo fantasmas!

Como o clima e o universo de seus filmes surgiram na sua cabeça em sua infância? Por que razão você escolheu explorar a indefinição, a ambiguidade e o sobrenatural como diretor de cinema?

Eu era o mais novo de quatro crianças, mas nasci muito mais tarde que os outros três, e era deixado quase sempre por minha conta por meus pais cansados. Quando criança, eu passava horas longas e enfadonhas sonhando acordado ao engatinhar por nossa casa enquanto meus pais trabalhavam. Achei alguns velhos álbuns de fotos de quando meus pais tinham faces jovens, sorrisos e energia para lidar com meus irmãos mais velhos. Mesmo meus irmãos pareciam tão cheios de energia nas fotos, ainda não vencidos pela mediocridade ou pela tristeza inevitável que as pessoas enfrentam. 

O passado nesses álbuns de fotos, os fantasmas jovens e alegres em suas páginas, pareciam sugerir que aquele tempo era algo com que valeria a pena se comunicar de alguma forma. Eu ainda não sabia o que era uma sessão espírita. Percebo agora que eu estava o tempo todo fazendo contato com o passado só de ver essas fotos. E é assim que nós fazemos contato com os fantasmas do nosso mundo todo dia: assistindo às notícias, olhando velhas e novas fotos no Facebook, selecionando lembranças ou simplesmente refazendo os passos de antigas caminhadas – todas essas atividades são como sessões espíritas, no sentido de que forçam você a enfrentar memórias fartamente assombradas, e essas memórias são o que eu defino como fantasmas! Se o fantasma do pai de Hamlet não é uma memória, o que ele é?

Você acha que sexualidade e sobrenatural andam lado a lado, como em seus filmes? Ou as pessoas têm medo de lidar com ambos, e esse é o ponto comum entre eles?

A experiência sobrenatural verdadeiramente elevada, no cinema ou numa acepção privada, é a da excitação. Os espíritos em que pensamos mais frequentemente, a menos que estejamos profundamente assombrados pela dor do luto, são os espíritos que visitam no escuro, na escuridão do cinema ou do banheiro, os espíritos que acariciam e abraçam nossos corações e membros! A tela de cinema foi erguida acima da cama para complementar as visões abaixo! Ambas produzem imagens que assombram, usando a matéria-prima de nossos corações e quadris desejosos. 

Talvez tenhamos medo desses espíritos, mas acho que a maioria de nós os recebe bem, mesmo secretamente. Mas a maioria deles agora é compartilhada sem discrição. Vida longa a esse mundo sem censura. Ainda há uma porção de quartos para o segredo – segredo e vergonha são opcionais! – mas há uma abundância de “coisas oníricas” ou “matérias oníricas” agora.

Você realmente acredita no sobrenatural? Ou essa é uma estratégia para jogar luz em certos aspectos da vida humana que as pessoas normalmente não querem encarar?

Não acho que eu acredito no sobrenatural, mesmo que de vez em quando sinta meu cabelo arrepiar ao mesmo tempo que tenho um calafrio na espinha durante um evento inexplicável, mas isso sempre acontece quando estou exausto ou apavorado por estar sozinho na minha cabana remota nas profundezas da floresta, de madrugada, quando vejo pequenas crianças que não existem escondidas atrás da minha geladeira ou debaixo da minha cama. Então tenho que ficar acordado até o sol nascer antes de sequer tentar dormir.

Mas na maior parte do tempo eu acredito em fantasmas só quando estou com a câmera na mão, porque a câmera é um fazedor de fantasmas! Suponho que literatura, pintura e todas as outras artes são também fazedoras de fantasmas, mas não da mesma maneira. Cinema faz isso melhor, cria os espectros mais assustadores, os mais emocionalmente poderosos, os mais enganadores. Alguém é capaz de ser seduzido, cobiçar ou se apaixonar por um fantasma se movendo tão perto, girando em volta de si. 

Os efeitos mais poderosos do cinema envolvem a ilusão de ser submerso no que não está realmente ali, ou nas memórias do que um dia aconteceu. São sentimentos poderosos em arte, e se alguém realmente acredita nesses cinefantasmas, tem a chance de fazer um bom filme. É por isso que acredito em fantasmas enquanto empunho a câmera – é ganância pura e desesperada de fazer um bom filme!

Falando agora sobre seu projeto Séances, ele será lançado neste ano? Quantos curtas estão incluídos na lista inteira de filmes perdidos com os quais você trabalhou? Quais foram extraídos para formar The Forbbiden Room?

