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Guilherme Kujawski, produtor de conteúdo, curador e autor de ficção científica (Foto: Cortesia de Kujawski)
Postado em 11/08/2016 - 1:12
Polarizações pós-colonialistas
Sob a perspectiva da chamada “arte política” o conflito israelo-palestino pode ser enfrentado de diversas maneiras
Guilherme Kujawski

Sob a perspectiva da chamada “arte política” o conflito israelo-palestino pode ser enfrentado de diversas maneiras. Apresentamos duas estratégias testadas nesse território minado: uma tencionando o sistema intersubjetivo corrompido pelo agente dominador, outra usando a prática arquitetônica como uma forma de efetivar uma “engenharia reversa” da própria lógica colonial.

A primeira foi incluída e descrita brevemente no capítulo Reclaiming spaces (Reivindicando espaços), do livro Truth is Concrete, um compêndio de ensaios sobre arte e ativismo. A “curadoria” do capítulo – composto por projetos de resistência e reivindicação de espaços públicos (pichação, squating, jardinagem de guerrilha etc.) – é feita pelo pesquisador argentino Federico Gueller o qual, no texto introdutório, tece algumas objeções sobre a capacidade liberatória das subjetividades frente às limitações impostas por espaços físicos concretos: “A expansão de nossas relações com o espaço físico, tais como a propriedade privada e as fronteiras nacionais, limitam em muito os espaços ‘sem limite’ de nossa subjetividade”, dispara Gueller. A reflexão pode funcionar como uma chave de leitura para um dos textos de sua escolha, titulado Performing normality (Performando a normalidade) e assinado pelo artista palestino Khaled Hourani.

Eis um resumo: em 2011, Hourani conseguiu, após uma complexa e demorada articulação, trazer o quadro cubista Buste de Femme, de Picasso, no valor de US$ 4,3 milhões, para uma exposição na Academia Internacional de Arte, centro cultural localizado no centro de Ramallah, uma das principais cidades da Palestina, “nação imaginária” composta pela Faixa de Gaza, Jerusalém Oriental e Cisjordânia, regiões ainda não anexadas formalmente por Israel. A negociação com o diretor do museu holandês Van Abbemuseum, Charles Esche, durou quase dois anos, ao final da qual foram acordadas as condições de climatização da sala expositiva e, claro, o valor do seguro, fechado em U$ 7 milhões. Mesmo assim, Esche teve de enfrentar a ira da diretora de acervo do museu, Christiane Berndes, para quem o empréstimo estava colocando em sério risco um dos maiores patrimônios de Eindhoven. Ao cabo e ao final, tudo foi acertado, mas desde que toda a operação fosse monitorada pela Administração Civil Israelense, orgão que funciona sob os auspícios das Forças de Defesa de Israel.

O texto de Hourani não explica muito os detalhes estratégicos por detrás de sua intenção, ficando ao cargo do leitor inferi-las. E foi exatamente o que fizemos. A investigação levantou diversas camadas de leitura: a começar por seu título, que sugere um desejo de inserção do suposto Estado da Palestina no quadro geopolítico internacional, com a demonstração do pleno funcionamento de suas estruturas institucionais, inclusive as culturais e diplomáticas, encenadas em escala microscópica por Hourani. Mas isso seria óbvio demais. Outra hipótese é que talvez ele quisesse revelar ao mundo a subordinação forçosa da Palestina a um Estado orwelliano, ao saber de antemão que toda a produção executiva da exposição estaria sob a vigilância e controle do “país invasor”, expressão um tanto quanto controversa, mas justificada pela sequência de violações de direitos humanos por parte dos israelenses.

Ou seria a intenção de Hourani mais, digamos, subjetiva, ao propor nas entrelinhas uma comparação entre o retalhado Estado da Palestina e a multifacetada representação do quadro de Picasso? Como se sabe, a pintura de 1943 é parte de uma série homônima constituída por retratos das diversas relações amorosas do pintor espanhol, os quais funcionavam como medidores de seus estados afetivos. De qualquer forma, a obra que foi parar em Ramallah pode ser considerada a epítome do cubismo, movimento artístico que se valia do método analítico, da fragmentação do plano de duas dimensões e dos contornos geométricos bem definidos, quase como se fossem linhas claras. Basta colocar o atual mapa da Palestina ao lado do quadro para se verificar a assombrosa analogia entre os ângulos visuais abruptos da pintura e os recortes do “atlas do conflito”, um território esfacelado por assentamentos ilegais e agora delineado pelo nefasto Muro da Cisjordânia, barreira de 760 km de extensão que pretende estabelecer uma verdadeira zona de exclusão. Em suma, talvez Hourani quisesse reforçar, aos olhos dos cidadãos de Ramallah, uma “Palestina cubista”, deformada, estilhaçada.

Sem querer entrar no mérito da eficácia do artifício, vindicando resultados palpáveis do ato de Hourani, colocamos em contraste uma segunda estratégia, não como contraponto, mas como uma alternativa, que não precisa ser oposta, mas pode significar “outras formas”. Assim, saímos de Ramallah e seguimos em direção à Beit Sahour, ao sudeste de Belém, uma cidade à beira do deserto onde convivem em relativa tranquilidade cristãos, judeus e muçulmanos, mas que é também conhecida por sua postura de desobediência civil e resistência à ocupação. Lá, ninguém sofre “alucinações de normalidade”, ou mesmo é iludido pelo binarismo eterno das soluções do Estado único ou dos dois Estados, preferindo algo na linha do “Estado nenhum”, com laivos anarquistas, opção que pode ser atestada pelos diversos experimentos de autogestão ocorridos dentro de sua circunscrição ao longo da história, como a implementação de escolas livres em garagens durante a primeira Intifada.

