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Postado em 17/10/2014 - 9:05
Qual é o papel da Bienal?
da Redação

Especialistas, curadores e participantes respondem à questão

Qual o papel da Bienal? Mostrar o melhor da produção artística atual? Colocar o Brasil em confronto e contato com o mundo? Mostrar o experimental? Produzir uma narrativa do curador? Todas essas alternativas são válidas? Ou nenhuma? Críticos, curadores e especialistas opinam.

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Ivo Mesquita

Diretor-técnico da Pinacoteca do Estado de São Paulo e curador da 28ª Bienal de São Paulo

As exposições bienais se multiplicam mundo afora, sempre levadas por uma ou mais das razões indicadas na sua pergunta: mostrar a produção artística atual, fazer um lugar visível no mundo globalizado, promover artistas, curadores, filantropos e políticas culturais. Elas se converteram em um sistema que se autoalimenta, ganharam muito de um museu temporário, sazonal, de arte contemporânea em diversos lugares do mundo. Daí existirem no circuito das artes plásticas os artistas e curadores de bienais e toda uma movimentação de público – milhões de visitantes – e de oportunidades de negócios para segmentos específicos. Se é bom ou ruim, não sabemos ainda, pois estamos no processo desse fenômeno. Elas estão assim. Por certo há exceções nesse sistema. Sempre há alguma mostra que consegue trazer algo mais experimental, provocador, radical. Esse é o espírito que animava as primeiras bienais, mas que se perdeu no processo de institucionalização e repetição do modelo.

Joseroca

José Roca

Curador-adjunto de Arte Latino-Americana da Tate Gallery (Londres), diretor artístico da Flora Ars+Natura (Bogotá) e curador da 8ª Bienal do Mercosul

Se, como considera Guy Debord, “espetáculo é capital a um tal grau de acumulação que isso se torna uma imagem”, então temos de aceitar que as bienais estão, de fato, entre as mais visíveis manifestações da globalização: o fenômeno mundial da bienalização é a real lógica cultural do capitalismo tardio. Bienais concentram capital econômico e simbólico em eventos espetaculares de curta duração, que, como o nome sugere, não são apenas recorrentes, mas descontínuos: muito pouco relativo a eles acontece entre uma edição e a próxima. Em muitos casos, a cena artística local se ressente de que quantidades imensas de dinheiro público são afuniladas em um evento espetacular, deixando para museus e outras iniciativas um financiamento escasso. Então, qual seria a razão de fazer ainda outra edição de uma bienal – ou de criar uma nova? A resposta é simples assim: bienais proporcionam uma grande oportunidade – em muitos casos, a única – de o público local conhecer a cena artística internacional e do grande público internacional da arte ver a produção local de um país ou região. O modelo, com variações, vai continuar, porque oferece a oportunidade de a cena local fazer uma declaração que é ouvida além de seu contexto imediato. Apesar disso, uma bienal de sucesso deve ser concebida tendo o público local em mente. Muitas bienais são concebidas no sentido de como serão lidas pelos grandes centros, mas esses centros nem se preocupam em dar uma olhadela. Temos de romper com essa forma colonizada de pensar condicionada por expectativas quanto ao exterior. Uma bienal (principalmente uma bienal na periferia) deve ser feita para o público do lugar onde ela é exibida.

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Roberto Muylaert

Jornalista e presidente da Fundação Bienal em 1984/1985

O papel das bienais sempre foi o de refletir o que existe de arte contemporânea em determinado momento. No Brasil, a bienal foi e continua a ser a única oportunidade, a cada dois anos, para que o público em geral, que não vai a mostras, entenda o significado maior do que seja arte. Na Europa, não é assim, diante das inúmeras oportunidades que o público tem de visitar exposições de arte a qualquer momento, em diversos países próximos. No Brasil, até mesmo a clássica rejeição do público leigo a uma “obra de arte” servirá como parâmetro para uma futura aceitação da arte como arte, sem a observação clássica feita por um visitante jejuno em exposições de arte: “Não entendo o que quer dizer essa obra”, como se essa compreensão fosse necessária para “sentir” uma obra de arte. Mas, para todo mundo que não ficou só na primeira vez e seguiu visitando a Bienal de São Paulo, a sensação do que vem a ser arte vai se estabelecendo de forma subjetiva no visitante, a partir do momento em que ele consegue fazer correlações entre o que vê na bienal presente e o que já viu em edições anteriores. Todas as alternativas propostas apresentadas pela revista são válidas, sendo a ideia de materializar a narrativa do curador a parte mais delicada dessa relação entre tema proposto, trabalho do artista e reação do público. A temática proposta não pode ser abstrata, a ponto de que o artista não saiba direito o que foi proposto. Assim como o chamado “visitante anônimo”, às vezes colocado diante de um tema que pode não ter sido bem entendido nem mesmo pelo Conselho da Bienal. O que pode retroagir à época em que uma temática inteligível era bem compreendida e menos restritiva, a ponto de dar a impressão que tudo cabe numa exposição de arte contemporânea, o que não deixa de ser verdade.

