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Sem título da série Para Venda (Foto: Cortesia Mendes Wood DM)
Postado em 05/11/2015 - 4:48
Sobre oprimidos, mestiços e migrantes
Depois da longa travessia do Sul ao Norte das Américas, Paulo Nazareth iniciou outra grande viagem, desta vez pela África, continente que quer cruzar antes de pôr os pés na Europa. O artista elabora a história dos outros, que é também a sua própria história e a história da humanidade
Márion Strecker

“Periferia é onde eu vivo, onde eu ando”, diz o artista que mora no município de Santa Luzia, na região metropolitana de Belo Horizonte. “No Palmital existe mais vida, as relações são mais próximas, vejo a vida pulsar na rua.” Palmital é o apelido de um conjunto habitacional dos anos 1980 que se expandiu nessa vila do Ciclo do Ouro, às margens da Estrada Real, por onde escoavam as riquezas de Minas para os portos do Rio de Janeiro e Paraty. Um lugar que Paulo Nazareth não tem a menor intenção de trocar.

Ele é neto de índia Krenak, tribo dos chamados Botocudos pelos portugueses no século 18, que no século 20 tiveram as terras (e as vidas) rasgadas por uma estrada de ferro da companhia Vale do Rio Doce. Essa avó adotou o Candomblé como religião e, por fim, foi internada como louca. Ainda do lado materno, ele também descende de africanos escravizados no Brasil, cuja natureza dos cabelos herdou e mantém compridos, embora os detalhes da história os senhores de escravos tenham feito de tudo para apagar. E ele descende ainda de europeus, da Itália e de Portugal, que deixaram mais clara sua cor de pele, transformando o artista em alguém que não é índio, nem branco, nem negro.

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Sem título (2011 – 2012) (Foto: Cortesia Mendes Wood DM)

Paulo Nazareth adotou o sobrenome da avó materna, que por sua vez é o nome de local de peregrinação cristã, descrito como cidade onde Jesus passou sua infância, e atualmente uma espécie de capital dos cidadãos árabes de Israel, que são ali a maioria da população. Aos 12 anos foi trabalhar numa pocilga em Curvelo (MG), ganhando um quarto de salário mínimo e cuidando dos porcos desde o parto até o momento do abate. Acha os porcos muito inteligentes, mais inteligentes do que os cachorros, e pensa que eles sabem muito bem que destino lhes reservam na pocilga. Nazareth ainda não era vegetariano nessa época. Carne era artigo de luxo para sua família, raramente servida. Carne crua virou um dos materiais usados por ele em performances, muitas vezes amarrada no rosto ou na cabeça, para desgosto de alguns e para a indiferença de outros, inclusive alguns mais familiarizados com os procedimentos da arte contemporânea.

Paulo Nazareth é um mestiço como quase todos nós, os brasileiros. Também é um tremendo caminhante que não abandona sua terra nem quando viaja, filho de uma mãe “devota de todos os santos”, pai distante, e primeiro entre os irmãos a fazer uma faculdade. Artes plásticas na UFMG. Antes foram dois anos de aulas com Mestre Orlando em BH, o artista baiano que fazia carrancas com pedra-sabão. Agora, Nazareth é pai de uma filha recém-nascida.

QUÉ FICAR BUNITO? Salão de beleza “DE BÉsTI BIRíFUU”. Esse é o título de um panfleto que ele produziu em 2010. Best? Beautiful? Matou a charada! O panfleto continua assim, assimilando a linguagem corrente e atropelando a gramática: “Alisa-se cabelo, clareia-se pele, afina-se nariz, encurta-se orelhas, colore-se olhos, aumenta-se seios, diminui- se nádegas, depila-se virilhas, arranca-se unhas, corta-se beiços, lixa-se pés, muda-se nome, ensina-se inglês, passa-se perfume, tira-se foto, arruma-se padrinho, arranja-se bolsa, consegue- -se visto, manda-se para fora, apaga-se memória, deixa-se bunito”.

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Panfleto Qué Ficar Bunito? (2005) (Foto: Cortesia Mendes Wood DM)

Doce onde ele viveu até os 12 anos e que ficou notória pela exportação de mão de obra clandestina para os Estados Unidos da América e para a Londres de Jean Charles, de onde vão trabalhadores sobretudo da área rural e voltam recursos financeiros para as famílias. No trabalho “Qué ficar bunito?” o que surpreende é a forma crua e direta de tratar o preconceito que está por trás de tantos desejos de “embelezamento” e de um futuro melhor, ou seja, desejo de aceitação e sobrevivência.

