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Trabalhando na fornalha (1986). (Foto: Divulgação)
Postado em 13/08/2015 - 6:56
Territórios sem muros
Em entrevista exclusiva à seLecT, Antonio Dias fala sobre sua viagem ao Nepal nos anos 1970 e como sua arte reagiu a essa experiência
Camila Régis

Os trabalhos de Antonio Dias percorrem o mundo: já estiveram em Zurique, Buenos Aires, São Paulo, Munique, Nova York. Este “estado transitório” é uma característiaca não só das obras do paraibano de 71 anos, mas também da vivência do próprio artista. Dias morou em lugares como Rio de Janeiro, Milão e Berlim e viajou para tantas outras coordenadas. Justamente uma dessas viagens foi o ponto de partida para criar as peças da exposição Papéis do Nepal 1977 – 1986, que inaugura nesta quinta-feira (13), na Galeria Nara Roesler do Rio.

Com um número tímido de trabalhos (são apenas 12), a mostra apresenta uma parte significativa da produção de Dias, nunca exposta no Brasil. Feitos à mão em parceria com artesãos nepaleses, os papéis simbolizam um dos momentos de ruptura na carreira do artista. Aqui, a matéria-prima abandona sua função de suporte e se transforma no trabalho propriamente dito, pois é a evidência matérica de longas investigações processuais e conceituais.

Conversamos com Antonio Dias sobre a estadia no pequeno país asiático, relações de trabalho artístico em parceria e a territorialidade de suas obras.

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O artista Antonio Dias. (Foto: Everton Ballardin)

 

Por que você escolheu ir ao Nepal? Como foi esse processo?
No início de 1977, decidi ir ao Nepal, onde pretendia comprar papel artesanal para imprimir o álbum Trama, que eu havia desenhado em 1968. Em poucos dias descobri que isto seria impossível sem ir diretamente à fonte de produção do papel. Com a ajuda de amigos locais, fui visitar um local onde o papel era feito, perto da fronteira com o Tibete, uma pequena favela onde viviam, por um período do ano, cerca de 25 pessoas de 3 etnias diferentes. Depois de concordar com o administrador da área a encomenda das 1000 folhas que precisava para o álbum, percebi que ali, com aquele material, eu poderia fazer um trabalho que havia imaginado 2 anos antes, mas não havia ainda encontrado o suporte material para realizá-lo.

Decidi me instalar por ali, num pequeno cômodo em alvenaria onde eram guardadas as folhas prontas. Aí, tudo começou a mudar: precisei fazer o molde redondo – as peças deste novo trabalho eram redondas -, já isto era uma novidade para eles. Quis fazer o papel da edição mais encorpado, resultando em um acoplamento sem cola de quatro camadas de papel, a última das quais tingida com um barro vermelho que era usado localmente como fungicida. Na verdade, talvez porque produzido com elementos puramente naturais, usando água de chuva do Himalaia, filtrada por cinzas da própria árvore de onde extraem a celulose, num ambiente com muitas florestas e tanta humidade, este papel parece imune às várias bactérias que atacam tanto o papel no Brasil.

Você fez as obras ao lado de artesãos locais. Alguns textos falam que estas colaborações não foram só práticas, mas também poéticas. Nesse sentido, parece que existe uma negação do fetiche da autoria. Como foi realizar esses trabalhos em parceria?
Mas esta negação do fetiche da autoria não é nova no meu trabalho. Já em 1968 eu havia proposto trabalhos que poderiam ser desenvolvidos por qualquer pessoa, até em outras dimensões, como Do It Yourself/Freedom Territory. O próprio álbum Trama é uma proposta assim. Além disso, resolvi que cada trabalho novo – foram surgindo outros – poderia apresentar para eles uma outra situação, cores diferentes, formatos diferentes, texturas. A partir desta experiência e até 1988, a maior parte das minhas pinturas foi feita sobre este suporte. Os trabalhos que serão apresentados na Galeria Nara Roesler do Rio são um apanhado deste período, alguns já estiveram em mostras internacionais, outros nunca haviam saído da minha casa.

Em alguns dos seus trabalhos anteriores aos Papéis do Nepal, como na série Illustration of Art, você lida com signos sociais e um vocabulário visual reconhecível da história da arte. Já nos papéis a abordagem parece ser outra, quase metafísica. O processo é uma parte muito significativa da obra. Olhando em retrospecto, você considera esse momento uma ruptura na sua produção?
É sem dúvida mais uma ruptura, aliás muito procurada naquele momento. Não deixou de ser da série The Illustration of Art, mas eu já estava cansado daquela grade milimétrica a que submetia minhas pinturas. De repente, o uso do papel artesanal, com seus bordos irregulares, com a sua textura matérica, me permitiam mais liberdade, voltei a me interessar por uma poética mais sutil.

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Bandeira / trabalho (1981). (Foto: Divulgação)

 

Ir ao Nepal foi uma maneira de sair um pouco do circuito hegemônico da arte e ter contato com outros processos?
Tudo foi acontecendo num processo de aproximação e adaptação. Quando cheguei, estava despreparado para o que encontrei. Quando vi o potencial que queria experimentar, me joguei de cabeça, sem pensar qual seria a repercussão do trabalho. Era mais importante a relação que eu tinha com quem estava trabalhando comigo.

Você saiu do Brasil em 1966. Em um texto de Paulo Herkenhoff, ao falar de obras como Invader, ele diz que você é o “estranho que chega”. A territorialidade é uma questão nos papéis também? Como você lida com isso na sua produção?
Os meus territórios não têm muros nem fronteiras. Servem para compensar estes muros de medo que continuam a erigir para dividir pessoas.