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Postado em 15/10/2015 - 3:45
The Forbidden Room: experiência cinematográfica
Luciana Pareja Norbiato

Filme de Guy Maddin, que estreia na 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, imprime visual vintage primoroso a colagem de histórias lisérgicas (e divertidas)

Udo_kier_miguel_cueva

Legenda: Miguel Cueva (à direita) ao lado de Udo Kier, no papel do pai morto que vai se despedir da família

Esqueça tudo o que você entende por cinema, menos imagens estonteantes e muita, mas muita diversão. Guy Maddin, o ultracriativo cineasta canadense que a revista seLecT entrevistou em sua edição 25, está trazendo para a 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo seu novo longa baseado em sessões espíritas que evocavam os velhos filmes esquecidos e perdidos para sempre, The Forbidden Room.

A inspiração, ou possessão, como prefere o diretor, vem de projetos nunca realizados de ícones do cinema (muitos deles com nada além de um título), como Ernst Lubitsch e Jean Vigo. Sua filha, Luce Vigo, integra o elenco, que tem ainda Maria de Medeiros, Udo Kier e Matthieu Amalric, entre muitos outros.

Vá lá que as alardeadas participações de Geraldine Chaplin e Charlotte Rampling são aparições esparsas, quase fantasmas, mas isso não as torna menos interessantes nem altera aquilo que torna o projeto inovador: ele é muito menos um filme que uma experiência cinematográfica imersiva, capaz de levar seus espectadores a um tipo de transe xamânico, lisérgico.

Forbidden Room_brain_island Cópia

Legenda: Frame do filme, com a Brain Island ao fundo

Nas palavras do próprio Maddin, o filme “é simplesmente uma sessão espírita com filmes perdidos, mas os espíritos continuam interrompendo uns aos outros para formar combinações narrativas aleatórias. Nesse caso, elas estão aninhadas umas dentro das outras como bonecas russas, tão profundamente até uma história estar alojada dentro de umas nove histórias dentro de histórias dentro de histórias. Todas foram filmadas por mim e meus colaboradores, e editadas conjuntamente para consumo público. Parecem algo extraído de química fotossensível com pixels digitais, o híbrido analógico-internet perfeito.”

Os créditos já são absurdamente criativos, mesclando nomes de películas do passado à apresentação do filme e de seus realizadores. A tecnologia utilizada é a digital, mas a co-direção de Evan Johnson, encarregado dos efeitos especiais, dá uma granulação à imagem como se fosse película, numa colorização igual à dos filmes em technicolor, com suas nuances saturadas. A indefinição de contornos dá ao todo um tom fantasmagórico, como as boas histórias de terror e surpresa dos anos 1920.

Vertiginoso, o filme começa com o veterano Louis Negin num roupão dando uma aula hilária da tradição dos banhos, que vêm desde a Grécia, depois Roma com as Termas de Caracala, até os dias de hoje, com as banheiras. A partir daí, caro espectador, segure-se na cadeira: como em uma montanha-russa em alta velocidade, o filme vai engatando histórias bizarras umas nas outras sem qualquer justificativa. A cada conexão, as imagens parecem de películas se derretendo, espíritos se desfazendo e se juntando em uma nova encarnação.

Encontrar linearidade entre tanta loucura junta seria obra para algum alienígena, ainda mais nesse fluxo frenético. Marinheiros de um submarino à deriva esperando a morte recebem a visita de um lenhador que surge repentinamente ali buscando sua amada, o que leva à história dessa busca na caverna dos homens-lobos, pelos quais ela teria sido aprisionada (o que não é bem verdade).

0 Guy Maddin & Evan Johnson Canary Islands

Legenda: Da esquerda para a direita, Evan Johnson e Guy Maddin em foto com tratamento igual ao do filme

Tem ainda um fazendeiro que recebe cuidados de um ex-presidiário, uma moça amnésica cujo namorado é clonado por um ser bizarro e um pai morto que volta – umas quatro vezes – para se despedir de sua família, deixando ao filho um bigode para que possa se passar por ele quando a mãe cega o procura (Maddin incluiu na lista de filmes perdidos seu próprio primeiro curta, The Dead Father). E isso não é nem a metade do delírio.

O espectador pode até tentar seguir o desenrolar do enredo maluco nos primeiros quinze minutos, mas, se vale a dica, o melhor é relaxar e se deixar levar. É aí que a razão do dia a dia é posta pra escanteio e o que resta é sensação, pura e despreocupada. Num mundo onde tudo é funcional e normatizado – até mesmo os prazeres pessoais -, encontrar uma obra cinematográfica que é puros deleite abre ao nosso raciocínio cansado o respiro necessário para perceber que nada precisa ser levado tão a sério.

Ao sair do cinema, a impressão é de que nosso HD cerebral passou por uma limpeza. Não à toa, a última imagem do filme é um enorme cérebro, a Brain Island, explodindo. Ardiloso, Guy Maddin sabe bem contra o que está lutando com sua proposta de nonsense total encapada num visual deliciosamente vintage: a atual automatização do pensamento, que vai sendo quebrada sem piedade a cada vez que uma história interrompe a outra. A contraproposta de Guy Maddin é uma homenagem ao prazer, à alegria e à capacidade cinematográfica de tornar esses dois adjetivos materiais diante dos olhos do público.