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Detalhe do projeto olfativo especialmente produzido para a seLecT #38, intitulado Teto de Vidro: dos Estilhaços à Resiliência (2015-2018) (Foto: Corrado Serra)
Postado em 01/03/2018 - 6:29
seLecT #38 traz obra artística com cheiro de estilhaço
Revista recebe crítica de leitores e a artista Josely Carvalho explica o trabalho
Márion Strecker e Luana Fortes

A edição 38 da revista seLecT, que chegou aos assinantes e às bancas esta semana, trouxe como encarte um trabalho olfativo da artista Josely Carvalho. A obra chama-se Teto de Vidro: dos Estilhaços à Resiliência (2015-2018), foi criada especialmente para a revista e faz parte do projeto Diários de Cheiros: Teto de Vidro, em exposição de 3/3 a 6/5/18 no MAC-USP, na região do Parque Ibirapuera, em São Paulo. “O desafio para mim e para as parceiras Givaudan do Brasil e Ananse foi criar um cheiro cortante como os cacos de vidro”, disse a artista à seLecT.

Esta foi a primeira vez que a revista trouxe encarte olfativo. Alguns leitores reclamaram. A assinante Pathy Souza deixou a seguinte mensagem no Facebook da revista: “Recebi a revista hoje e as matérias aparentemente estão incríveis, mas a página sobre o Diário de Cheiros torna impossível a leitura da revista. Esse cheiro no museu, ok. Mas dentro da minha casa? Eu tive que jogar a revista fora sem ler. E o cheiro não sai da minha mão. A fotografia é linda, mas não precisava do ‘perfume’. Josely Carvalho que me perdoe.

O cheiro some com o tempo”, explica Claudia Galvão, CEO da empresa Ananse, parceira da artista no projeto. “Se deixar sobre a mesa ou mais em contato com ambiente aberto vai embora mais rápido. O objetivo do encarte é que o cheiro dure pelo menos 60 dias mas pode durar até 180 dias.” Se o leitor optar por retirar o encarte da revista, o cheiro deve sair da revista em cerca de 30 dias. Para quem quiser preservar o cheiro do encarte, a dica é embalá-lo em plástico ou em qualquer embalagem que evite a evaporação do produto.

“O cheiro Estilhaços que foi reproduzido no encarte da seLecT é o protagonista da exposição Teto de Vidro/Glass Ceiling porque conecta as duas obras que compõem a mostra. A primeira, o livro objeto Estilhaços (cacos de vidro e de vida de cada um de nós) e a segunda, Resiliência (recomposição dos cacos e da vida de todos nós, como seres sociais e políticos) através de esculturas de vidro soprado”, explica Josely. A edição #38 da revista será exibida em uma mesa na mostra do MAC-USP.

Resiliência exala pimenta, lacrimae, anóxia, barricada, poeira e dama-da-noite. “Reflete a inquietação do nosso tempo global. Ele retrata sentimentos angustiantes da nossa realidade. Ele não nos conforta. Ele provoca a reflexão”, avalia a artista. Estilhaços tem cheiro de prazer, ilusão, persistência, vazio, ausência e afeto.

“Muito provavelmente, sou a única artista no Brasil que cria cheiros conceituais como elementos fundamentais da obra. Admiro e agradeço a atitude corajosa da seLecT, revista respeitada e admirada em nosso meio, ao incorporar em suas páginas um cheiro conceitual, que não é perfume, e sim um elemento estrutural de meu projeto artístico”, argumenta Josely Carvalho. “Geralmente, tudo que é novo e experimental gera resistências e nos tira de uma área de conforto. O sentido do olfato, ainda pouco explorado nas artes plásticas, nos leva a questionar padrões e crenças estabelecidos”.  

No ano passado, outro trabalho artístico chamou atenção pelo cheiro, embora não tenha sido intencional. A performance Gordura Trans #16, de Miro Spinelli, foi realizada com sebo bovino clarificado na Trienal de Sorocaba, levantou críticas do público e de funcionários da instituição e foi encerrada prematuramente.

Performance com sebo
“Trabalho sempre com materiais gordurosos”, diz Miro Spinelli à seLecT. “Nessa ação o material foi escolhido considerando sua consistência, que precisava se manter sólida em temperatura ambiente, uma vez que o programa da ação previa que ele permanecesse instalado no espaço expositivo por toda a Trienal. Já na pesquisa cheguei à informação que o sebo quando clarificado não possui cheiro, o que também foi afirmado pelo fornecedor, mas que não se confirmou durante a ação”.

