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Frame do DVD Vídeo Experimental (Fotos: Divulgação)
Postado em 19/10/2016 - 4:12
Para além da Bauhaus 2.0
Vídeo Experimental, DVD de Raimo Benedetti, mostra como o artista e professor dá outro sentido ao sonho de um ensino integrado Bauhaus
Marcus Bastos

Após 15 anos criando cursos performáticos, Benedetti descobre no processo muito mais que uma forma nova de fazer vídeo ao vivo. Ele é pioneiro da prática. Sua trakitana — um conjunto de câmera, TV e videocassete que permite filmar e montar ao mesmo tempo — reinventa de forma bastante original os usos do feedback e da tomada em direto. Como professor em museus, galerias, universidades e espaços independentes, Benedetti reinventa o ensino, ao transformá-lo em linguagem experimental. Faz sentido, se pararmos para pensar no sentido cinematográfico implícito na expressão “montar aulas”, mas poucos cursos levaram a extremos as consequências desta proximidade.

O entrelaçamento de práticas diferencia sua pesquisa, atenta às misturas de gêneros e cruzamentos entre circuitos que se tornaram marca da arte contemporânea. Onde se espera o ao vivo e o improviso como um procedimento da performance, ele surge como dispositivo pedagógico. Onde se espera filmagens e montagens como recurso audiovisual, elas surgem como estratégias plásticas. Onde se espera o aprendizado como motivo de encontros periódicos, ele surge como experimentação e laboratório. É como se os sonhos da Bauhaus e um ensino integrado ganhassem outro sentido, numa época em que autoria e obra são menos importantes que colaboração e processo.

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O aspecto presencial da poética de Raimo Benedetti ganha complexidade, na medida em que o artista elimina a diferença entre suas aulas e performances. O exemplo mais significativo deste procedimento é Cinema das Atrações, apresentado em 2013, na mostra Live Cinema. Durante a performance, é impossível distinguir educador e artista, conforme o imaginário do primeiro cinema torna-se material para uma experiência de metalinguagem sobre os sentidos do ao vivo.

Com o DVD Video Experimental, outro aspecto da poética de Benedetti vem à tona. Seria impreciso dizer que os vídeos resultantes de seus cursos são elemento principal. Os vídeos correspondem a uma parte importante, tem autonomia como obras de cinema experimental, mas adquirem um sentido mais potente se atrelados ao contexto de produção. Não cabe pensar o DVD em termos de obras, vídeos explicativos e extras, mas como um grande conjunto que permite acessar as diversas camadas que, nos quinze anos de produção reunidos, foram trançando-se em complexidade crescente.

Filmes como Opus 8 – Amparo 14, os registros de aulas (numerados conforme os grupos que compuseram cada turma) e experiências como Métricos ou Sinestesia revelam um repertório fértil de pensamentos audiovisuais. Mesmo os vídeos silenciosos precisam ser entendidos como audiovisual: o ritmo pressuposto na montagem torna suas seqüências musicais. O universo de cores, de misturas, sobretudo de explicitação das marcas dos processos eletrônicos e digitais através dos quais o material é processado resultam numa sintaxe que, por um lado, dialoga com o universo da visual music e do cinema experimental, por outro sugere uma paleta completamente nova.

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O filósofo checo Vilém Flusser tornou-se referência obrigatória para pensar o contemporâneo, em função de suas ideais sobre os dispositivos de produção de imagem e as atitudes críticas necessárias para desmontar as imagens feitas embutidas em seus sistemas. Tendências como o glitch e o circuit bending tornaram popular as práticas de desmonte de aparelhos e o uso de seus ruídos como material para a experimentação. Raimo Benedetti antecipa um pouco dessas tendências, com sua produção que se vale de procedimentos de desconstrução, reciclagem e ressignificação de aparelhos obsoletos, que permitem encontrar, onde se supunha o obsoleto, energias capazes de renovar práticas audiovisuais que vem tornando-se cada vez mais homogeneizadas, como resultado da padronização operada pelo digital e seus aplicativos que simulam, sem desmontar, as imperfeições dos processos analógicos.

Marcus Bastos é professor da PUC-SP e da ECA-USP. É autor de Limiares das Redes: escritos sobre arte e cultura contemporânea (2014)