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Postado em 12/03/2012 - 3:10
Os idiotas contra o baixo astral
Juliana Monachesi

Há uma divertida, corrosiva e irônica família de artistas que virou o mundo das artes do avesso

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Legenda: Fat Convertible (2005), de Erwin Wurm (Foto: divulgação/cortesia galeria Xavier HuFkens, Bruxelas)

Fofices à parte, a era gugu-dadá também tem seu lado negro. Alguns trabalhos de arte recentes podem ser tomados como sintomas do pueril, da idiotia e do mau gosto grassando no inconsciente cultural. É o caso da foto, feita por Olaf Breuning, de um homem de quatro coberto de macarrão (Spaghetti Dog, 2005). ou da Branca de Neve e o anão Dunga da escultura monumental de madeira maciça de Paul McCarthy, que amalgama os personagens criando um deformado conto de fadas mutante. Participam do mesmo universo as animações de massinha de Nathalie Djurberg, em que animais fofos protagonizam roteiros lascivos.

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Legenda: Collage Family (2007), fotomontagem de Olaf Breuning: “a arte se leva muito a sério”, diz

Também integra o elenco a futilidade levada às raias da loucura no vídeo de Ryan Trecartin, em que uma adolescente tenta o suicídio .bebendo uma garrafa de Listerine. Ou, ainda, as regras de comportamento politicamente incorretas das fotos de Erwin Wurm, ensinando a cuspir na sopa alheia ou tirar um cochilo no banheiro da empresa. Esse breve panorama permite detectar uma corrente artística que se vale da carga política e poética de atitudes infantis ou simplesmente ridículas.

O império do mau gosto tem vultosos precedentes na história da arte contemporânea: toda a filmografia de John Waters, as esculturas de Jake & Dinos Chapman ou Mike Kelley e, acima de tudo, o filme Os Idiotas (1998), de Lars von Trier, que marcou uma geração ao sinalizar a potência revolucionária de atitudes débeis. A radicalidade de forma e conteúdo da obra-prima do cineasta dinamarquês logo seria enfraquecida em diluições ao estilo do programa de televisão Jackass.

Na teoria da arte, esse tipo de produção foi abordado em Informe – exposição e livro de Yve-Alain Bois e Rosalind Krauss que releem o modernismo a partir da filosofia de Georges Bataille –, em Nosso Grotesco (subtítulo da curadoria de Robert Storr no site Santa Fe 2004), e na curadoria sobre idiotia, DafT, de Mathieu Borysevicz, realizada em uma galeria de Xangai em 2011.

Olaf Breuning, artista suíço residente em Nova York, faz suas fotografias, esculturas, desenhos e vídeos como uma criança que destrói e reconstrói seus brinquedos. Os utensílios domésticos estão entre seus materiais de trabalho preferidos: luvas de borracha fazem as vezes de pelos de cachorro e sandálias Crocs estão no lugar das patas. Vasilhas, talheres e outros apetrechos de cozinha dão forma a robôs e figuras antropomórficas que habitam instalações bizarras do artista, juntamente com outras tantas quinquilharias compradas nos mercados populares nova-iorquinos de Canal Street e Chinatown.

Nas fotografias de grupo, Breuning cria encenações que parecem egressas de filmes B de terror, com especial predileção por zumbis e motosserras, cabelos ou barbas compridas e máscaras toscas, em ambientessombrios e esfumaçados. Ele cria ainda cenas (tableaux) pseudo-históricas, reunindo índios (Primitives, 2001), cavaleiros em armaduras (Knights, 2001) ou vikings empunhando pranchas de surfe longboard (Vikings, 2005). Quando os protagonistas das fotos não são estranhos grupos uniformizados, eles são personagens com desenhos, alimentos e utensílios acoplados ao corpo. É assim em Brian (2008), que tem cara de porco e bolas de tênis no lugar das orelhas, pepinos como dedos da mão e uma das pernas mutilada na altura do joelho, com o sangue artificial mal encobrindo a perna dobrada.

