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Fotografia da exposição A Mão do Povo Brasileiro (Fotos: Hans Gunter/ Acervo Instituto Moreira Salles e Luiz Hossaka/ Masp)
Postado em 06/07/2016 - 12:21
Prática museológica libertadora
Masp prepara a reencenação de A Mão do Povo Brasileiro, histórica exposição que trouxe para o cenário paulista a rica cultura material do País
Giancarlo Latorraca

Quando o Masp abriu ao público em geral, em 1969, com a revolucionária e democrática apresentação do acervo nos cavaletes de vidro e a ocupação do belvedere como praça musealizada, a exposição temporária A Mão do Povo Brasileiro afirmava a contribuição possível dos saberes e fazeres populares ao universo da alta cultura. Pré-inaugurado um ano antes, com a presença da rainha Elizabeth II, o Museu assumia então a escala das massas; propunha reposicionar conceitos e fronteiras da expressão do conhecimento humano através do mundo das artes, como planejado por Pietro Maria Bardi desde o primeiro Masp da Rua 7 de Abril (1947). Para Lina Bo Bardi, tratava-se de uma nova expressão arquitetônico-museográfica concebida em seu modernismo revigorado e de caráter político nacional, após a fértil experiência dos anos em que viveu ‘a’ Bahia.

A contundente apresentação do universo da cultura popular coletada na Bahia (Bahia no Ibirapuera, 1959, feita em parceria com Martim Gonçalves, Glauber Rocha e Mario Cravo Jr., entre outros) expôs utensílios, objetos de uso cotidiano, religioso, além de extensa documentação fotográfica de caráter antropológico. Em seguida, instalou e dirigiu o Museu de Arte Moderna da Bahia (Mamb) no foyer do Teatro Castro Alves, na efervescente Salvador pré-tropicalista e do Cinema Novo.

No Museu de Arte Popular do Solar do Unhão, em 1963, concebido como um desdobramento do Mamb, criou o marco de abertura a uma nova e possível reconstrução da cultura material brasileira, de origem popular e miscigenada. Era um projeto para o estabelecimento de um centro de documentação de arte popular e de estudos técnicos, feito a partir de extenso levantamento das bases culturais do Nordeste brasileiro, visando sua incorporação pela indústria nascente e buscando eliminar o risco da importação de modelos exógenos, típicos da indústria de consumo global. Era um desejo de transformar as possibilidades de identidade nacional, um projeto de civilização. Seu ponto de partida, a exposição Civilização Nordeste, inaugurou o museu com uma expografia baseada em caixas de pinho e agrupamentos de objetos que reproduziam a ambientação das feiras populares onde muitos deles tinham sido coletados. Havia objetos oriundos da Bahia, do Ceará e de Pernambuco, adquiridos em intercâmbio com o Movimento Popular de Cultura, fundado no Recife.

Com a Mão do Povo Brasileiro no Masp em 1969, lembremos que, nominada e concebida por Pietro Maria Bardi, rendeu-se homenagem ao “povo do Brasil” e criou-se um alento de continuidade às ambições soterradas na Bahia pela incompreensão política de 1964. A retomada dessas questões no cenário paulista, novamente de forma pioneira em um museu de arte, foi um marco e um manifesto ao apresentar esse conjunto de “saídas” e soluções criativas em oposição ao mundo erudito.

Encenação teatralizada
Utilizando-se da mesma tipologia de expositores de madeira de pinho cru, apresentava um ambiente amplo com iluminação geral, como costumava fazer em suas mostras, permitindo ao público a liberdade de criar leituras sem roteiros preestabelecidos. Foi uma encenação teatralizada, que contava com recursos de som e cheiro de incenso queimado como nas igrejas coloniais. O material exposto era originário do Museu de Arte da Universidade do Ceará, do Museu do Estado da Bahia, do Museu de Arte e Técnicas Populares de São Paulo e de vários colecionadores e antiquários paulistas.

Feita em um momento político difícil de repressão no País, a arquiteta marcou um importante passo rumo à eliminação do “complexo de inferioridade” cultural do Brasil colonizado, incorporando um novo olhar a partir de nossa própria cultura, perante a história da arte ocidental até então consolidada. Esse senso de libertação e afirmação, tônica de todo projeto do Masp, é seu eixo condutor na interlocução junto ao espectador comum, cujo exemplo maior é o próprio cavalete de vidro. No projeto desse seu segundo museu paulista, Lina Bo Bardi encontrou a oportunidade de fundir conceitos e práticas de comunicação expositiva integrando-as à concepção do edifício, utilizando-se da expressão técnica de elementos construtivos como meio de comunicação, sem estabelecer fronteiras entre espaço e conteúdo.

A ideia de resgatar a potência das proposições iniciais da instituição, resgatando seus atos fundamentais hoje, como tem sido proposto pela equipe liderada pelo curador Adriano Pedrosa, revitaliza o Museu a partir de suas premissas principais, caracteristicamente entranhadas na arquitetura. Após a recente retomada dos cavaletes de vidro na Pinacoteca e a recuperação, na medida do possível, do belvedere (Playgrounds 2016 e Histórias da Infância), propõe- se agora uma nova apresentação da exposição A Mão do Povo Brasileiro como um estudo de caso em busca de compreender sua “prática museológica descolonizadora”, conforme define a curadoria. Se fosse um evento isolado, poderia ser visto como saudosismo estetizante ou redução formalista, como ocorre no campo do design em casos de apropriação folclórica da cultura popular, construindo uma identidade brasileira superficial. No entanto, trata-se de mais uma ação contextualizada no Masp de hoje, que sofreu um apagão nos últimos tempos ao negar os cavaletes de vidro por 19 anos, sua alma institucional, sem dar altura à ambição cultural planejada por Pietro e Lina Bo Bardi. A proposta dessa revisão geral é fundamental para retomar o fio da meada desse projeto tão atual e universal.

Serviço
A Mão do Povo Brasileiro 1969-2016
Masp
Av. Paulista, 1.578, São Paulo
De 1º/9/2016 a 29/1/2017 
www.masp.art.br