Nós rodamos 33 novas adaptações de filmes perdidos que evocamos durante sessões espíritas públicas realizadas com atores no Centre Georges Pompidou, em Paris, e no Centre PHI, em Montreal. Todo dia, por 33 dias, reuníamos os atores na frente de qualquer um que por acaso estivesse assistindo, os colocávamos em transe (de qualquer maneira, atores estão sempre entrando em transe, então era fácil), e aí eu convidava o triste espírito de um filme há muito perdido (porque um filme perdido é um filme sem um lugar de descanso eterno conhecido; é um espírito triste condenado a vagar pela paisagem da história do cinema, incapaz de projetar a si mesmo para quem gostaria de assisti-lo) para baixar no nosso pequeno set de filmagem e possuir meus atores, e compeli-los a mostrar em ações seu enredo há muito esquecido.

Enquanto os atores estavam interpretando como sonâmbulos os enredos antigos, eu simplesmente agia como um espírito câmera-man, capturando no cartão de memória as ações tão preciosas desse filme perdido e solitário. Isso me deu uma nova versão do que antes estava perdido para sempre! Dessa maneira eu fui capaz de fazer por conta própria os filmes de grandes mestres canônicos de muitos países, vindos de 33 diferentes culturas, religiões, gêneros e grupos sócio-econômicos, todos perdidos e esquecidos até agora!

Usamos fragmentos de 17 desses filmes em The Forbidden Room, mas apenas fragmentos. Centenas de horas de gravação desse material de filme ectoplasmático aguardam para serem carregados no Séances interativo, assim todo mundo que estiver online pode fazer sua própria sessão espírita com o cinema perdido.

A cada vez que alguém visitar o projeto, será apresentada uma combinação única de fragmentos espirituais interrompendo uns aos outros, disputando pela atenção do espectador, enquanto fazem um filme totalmente novo. Nosso software dará ao filme um título gerado aleatoriamente. A primeira vez que testamos esse programa, ele criou o título Wise Trumpets of the Milky Midnight (algo como Trombetas Sábias da Meia-Noite Leitosa). Eu o assisti, uma mescla espantosamente sonhadora e randomicamente colidida de não-sequências e surpresas.

Então a experiência fílmica terminou e a combinação única de fragmentos foi destruída para sempre pelo nosso programa, e Wise Trumpets of the Milky Midnight se tornou um filme perdido. Foi um filme evocado do material de filmes perdidos, que foi assistido uma vez antes de voltar para o mundo dos filmes perdidos. Vou adicionar seu nome ao nosso rol de filmes perdidos. Nós ao mesmo tempo revertemos a perda do cinema pós-vida e então perdemos tudo o que fizemos, tudo de uma vez. Estou animado com esse projeto interativo, que será lançado no fim do ano.

Como você define The Forbbiden Room?

É uma mera sessão espírita com filmes perdidos, mas os espíritos continuam interrompendo uns aos outros para formar combinações narrativas aleatórias. Nesse caso, elas estão aninhadas umas dentro das outras como bonecas russas, tão profundamente até uma história estar alojada dentro de umas nove histórias dentro de histórias dentro de histórias. Todas foram filmadas por mim e meus colaboradores, e editadas juntas para consumo público, e parecem algo extraído de química fotossensível com pixels digitais. É o híbrido analógico-internet perfeito.

Tendo Séances em mente, como você acha que o computador e a internet podem funcionar como suporte artístico? Você acha que alguns gifs e memes podem ter valor de arte?

Eu sou absolutamente viciado em GIFs! Posso olhá-los o dia inteiro. Que grande ideia, um pequeno fragmento quase tão longo quanto a memória média de algo. Amo GIFs. Eu nem sei se eles são arte – suponho que sejam – mas são certamente viciantes e poderosos. “O futuro é onde passaremos o resto das nossas vidas”, é a frase famosa de Criswell em um filme de Ed Wood. Para a maioria de nós a internet é onde passaremos o resto de nossas vidas, onde extrairemos os mais ricos sabores da experiência. Se isso é algo triste ou maravilhoso dependerá desse futuro de aparência estranha. Mas a internet definitivamente possui o ambiente ideal para o crescimento robusto da arte!

Como foi a seleção de elenco e o comportamento dos atores no set? O que eles acharam de tomar parte em sessões espíritas para inspirar profundamente a equipe?

Os atores todos entraram nos procedimentos sobrenaturais. Eu tive um agente de elenco maravilhoso em cada cidade, que conhecia a comunidade de atores e quais deles topariam uma aventura esquisita. Cara, como eu estava empolgado com as estrelas que consegui! Ter Geraldine Chaplin, filha de você-sabe-quem, sentada à mesa da sessão espírita com Mathieu Amalric, Charlotte Rampling, Udo Kier, Maria de Medeiros e até Luce Vigo, a filha do imortal Jean Vigo – era tão impressionante e mesmo terrivelmente fantástico!