Para o crítico da revista ArtForum Michael Wilson, a imersão na cultura pop é uma crítica de Breuning à codificação excessiva da arte recente. “Enfatizando uma continuidade entre a vida diária e os universos oníricos da moda, do cinema e da tevê, ele recusa a possibilidade de uma verdade única e singular. E, como Mike Kelley antes dele, emprega humor adolescente para contornar quaisquer expectativas persistentes de uma conclusão adulta e sem graça”, escreveu em resenha da exposição do artista na galeria Metro Pictures, em 2004.

“A arte em geral é muito cheia de si e se leva muito a sério”, afirma Breuning em entrevista à seLecT. “Bons os velhos tempos do dadaísmo, quando ainda era possível ser um artista verdadeiramente malvado.” Para o artista, enquanto “a vida adulta parece ser carregada de tantos problemas autogerados”, a visão infantil sobre as coisas fundamentais é menos filtrada. “Os problemas estúpidos ainda não estão lá. Elas são capazes de fazer um desenho de uma casa, de um cavalo ou de um carro sem pensar em todos os modelos possíveis de um carro. É isso que ainda estou fazendo aos 41 anos: procuro falar sobre as coisas de uma forma universal e não filtrada.”

O artista austríaco Erwin Wurm, respondendo à mesma pergunta sobre infantilidade como motor da produção, recusa a aproximação: “Não há nada de infantil no meu trabalho. Faço um trabalho sério, sobre assuntos sérios. Ele pode ser engraçado para algumas pessoas, mas de fato é um trabalho preocupado politicamente, não é sobre essa absurda realidade em que, em pleno século 21, há pessoas na África do Norte acreditando que a sociedade deve ser governada por 65 leis islâmicas dos séculos 14 e 15”.

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Legenda: Spit in Someone’S Soup, fotografia Da série instructions on How to Be Politically incorrect, do artista austríaco Erwin Wurm (Foto: divulgação/cortesia do artista)

“O que me interessa são pessoas vivendo realidades tão díspares ao mesmo tempo. A realidade é dez ou cem vezes mais absurda do que as pessoas gostam de acreditar. Como artista estou interessado em observar o mundo e comentar ou lançar perguntas sobre essa nossa realidade”, afirmou à seLecT, por telefone, de seu ateliê em Viena.

Wurm é conhecido pela ironia que beira o cinismo de suas esculturas rechonchudas – carros, casas, figuras humanas – e também pelas performances fotografadas da década de 1990, as One-Minute Sculptures (Esculturas de Um Minuto), em que ações desafiam a mesmice do cotidiano. São poses absurdas envolvendo objetos do dia a dia, como acessórios de moda ou itens de escritório, postas em prática em um minuto pelo próprio artista, por performers ou por visitantes de suas exposições. Apesar do humor por vezes infantil, o artista recusa o rótulo: “Definitivamente, não crio obras para entreter as pessoas nem tampouco para fazê-las rir.

Eu faço obras como One-Minute Sculptures e Instructions on How to Be Politically Incorrect certo do poder subversivo e anárquico, da relação absurda e estranha entre objetos e pessoas”.

Wurm admite que os dadaístas estão entre suas referências: “Meus trabalhos têm maior relação com a ideia do absurdo e das diferentes percepções da realidade que cada pessoa tem. A palavra ‘infantil’ não se aplica de maneira alguma. Minha obra tem mais a ver com a liberdade de poder rir de si mesmo ou poder agir de maneira ridícula e não se envergonhar disso nem com todas as coisas que socialmente costumam constranger as pessoas. Tem a ver com não precisar agir de maneira apropriada ou como a sociedade considera normal. Isto sim é uma ideia subversiva”.

Para o artista e crítico Rafael Campos Rocha, o idio tismo e a infantilidade podem ter um “poder corrosivo sobre o estabelecido e as estruturas de dominação que o sublime e, principalmente, o edificante dificilmente conseguem”. Rocha há dez anos ministra cursos livres de história da arte e atualmente é professor no Instituto Tomie Ohtake, onde sempre inclui uma aula sobre Paul McCarthy, centrada no vídeo Painter (1995).