Em maio de 2006, o Exército israelense evacuou um acampamento militar estrategicamente localizado na colina mais alta na entrada sul da cidade, suscitando na comunidade a dúvida sobre qual destino dar ao local e seus arredores. O projeto de residência artística Descolonizando a Arquitetura (DAAR), dirigido por Alessandro Petti, Eyal Weizman e Sandi Hilal, foi convocado para oferecer propostas e soluções. O projeto artístico-arquitetônico foi criado originalmente para lidar com uma questão fundamental: como as construções de ex-bases militares e ex-colônias de Israel podem ser reutilizadas, recicladas ou reabitadas por palestinos? Não são questões triviais, se considerarmos que o primeiro impulso de um povo oprimido é destruir por completo os sinais de presença física de seus opressores, fato realmente consumado em algumas áreas da Faixa de Gaza, mas que resultou em toneladas de escombros tóxicos. As outras duas opções, segundo o DAAR, são o reuso e a subversão, sendo a última analisada em seguida.

Primeiro, devemos definir a ideia orientadora das ações do projeto, que é precisamente a da descolonização, ou seja, ela contém em si o reconhecimento de que a situação política e social dos territórios ocupados da Palestina está bem longe de ser “normal”. O tema do processo de descolonização, discutido no âmbito do DAAR, é mais amplo do que é comumente abordado nos seminários de pós-colonialismo, pois “não está vinculado a um conceito, nem é restrito a um espaço ou tempo: é uma prática contínua de desativação e reorientação.” Uma das preocupações dos diretores é a de que, caso não seja destruída, a infraestrutura libertada seja simplesmente reutilizada para reproduzir as mesmas relações de poder coloniais, com novas elites financeiras locais, etc. Por isso, as iniciativas de reuso são colocadas em segundo plano, cedendo o lugar para uma nova abordagem: a de subversão.

Mas qual é o seu princípio conceitual? Para o DAAR, subversão significa, antes de tudo, profanação, mas de acordo com a acepção que o filósofo Giorgio Agambem dá ao termo, que é o de retornar algo que foi consagrado por um regime de exceção ao seu contexto original, o qual só é possível através da “desativação de seu antigo uso, tornando-o inoperante”. Assim, uma das estratégias do grupo é chamada de desparcelamento, que reverte, nas áreas desocupadas, o parcelamento do solo urbano, noção semelhante ao loteamento, que é a divisão da gleba em lotes com destinações específicas. Grosso modo, são colocados os mapas das antigas propriedades palestinas sobre os mapas da ex-colônia, resultando na sobreposição de dois sistemas. É proposto a partir disso nem uma abolição nem um reestabelecimento das divisões originais, visando encorajar que um plano desative o outro. O processo sintetiza assim um novo tipo de zoneamento, que instaura uma associação inédita entre o público, o privado e a memória perdida. Uma outra estratégia do DAAR é chamada de desenterramento, que consiste no revolvimento radical dos primeiros quinze centímetros de solo das áreas desocupadas. Isso é relevante, porque são nas primeiras camadas da superfície de uma ex-colônia que está inscrita a maior parte de sua lógica operacional (cercas, muros, barreiras etc.). Revirar a terra superficial como que retira a “pátina” ideológica e traz à tona uma nova relação metafórica entre extrato e substrato, consciente e inconsciente.

Parafraseando o estadista francês Georges Clemenceau, o conflito israelo-palestino é importante demais pra ser deixado na mão dos militares. Eis por que a elaboração de estratégias estéticas que coloquem em evidência as arbitrariedades de uma falsa justiça podem ser tão ou mais eficientes que a própria resistência armada. O alvo de uma arte ativista é mostrar, dentro desse contexto, que o discurso político é um verdadeiro aparato de guerra, e não apenas um gesto comunicacional. As duas formas apresentadas no artigo não são excludentes, e muito menos são as únicas. Talvez Houssani não seja um mero conformista ao propor um “novo normal” a um povo cansado de anormalidades; sua ousadia repercutiu intensamente na mídia internacional e nos debates políticos, o que já é prova de sua eficácia (afinal, não é assim que pensam os “terroristas”: atacar as referências simbólicas de seus inimigos?). No caso do projeto Descolonizando a Arquitetura, os recursos são outros, assim como os seus métodos. Os coordenadores do programa, e artistas e arquitetos que ingressam regularmente em seu programa de residência, têm também ambições ao propor a expansão literal das relações do povo colonizado com um espaço maculado, por meio de uma “reprogramação” espacial e neural de mentes traumatizadas por décadas a fio. De qualquer forma, reconhecemos que ambas as estratégias são válidas e podem até influenciar a agenda dos verdadeiros donos do poder.

Guilherme Kujawski é produtor de conteúdo, curador e autor de ficção científica. Mestre em Artes Visuais pela Donau-Universitat, Áustria, e doutorando na USP

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