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Paulo Miyada

Curador

Com bienais em contextos tão diferentes em seus perfis demográficos, sistemas da arte, situações políticas e instituições organizadoras, torna-se contraprodutivo especular por uma missão comum a todas elas. No caso da Bienal de São Paulo, acredito que há duas missões gerais que deveriam ser sempre consideradas: 1. Aproveitar sua visibilidade e popularidade para comunicar aspectos relevantes e provocativos da arte contemporânea para um vasto público que ainda tem na bienal seus primeiros contatos com exposições de natureza experimental, o qual pode ser tomado como audiência prioritária do evento. 2. Aproveitar a flexibilidade de seu formato e produção para alavancar iniciativas artísticas que teriam menor oportunidade de ser realizadas em espaços museográficos e comerciais, assumindo riscos e reunindo esforços em prol do trabalho dos artistas e das pesquisas nos campos da curadoria e da mediação.

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Luisa Duarte

Curadora

Mostrar o “melhor” da produção atual é relativo. O que é o melhor? Penso que as bienais devem ter o gancho no presente, mas ao mesmo tempo devem realizar cortes intempestivos no tempo, criando diálogos com obras passadas de forma que possamos ver o ontem e o hoje de maneira diversa. Uma bienal não deve ser mais um momento de festa da arte como cultura, “cultura é a regra, arte é a exceção”. Resistir à situação da bienal como “evento” é primordial para que ali ocorra um contato com a arte e suas doses de risco e surpresa. Penso que as bienais mais interessantes são aquelas que possuem uma assinatura autoral de um curador. Obviamente, isso não basta para termos uma boa bienal. Mas o contrário – uma bienal panorâmica, sem statement algum – me parece sem sentido hoje. Penso que uma bienal deve ser uma caixa de ressonância potente dos maiores sintomas de seu tempo, o escovando a contrapelo.

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Sheila Leirner

Curadora da Bienal de São Paulo em 1985 e 1987

No meu ponto de vista, nenhuma dessas alternativas é válida. Também não vejo “crises” a serem superadas, “reinvenções de modelo” e grandes transformações formais e conceituais que não estejam diretamente ligadas às próprias mudanças da arte. O que quero dizer é simples: bienais continuam bienais, o que muda é a arte. A maneira com que uma bienal consegue espelhar essa mudança é o que determina se ela efetivamente desempenha o seu papel, se é ou não uma “boa bienal”. Para mim, uma “boa bienal” é aquela:
1. Que faz jus ao seu papel de “antifeira”, saindo da promiscuidade e dos interesses de mercado, para servir como um verdadeiro barômetro da situação artística internacional.
2. Feita por curador(es) e/ou responsáveis visionários que usam (apenas) a arte como medida de seu projeto, escolhas e montagem.
3. Cuja vocação se revela não apenas a partir da reflexão sobre os caminhos artísticos, mas, sobretudo, da prática mesma de torná-los compreensíveis para o público.
4. Feita por pessoas diretamente apaixonadas por arte, e não dominadas pelo amor à estratégia que lhes permitiu exibir arte. Bienais são apenas veículos.
5. Feita por curador(es) com vocação de curador sem partis pris estético ou teórico – ou seja, que atende(m) as condições necessárias de criatividade, experiência, prazer e, sobretudo, disposição subjetiva para a arte – diferentemente das pessoas com vocação universitária, intelectual ou de pesquisa, cujo trabalho não requer as mesmas qualidades.
6. Que não sai de secretos e inatingíveis “conciliábulos de especialistas”, inscrevendo-se no conhecido “artifício da frustração”, onde não apenas os artistas, mas, sobretudo, os que detêm o poder institucional, fazem exata e propositalmente o oposto daquilo que o público espera deles.
7. Que refuta toda e qualquer iconofobia, de cujos perigos ninguém está isento, menos ainda os curadores de grandes exposições, os quais são obrigados a lidar com enorme diversidade no meio de uma quantidade brutal de imagens.
8. Que nasce de uma filosofia e uma experiência profunda, porém ubíqua e sincrônica – o que permite conexões entre as mais diferentes manifestações, não apenas das artes plásticas. E sem qualquer pretensão de ser exaustiva.

Apr

Agustín Pérez Rubio

Diretor artístico do Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba)

As bienais podem propor outras leituras e um panorama sobre a nova produção artística. De uma forma experimental, podem ainda ajudar a compreender e lançar os postulados que os novos processos artísticos estão incorporando – tanto no que se refere a forma quanto a conteúdo. Além disso, penso que uma bienal, a longo prazo, pode ajudar a sustentar e dar maior peso ao contexto, uma vez que beneficie a produção de discurso atual e a relação com o internacional. Dessa forma, poderia servir como transferência real de comunicação e reativação de questões que, vistas de fora, podem ser importantes e que, vistas de dentro, às vezes não são percebidas. Em última análise, é uma ferramenta ou uma estrutura para a educação e produção de conteúdo.

*Fogo cruzado da SELECT EXPANDIDA (edição #20)