“Trabalhos como os de Paul McCarthy têm muitomais força do que, por exemplo, a obra de Hélio Oiticica, mesmo na crítica do capitalismo que os dois, acredito, exercem. Primeiro, porque HO exige o tempo inteiro um estatuto de arte para a própria obra.  E a arte é o produto perfeito do capitalismo, a mais brilhante face da mercadoria-fetiche. Enquanto o brasileiro luta por manter o estatuto da arte como alternativa ao mundo, McCarthy ridiculariza inclusive o sonho modernista como sendo autoritário, com o seu genial Painter, porque o mundo que Oiticica almeja, como o dos futuristas, é um mundo onde ele, o artista-criador, ocupa uma posição de poder. E justamente ridicularizar as posições de poder é o que os melhores artistas fazem”, observa Rocha Paul McCarthy, norte-americano que encena fantasias regressivas, violentas e perversas em videoperformances, esculturas e instalações, nos confronta com “um pesadelo de sexualidade polimorfa e decadência física que só poderia ser o mau sonho de uma cultura do consumo tão espectral e desencarnada como a nossa própria”, conforme análise do curador nova-iorquino Ralph Rugoff.

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Legenda: Santa with Butt Plug (2007), de McCarthy (Cortesia do artista)

Pinóquio (Pinocchio Pipenose Householddilemma, 1994), Papai Noel (Santa Chocolate Shop, 1997) e diversos outros personagens de contos de fadas e da Disneylândia já foram objeto da perversão do universo infantil de McCarthy, que em sua mais recente exposição na galeria Hauser & Wirth, em Nova York, no fim de 2011, se dedicou aos Sete Anões (The Dwarves, the Forests).

Ken Johnson, em crítica no jornal New York Times, sugeriu que as obras da exposição poderiam ser interpretadas como “monumentos de resistência à hipócrita cultura dominante”, situados em uma tradição que vai de Rimbaud a Dash Snow. Isso porque estão “baseados na convicção de que enlouquecer é a única resposta sã à vida moderna”. Detendo-se na escultura Branca de Neve e Dunga (2011), entretanto, o crítico sugere que, “tendo exaurido as possibilidades da feiura caótica”, McCarthy estaria agora considerando o “potencial subversivo da beleza”.

Para Wurm, a estratégia de McCarthy tem mesmo a ver com a mudança dos tempos: “Nos anos 1980, qualquer discurso sobre a realidade tendia a ser cheio de paixão e excessos, como uma espécie de sobrepeso. Quando eu penso no trabalho dos minimalistas e dos estruturalistas, considero obras de uma importância ‘pesada’. Hoje trabalhos sobre essas questões são mais possíveis, como a obra de McCarthy, Martin Kippenberger ou Maurizio Cattelan. Eu chamo meu método de ‘cinismo crítico’ e creio que se aplica ao trabalho desses artistas também. Acho que é possível manter a importância daquele discurso, mas tornando-o absurdo a partir dos elementos cínicos da nossa vida”, defende.

“Os artistas evitam rir deles mesmos para manter uma posição de respeito dentro da hierarquia social e, dessa forma, serem recompensados por isso. Ao manterem firme a posição da arte na sociedade, reforçam a suposta ‘naturalidade’ dessa sociedade, ainda que aparentemente a critiquem. São porta-vozes do status quo do capitalismo, do fetiche da mercadoria e da exploração, ainda que aparentemente digam o contrário. Com raras, raríssimas exceções, não passa de hipocrisia. Já uma posição pouco séria coloca em dúvida o estatuto da própria obra e, por consequência, de seu produtor, lançando uma nuvem de dúvida sobre tudo que a cerca, principalmente a Arte. Acho essa posição mais saudável e mais honesta”, completa Rafael Campos Rocha.

*Publicado originalmente na edição impressa #4.