O artista, porém, vê com naturalidade o ocorrido. “O fato de que não era planejado não faz com que esse dado possa ser considerado como um fator externo ao trabalho. Faço performance entendendo que neste fazer sempre existem fatores inesperados e incontroláveis. E faço justamente para ativar esses aspectos. Proponho ações que são disparadoras e complicadoras de situações, sentidos, sensibilidades. Uma vez que foi constatado que o cheiro do material era forte, esse dado passou imediatamente a integrar e compor a constelação de elementos que compõem o trabalho. E é justo aí que vive uma das forças da performance: ela não pode ser desassociada das dinâmicas da própria vida, pois essas são as suas próprias dinâmicas. Enquanto artista propositor, me interessei muitíssimo pelo cheiro do material, como sempre me interesso, seja ele agradável ou não. Inclusive, estando literalmente imerso no sebo durante a ação, nunca cheguei a achar o cheiro especialmente incômodo. Ele era forte, caraterístico, se espalhava, e achei muito potentes todas as situações e metáforas políticas que foram se elaborando a partir desse seu aspecto”, diz Miro.

Outro aspecto que chamou atenção foi o fato de os performers serem gordos e transsexuais. “Imagine a situação: havia quatro pessoas cobertas de um material que tem um certo cheiro, manipulando-o, trabalhando com ele. Vale lembrar que essas pessoas têm características corporais que se configuram como marcas de abjeção e exclusão no mundo em que vivemos: eram pessoas gordas, trans, racializadas. Quando parte das pessoas passavam pela galeria e se deparava com essa situação e demostrava abertamente uma repugnância diante dela, a mim ficava claro como esses corpos não estão programados para demonstrar empatia diante de uma situação como essa, que se tornou para mim uma grande metáfora para as dinâmicas violentas em que nossos corpos são marcados como outros diante de uma matriz normativa. Se há um cheiro que me incomoda, reconheço que esse cheiro vem de um material e vejo pessoas cobertas por ele, como me mobilizo diante dessas pessoas? Acho que o modo como cada um respondeu e agiu diante dessa questão diz muito sobre como se desenrolam certas situações políticas vividas por corpos dissidentes”, analisa Miro Spinelli.

Questionado se o material estava estragado, o artista respondeu o seguinte. “Não diria que estava exatamente estragado. O que acho que aconteceu, tendo lidado corpo a corpo com o material, que veio em 5 tonéis, foi que cada um deles estava em diferente estágio de maturação. Esse material industrialmente é utilizado, dentre outras coisas, na fabricação de sabão e outros cosméticos. A maioria dos tonéis tinha uma consistência intermediária entre gordura e sabão, e a cor mais clara. Um deles em específico era mais escuro, mole, gorduroso e tinha o cheiro mais forte. Era possivelmente mais novo no estoque do fornecedor, tendo reagido menos ao processo químico da clarificação”, explica.

O fato é que a performance foi encerrada prematuramente por conta do cheiro desse material. “Infelizmente sim”, lamenta o artista. “Depois de uma longa negociação com a equipe da Trienal, eles não nos ofereceram nenhuma alternativa se não a retirada do material, muito embora nós não concordássemos com essa medida. Não tínhamos outra opção, de modo que propusemos registrar a ação da retirada e projetar esse vídeo no espaço expositivo, junto com um texto que escrevemos sobre o ocorrido, convertendo o trabalho em, essencialmente, uma crítica institucional. Essa proposta, embora também acordada nas negociações, também foi barrada. O SESC alegou que os funcionários que fizeram a retirada do material não queriam mais aparecer, o que considerei bastante estranho (e conveniente aos SESC), pois havia conversado pessoalmente com todos eles anteriormente e inclusive oferecido a possibilidade de preservar suas identidades no vídeo. É desse material que foram retirados os frames que a Jota Mombaça trabalha na edição 38 da seLecT”, conta Miro Spinelli.

A artista Jota Mombaça, que foi uma das performers de Gordura Trans #16, incluiu essas imagens na curadoria de obras de artistas trans que preparou para a revista seLecT que está nas bancas.