Arte de Conducta

Paulo Nazareth ficou famoso por uma travessia que fez boa parte a pé, calçando chinelos de dedo, juntando a poeira dos países do Sul para, literalmente, se lavar no Rio Hudson, em Nova York, de onde partiu menos de 48 horas depois, incluindo o tempo que ficou vagando e o tempo que passou no protesto contra a desigualdade social chamado Occupy Wall Street. O destino não importava tanto quanto o percurso, as pessoas que conheceu, as histórias que ouviu, as fronteiras que cruzou e desafiou. Caminhar é palavra-chave para ele, que nasceu com os pés tortos, que sua mãe resolveu endireitar na infância com operação, gesso e botinhas.

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Sem título, da série Notícias da América (2011) (Foto: Cortesia Mendes Wood DM)

Nessa caminhada, que resultou na série Notícias de América, carregou placas que diziam frases cortantes como “I clean your bathroom for a fair price” (Limpo seu banheiro por um preço justo). “Para os brasileiros, o espanhol é quase um sotaque”, anotou, entre tantas outras coisas. Acabou a viagem de 13 meses e uma semana na Art Basel Miami Beach, com uma Kombi cheia de bananas, que pôs à venda por US$ 10 cada, enquanto ele carregava uma placa que dizia: “Vendo mi imagen de hombre exótico”.

Vivência, observação, engajamento, registro. Isso tudo são partes do seu trabalho, que, provavelmente, a artista cubana Tania Bruguera chamaria de “arte de conducta”, em vez de chamar de performance ou outra coisa. Ela, Tania Bruguera, criadora de uma cátedra em Cuba, em 2002, exatamente sobre esse assunto.

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Fotografia da performance Pão e Circo (2012) (Foto: Cortesia Mendes Wood DM)

Entre os muitos trabalhos de Paulo Nazareth, boa parte reproduzida em material barato e distribuída por ele mesmo na feira de Rua de Palmital, está uma série de desenhos em técnica mista sobre papel, que se chamou Imagens Que Já Existem no Mundo. Entre elas, cenas de conflitos entre civis e militares no Egito, na Faixa de Gaza, na fronteira do México, na China. E ainda um barco repleto de migrantes cubanos navegando de pé, talvez aidéticos, em travessia para os Estados Unidos. Nazareth queria ter ido a Cuba, mas todos os barcos levavam para os Estados Unidos, como os barcos do Norte da África levam hoje os refugiados para a Europa, sem garantia de chegada nem acolhimento.

Cadernos de África

Desde 2012, Paulo Nazareth dedica-se aos Cadernos de África. Está “vivendo os cadernos”, como ele diz. “Os cadernos são em torno do que existe de África na minha casa e o que existe de minha casa na África”. Já foi ao Benin, à Nigéria, Moçambique, África do Sul, Namíbia, Quênia, Tanzânia, Zimbábue e Botsuana. “Na África onde tenho andado são poucos os negros com cabelos compridos”, conta. Também está visitando quilombos no Brasil e foi à Argentina, ver onde foram parar os negros que sobreviveram ali. Os negros que eram 30% da população daquele país. Os negros que foram empurrados para as fronteiras do Brasil e do Paraguai, durante o que nós aqui chamamos de Guerra do Paraguai, mas os paraguaios chamam de Guerra Grande, e os argentinos e uruguaios chamam de Guerra da Tríplice Aliança (entre Brasil, Argentina e Uruguai). Tudo questão de ponto de vista, se estamos dispostos a ver o mundo com os olhos dos outros.

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“Pode não existir raça, mas existe racismo”, disse em entrevista à seLecT. “Nos bairros nobres se perguntam: o que esse cara está fazendo neste lugar? Aqui democracia racial é um mito. Aqui o negro é invisível, invisível na tevê, invisível nas revistas. Cabelo curto é quase uma exigência de ‘boa aparência’. Cabelo comprido não é um cabelo de trabalhador. É coisa de encrenqueiro, de marginal”, diz ele, que já fez uma performance em que comia o próprio cabelo, cortado pela irmã.

Esse brasileiro está preocupado com “o direito de passagem e o direito à paisagem”. Ele é, hoje, o principal artista da galeria paulistana Mendes Wood DM, dos sócios Pedro Mendes, Matthew Wood e Felipe Dmab. Enquanto ele atrasa propositalmente sua ida à Europa, sua obra já esteve nas bienais de Veneza e Lyon e suas publicações são editadas em países como a Alemanha.

Questionado se está acompanhando a travessia dos refugiados do Norte da África rumo à Europa, reconheceu: “Eu estou falando dessas pessoas”. E disse mais: “Quero desafiar essa lógica de que o centro está na Europa. A Europa vai ficando mais distante. Eu nego essa chegada”.

*Publicado originalmente na #select26