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Frame do longa-metragem Corações cicatrizados, dirigido por Radu Jude
Postado em 03/11/2016 - 5:02
O melhor da Mostra de SP
Após rigoroso estudo da programação da 40ª Mostra de Cinema, foram selecionados os quatro melhores longas entre os mais de 300 apresentados
Sofía Machain

A 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo chegou ao fim em 2/11 com mais de 300 títulos exibidos. A programação, que incluiu retrospectivas, apresentações especiais, uma grande onda de novos diretores e trabalhos da perspectiva internacional, reuniu os filmes mais esperados pela cinefilia paulistana. Após ter estudado rigorosamente a programação e repassado os títulos que já foram a outros festivais, segue uma seleção dos melhores longas do evento cinematográfico.

 

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Frame de O Sol, o Sol me Cegou

 

O Sol, o Sol me Cegou (Wilhelm Sasnal, Anka Sasnal)

A seção dedicada à Polônia trouxe um amplo catálogo de seu cinema contemporâneo, acompanhado da maravilhosa retrospectiva de Krzysztof Kieslowski. Inspirado no romance mais famoso de Albert Camus, O sol, o Sol me Cegou, gira em torno de Rafal, o Mersault moderno de Camus. Rafal é um homem de meia-idade perdido em nossa época. Rafal é indiferente a tudo, calado e inexpressivo. Ele se considera um estrangeiro em seu próprio canto do mundo e mantém sua rotina miserável depois da morte da mãe. Rotina que será finalmente ameaçada com a aparição de outro estrangeiro. O filme dos diretores Sasnal atualiza o relato de Camus, projetando-o no imenso problema – poucas vezes bem representado no cinema – da xenofobia e da crise dos refugiados. Neste caso, o árabe no romance de Camus é representado por um negro, que aparece jogado à beira do mar – uma imagem cada vez mais frequente e familiar atualmente. A costa onde o personagem chega é o norte da Polônia.

Corações Cicatrizados (Radu Jude) 

Continuando com adaptações literárias, o último filme do romeno Radu Jude nos transporta à Romênia dos anos 1930. Manu, alter ego de Max Blecher, escritor do romance sob o mesmo título que o filme, é internado em um hospital com vista para o Mar Negro, especializado em tratar a tuberculose óssea, também conhecida como doença de Pott. Lá, Manu, sempre deitado na sua maca e imobilizado pelo gesso que rodeia sua coluna vertebral, se refugia nos seus conhecimentos intelectuais e na literatura, e irá enfrentrar a tristeza e a solidão com um afiado humor negro. Junto com o resto dos pacientes, o local parece mais um acampamento de verão do que um lugar para tratar doenças e o filme vira um exercício de vitalidade pitoresco e irreflexivo. Radu Jude aproveita a história de Blecher, através de maravilhosos planos fixos emoldurados num formato 4:3, para deixar registrada a iminente chegada do nacional-socialismo que irromperá com a eclosão da Segunda Guerra Mundial.

 

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Frame do longa Oscuro Animal

 

Oscuro Animal (Felipe Guerrero)

A obra-prima do diretor colombiano Felipe Guerrero segue a viagem de três mulheres que tomam as rédeas de seu destino e fogem da guerra na Colômbia, atravessando a floresta. As mulheres, sempre em silêncio, são apresentadas como corpos em movimento, feridos, porém fortes. E o agente que as persegue, ou o agente de quem estão fugindo, nunca é esclarecido para o espectador. Em certas ocasiões o escutamos, em outras até vemos seu rosto mas, afinal, poderia ser qualquer coisa: a guerrilha, os narcos… O filme nos revela o conflito da Colômbia como uma única sombra espessa, como esse escuro animal que espreita tudo, que ruge desde as sombras.

 

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Frame do filme de Emir Baigazin

 

O Anjo Ferido (Emir Baigazin)

Sob a estética depurada do claroscuro, O Anjo Ferido retrata a transição à vida adulta de quatro adolescentes que moram numa zona rural e marginal do Casaquistão durante os anos 90, após a queda da União Soviêtica. Cada um dos protagonistas se sentirá preso em uma situação chave, um dilema moral do qual só poderão sair se decidem deixar para trás as asas de anjos inocentes da primeira idade e se acolherem o lado escuro e desolador da vida adulta. O filme é a segunda parte da trilogia idealizada pelo diretor sobre a adolescência, iniciado com Harmony Lessons (2013). De novo, a adolescência olha para o futuro turvo que a espera, e é representada no seu sentido mais macabro, trágico e triste.

Sofía Machain atua como crítica de cinema e curadora audiovisual. Tem colaborado com diversos meios digitais de crítica cinematográfica na Espanha, cobrindo alguns festivais como o Donostia Zinemaldia, Festival Internacional de Cinema de San Sebastián. Atualmente, faz parte do conselho editorial do site espanhol de crítica, análise e criação audiovisual, Visual 404: experience not found, desde 2014, onde também escreve sobre cinema. É curadora do projeto Cineclube 397, como parte da programação do espaço de arte independente Ateliê 397.