Poder-se-ia começar este texto afirmando que a habilidade de Marina Abramović em capitalizar sua imagem é o motor de Espaço Além, longa-metragem com direção de Marco Del Fiol, e estreia prevista em maio. Ponto pacífico, só esse argumento não explica a potência do filme, que mostra a viagem da uber artista pelos grotões do Brasil, em 2012, investigando procedimentos e rituais ligados à espiritualidade e tomando parte neles.
É assim em Abadiânia (Goiás), onde ela vai se juntar às hostes energizantes de João de Deus, o famoso médium que faz operações espirituais por meio de intervenções nos corpos físicos de seus pacientes. É assim em terreiros de candomblé e em uma comunidade no sul do Paraná, que oferece purificações com ervas aos angustiados.
Dois eixos seguram a produção nos trilhos do sucesso: a fotografia impecável, ajudada pela miríade de cores, filigranas e preciosidades da paisagem natural e da cultura popular do País; e um roteiro que sabe alternar momentos cômicos, ternos e diáfanos, dando leveza à narrativa. Respaldada por eles, Marina Abramović está presente e consegue criar empatia e verossimilhança com sua retórica mística, mesmo quando resvala em clichês sentimentalistas, como na evocação do abandono pelo ex-marido.
O protagonismo de Abramović é, em si, a questão de fé que se coloca ao espectador: ela está realmente sentindo tudo o que diz para a câmera ou é uma ótima marqueteira de si mesma? Se o nosso lado cínico está certo da última alternativa, é aos poucos dissuadido pelo passeio entre tantas almas crentes. Colocando-se inteira em situações extremas, cômicas ou melancólicas, a artista sérvia joga para escanteio a solenidade que se costuma usar diante das câmeras, trazendo a performatividade – e a verdade – para primeiro plano. Caso das cenas em que prova um dente de alho forte demais ou de sua primeira incursão ao Santo Daime.
Sua nudez sólida extrapola o mero exibicionismo e a humaniza na tela, e então podemos não só acreditar em sua verdade, mas nos identificar com ela. O âmago do filme é sintetizado no grand finale da volta a São Paulo, em 2015: a ideia de que a arte tem o poder de resgatar a plenitude espiritual do habitante das metrópoles, amputado do contato com a divindade-natureza. Ideia cara ao Romantismo, não deixa de ser uma golfada de ar fresco em tempos onde todo mundo tem uma verdade racional embalsamada no gatilho.