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Naturalizar o Homem, Humanizar a Natureza ou Energia Vital, instalação criada por Victor Grippo em 1977 e remontada nesta edição da Bienal (Foto: Cortesia do espólio do artista/ Alexander And Bonin/ Leo Eloy/ Fundação Bienal de SP)
Postado em 28/09/2016 - 1:28
Sobre a ecologia da arte
Há uma certa despretensão na proposta desta 32ª Bienal, que se coloca como enfrentamento a um mundo da arte inflacionado de discursos, especulação financeira, carreiras meteóricas e pirotecnias curatoriais
Cristiana Tejo

Há uma espécie de consenso de que o mundo está em crise. Sensação essa que já ganhava corpo há pelo menos três décadas com o realinhamento de forças políticas e econômicas, mas que foi agravada pela quebra do sistema financeiro internacional em 2008. Entretanto, o que parece subjazer essa noção é uma ruptura profunda no saber sobre as coisas desencadeadas por movimentos sociais e teorias críticas que desnaturalizaram estruturas sociais e dinâmicas de perpetuação de hegemonias e assimetrias, como as chamadas perspectivas pós-coloniais e descoloniais. Os sucessivos questionamentos gerados por esse processo de aguda reflexividade atingiram todos os campos do conhecimento e têm evidenciado relações de poder. No mundo da arte, o impacto pode ser notado nas tentativas de expansão de narrativas refletidas em exposições e coleções internacionais menos eurocêntricas. O discurso pós-colonial e descolonial tem alicerçado projetos mundo afora de diferentes formas e gradações, a exemplo das 11a,13a e 14a Documentas de Kassel e as 27a , 29a e a 31a bienais de São Paulo, para citar apenas duas das mostras de maior prestígio internacional. Evidencia-se nessas exposições a intenção de uma busca de novos vocabulários artísticos que apontem para modos de viver e pensar mais pertinentes com a complexidade e a perplexidade do mundo atual.

Dois Pesos, Duas Medidas, obra de Lais Myrrha comissionada para a mostra (Foto: Paula Alzugaray)
Dois Pesos, Duas Medidas, obra de Lais Myrrha comissionada para a mostra (Foto: Paula Alzugaray)

E aí chega a 32a Bienal de São Paulo – Incerteza Viva, curada por um time liderado por Jochen Volz, para dar continuidade a essa tentativa de pensar a arte em fricção com o mundo em transformação. Se na bienal anterior as intenções de horizontalidade da equipe e de escuta do meio local como metodologia de trabalho ficaram mais marcadamente no discurso, nesta edição elas ocorrem na prática. A harmonia e o respeito com que os curadores se tratam e se relacionam com os artistas reverberam por toda a exposição, desde a cadência gerada pelo respiro entre as obras e a organicidade nas vizinhanças até o número mais reduzido de participantes que coloca a bienal numa escala mais humana, o que pode ser entendido como estima ao público. Baseando-se no pensamento do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que elaborou o conceito de ecologia dos saberes e epistemologias do Sul e na metáfora do jardim como uma forma de endereçar desafios globais que passam por direitos e pela própria sobrevivência do planeta Terra, Volz e seu time acabam lançando luz à importância de discutirmos a própria exaustão de uma forma de funcionamento do campo da arte e a delicada relação entre teoria e prática. A ecologia nos fala sobre interdependências e a ecologia da arte também, pois não existe arte sem uma rede de relações e de interdependências.

Diferentemente da edição anterior, que procurava captar a urgência e a temperatura dos conflitos em trabalhos que muitas vezes exaltavam o ativismo e pouco apreço à dimensão estética, essa versão se coloca como um contraponto (apesar de dialogar intensamente) em que discussões e posicionamentos semelhantes configuram-se de maneira distinta, mais voltados para um tom intimista e sofisticados esteticamente. As obras parecem filtrar questões do mundo contemporâneo sem retirar a sua densidade. O ruído e a intensidade foram substituídos pelo silêncio e pela decantação da experiência. Para pensar em novas relações possíveis com o mundo, a 32a Bienal aposta no frescor de artistas jovens e de muitos que ainda não alcançaram visibilidade de mercado, a exemplo de Sonia Andrade, Samico, Bené Fonteles, Vivian Caccuri, Jorge Menna Barreto, Barbara Wagner, Benjamin de Burca, Laís Myrrha e Cristiano Lenhardt, para citar alguns dos brasileiros. Há uma certa despretensão na proposta desta bienal que se coloca como um desafio a um mundo da arte cada vez mais inflacionado de discursos, especulação financeira, carreiras meteóricas e pirotecnias curatoriais. Rever parâmetros de produção e de consumo também é importante para o mundo da arte e as propostas mais instigantes na atualidade assentam-se em imaginações alternativas e gestos mínimos. Trasladar isso para o espaço de prestígio da bienal pode ser um ato transformador. Precisamos falar mais sobre como todos nós atuamos na ecologia das artes para podermos alterar ambientes e reinaugurar mundos.

Ágora: Oca Tapera Terreiro, de Bené Fonteles, obra comissionada para a mostra (Foto: Paula Alzugaray)
Ágora: Oca Tapera Terreiro, de Bené Fonteles, obra comissionada para a mostra (Foto: Paula Alzugaray)

Serviço
32ª Bienal de São Paulo – Incerteza Viva
Curadoria geral de Jochen Volz
Fundação Bienal de São Paulo
Avenida Pedro Álvares Cabral, s/n, Parque Ibirapuera, São Paulo
Até 11/12
Terça, quarta, sexta-feira e domingo, das 9h às 19h; quinta-feira e sábado, das 9h às 22h
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