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Tropos Vagabunden XXIII, 2014, Robert Kelly (Foto: Cortesia Galeria Mercedes Viegas)
Postado em 30/09/2015 - 7:20
Parentesco neoconcreto
O norte-americano Robert Kelly exibe na Galeria Mercedes Viegas, no Rio de Janeiro, pinturas com rigorosas e ritmadas geometrias, de assumida filiação neoconcretista
Angélica de Moraes

Mais uma sólida evidência de que as raízes do neococretismo brasileiro, além de alimentar boa parte da arte do País e garantir visibilidade e prestígio no exterior para seus autores históricos, também têm vigor para irrigar e se misturar com a atual produção artística internacional. A inteligente e harmoniosa obra abstrata do norte-americano Robert Kelly, que mora em Nova York, tem evidentes ressonâncias do vocabulário visual de Lygia Pape, Hélio Oiticica e Lygia Clark. Esse fato pode ser conferido na exposição individual From Here to There: Recent Paintings (Daqui para Lá: Pinturas Recentes), que Kelly realiza na Galeria Mercedes Viegas, no Rio de Janeiro.

Como essa influência neoconcreta aconteceu? Kelly conta para seLecT: “Comecei a conhecer os neoconcretos um pouco tarde no meu desenvolvimento artístico e sou grato por isso, porque essas informações não teriam tanta importância e poder de sedução se eu as tivesse visto antes”. O artista passou primeiro pela inevitável tradição europeia (e uruguaia), ponto de partida também das pesquisas que, nos anos 1950, embasaram as sínteses formais de uma geração de artistas brasileiros para criar essa linguagem.

“Certamente, nomes como Mondrian e Calder, Arp e Torres-García tiveram influência no meu aprendizado, mas foi nos anos 1990 que eu verdadeiramente comecei a me aproximar e apreciar as qualidades poéticas, culturais e existenciais do neoconcretismo”, situa ele. “Foi justamente nessa época que minha obra foi se tornando mais despojada, mais essencial, silenciosa e meditada. Foi quando consegui integrar melhor meus processos pessoais de pintar e fazer assemblages.”

Os princípios formais e tonais do neoconcretismo são assumidamente o pano de fundo de toda a produção de Kelly nas décadas que se seguiram a essa descoberta e até a atualidade. “Penso que o grau de intimidade e fascínio com as formas trazido por esse movimento estético brasileiro é um modo de engajar tanto o artista quanto o espectador, é um modo de criar pontes entre subjetividades e estabelecer ligações profundas de fruição”, observa.

Pensamento gráfico
Outra informação básica para mapear as características da obra de Kelly é a sólida formação em gravura. O artista é respeitado nesse meio exigente a ponto de o Tamarind Institute (Universidade do Novo México, EUA), centro mundial de excelência na formação de master printers (técnicos impressores) em litogravura, ter incluído trabalhos seus no livro que assinalou os 40 anos de existência da instituição. O Tamarind convida artistas de todo o mundo para criar obras especialmente para seus técnicos executarem. Não é pouca coisa. É um desafio de competência. Mesmo assim há algum tempo Kelly transferiu o foco do seu trabalho para a pintura. A gravura e o pensamento gráfico, porém, continuam a segui-lo e a emergir do que faz sobre tela.

Robert Kelly assumiu um conceito e uma prática expandida de gravura, hibridizando-a com a assemblage e a pintura. Sem abandonar o suporte papel nem as sutilezas das técnicas gráficas, mesmo na extensão mais corriqueira delas: a impressão industrial. Seu processo de trabalho assume diversos procedimentos. O mais recorrente deles começa pelo acúmulo e sobreposição de camadas de papéis impressos das mais diversas origens (livros, folders, cartões), para cobrir a super- fície da tela com uma intrincada malha de signos. A composição final será feita por apagamento ou seleção de áreas dessa assemblage, usando tinta a óleo e pincéis. É assim que contrasta rigorosas e ritmadas geometrias de cor com a fluidez sinuosa da escritura de signos e linhas, que surgem quase como palimpsestos, do fundo do quadro.

Caminho pessoal
Olhar os trabalhos de Robert Kelly é também observar que, ao lado da tradição, existe um caminho pessoal. Enquanto se nutre da História, ele trata de delimitar seu próprio campo de invenção. A memória é (como nas tapeçarias que gosta de colecionar) a urdidura de outras possibilidades de tramar a ação. Nela cabem o acaso e os índices do tempo decorrido: papéis velhos, amarelecidos pelos anos, que fazem contraponto aos nítidos contornos de retângulos ou segmentos de círculos traçados em negro ou em cores ora primárias e vibrantes, ora rebaixadas em belos azuis-acinzentados.

Ele concorda que o pensamento gráfico participa de seu processo criativo. “Todo meio de expressão artística torna-se um processo investigativo, no qual o artista busca o uso específico dos limites e da beleza desse meio para criar suas obras”, frisa Kelly. “Experiências gráficas como gravura em metal, litogravura ou monotipias são construídas geralmente por camadas e manchas gráficas sobrepostas, que nos oferecem a sensual e reflexiva possibilidade de brincar com a ima- gem, com a percepção mental ou conceitual de como construir imagens naquele meio. Isso tudo refina uma consciência de como e por que escolhemos trabalhar com o meio que usamos e que tipo de imaginário devemos utilizar para sintonizar com ele. As artes gráficas nos oferecem uma delicadeza e uma precisão que destilam formas.”

Quando conversou com seLecT, em junho, recém-chegado em Nova York de uma viagem à Europa, para visitar a Bienal de Veneza, ir à Feira de Basel (Suíça) e passar por Paris (para visitar a monumental exposição de Velásquez no Grand Palais), ele trazia na mala muitos impressos e fragmentos gráficos disso tudo. Material para novos trabalhos? Sim, porque, como ele mesmo observa, “nessas jornadas, o coletivo torna-se pessoal e a fonte material é absorvida através de uma geografia que transforma o desconhecido ou o pouco conhecido em um passeio mais fami- liar e subjetivo”.

Robert Kelly estará no Rio para a abertura de sua primeira individual na Galeria Mercedes Viegas. A exposição segue em cartaz na galeria carioca até 10 de outubro.