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Aracy Amaral (Foto: André Seiti)
Postado em 01/09/2017 - 11:38
“Vejo pouco grito na arte brasileira”
A mais respeitada e atuante crítica de arte brasileira atribui seu foco de pesquisa em estéticas ancestrais ao desencanto com a produção contemporânea
Paula Alzugaray

Poucos profissionais do campo da arte têm uma vivência e um espectro de pesquisa tão amplos. Aracy Amaral se reconhece, acima de tudo, como pesquisadora, mas sua atuação amplia-se como curadora, professora, historiadora, crítica, gestora e jornalista. Talvez o lugar em que todas essas personas se encontrem seja na viagem. É irrestrito seu conhecimento do Brasil e da América Latina. Sua trajetória profissional começa nos anos 1950 e atravessa o modernismo (com teses de mestrado e doutorado sobre as artes plásticas na Semana de 22 e Tarsila do Amaral), o construtivismo e chega à arte contemporânea. Nesse campo, rompe paradigmas com a curadoria do 34º Panorama da Arte Brasileira do MAM-SP (2015), quando escolheu falar da paisagem artística nacional por meio de obras de seis artistas convidados a dialogar com a arte pré-histórica.

Seis anos antes do Panorama, em 2009, em viagem de pesquisa ao Paraguai para a curadoria da Trienal do Chile, Aracy Amaral conheceu as ceramistas Julia Isídrez, Ediltrudis Noguera e Carolina Noguera. “Fiquei encantada com seu caráter selvagem, louco. Pensei que gostaria muito de fazer em São Paulo essa exposição”, conta Aracy Amaral à seLecT. As três artistas de tradição guarani finalmente se apresentam em São Paulo, em espaço dedicado à arte contemporânea, a Galeria Millan, até 30/9. No interesse de Aracy Amaral pelas artes das idades da pedra e do barro há uma nítida problematização da ideia de contemporaneidade. Questiona-se aqui o juízo colonialista e etnocêntrico que confere à arte erudita ocidental o privilégio do contemporâneo.

Pela primeira vez em 60 anos de carreira, Aracy Amaral não foi a agente, mas sim objeto de um projeto curatorial. Até o fim de agosto, sua vida e obra foram tema da 35ª mostra da série Ocupação, do Itaú Cultural. Sobre sua trajetória ela conversou com seLecT.

Em que sentido a mostra Das Mãos e do Barro, na Galeria Millan, dá continuidade à pesquisa do 34º Panorama?
A arte popular me interessa e sempre me interessou. Tenho duas obras aqui da Conceição dos Bugres – que está abrindo na Galeria Estação – desde a década de 70. Mas hoje me interessa mais. Porque não vejo tanta coisa interessante na arte contemporânea. Acho que a arte contemporânea está tão paralisada, tão sem ar, sem fôlego, que às vezes uma baforada faz bem… como foi aquele meu Panorama. É um fazer ancestral. Elas aprendem com a mãe, que aprenderam com a mãe, que aprenderam com a mãe. Isso vem desde a época colonial. Você não conhece o Paraguai? Tem de conhecer, o Paraguai é muito rico. E é tão perto aqui de São Paulo, você vai de carro!

Em 1972, você teve uma experiência intensa com comunicação, que foi o programa na Rádio Jovem Pan intitulado Vamos Falar de Arte?” Como foi essa experiência de “falar de arte para todo mundo entender”?
A Jovem Pan queria um programa diário sobre arte, de dois minutos por dia. Eu falei: facílimo. Na primeira, segunda semana, fiz de improviso. E aí percebi que não era facílimo, porque as pessoas ouvem radio no carro, em casa, no trabalho, na rua, no supermercado… Então eu chegava em casa de noite e encontrava um casal de desconhecidos querendo falar comigo por causa do programa. Acontece o seguinte: quando você fala bem, ninguém te procura. Agora, quando você fala mal ou põe em dúvida a excelência de uma exposição (risos) as pessoas caem em cima, entende?

Era um programa crítico?
Não, eu falava sobre as exposições que estavam em São Paulo. Eu era opinativa. Tanto que uma vez, me lembro que o Bardi achou que falei mal de uma exposição – acho que falei mal mesmo – que ele estava apresentando no Masp, e foi para o Paulo Machado de Carvalho, que era o dono da Jovem Pan, dizer que queria a fita da minha gravação. E o Paulo foi muito legal, ele falou: o comentarista aqui tem direito de falar o que quer. Não dou a fita pra ninguém, nem para o senhor Pietro Maria Bardi. Ele defendeu a minha liberdade de expressão.

A ceramista paraguaia Carolina Noguera, que integra a mostra Das Mãos e do Barro, curadoria de Aracy Amaral. Introduzida na tradição pré-colonial pela mãe, Noguera apresentou seu trabalho da documenta 13, de Kassel (Foto: Carolina Noguera)

 

É muito interessante a performance conjunta feita com Fred Forest no programa, em que você divide com ele o papel de artista. Seria uma antecipação do “artista etc.”, de Ricardo Basbaum, em que os papéis se diluem e se contaminam?
É, pode ser… não tinha pensado nisso. Mas, para mim, o curioso em cada curadoria que você faz, cada pesquisa que você empreende, é uma descoberta que você faz. Esse é o dado fascinante de fazer pesquisa e curadoria. Na medida em que você estuda um artista para uma curadoria, você vai descobrindo seu processo de trabalho, sua psicologia, a forma de ele se comunicar com o ambiente dentro do qual vive. Acho que sou uma pessoa muito inquieta nesse aspecto. Tanto que essa descoberta que fiz com a pesquisa da hispanidade em São Paulo, quando eu era professora da FAU – e não sou arquiteta, era professora de historia da arte –, e fiz uma descoberta que os historiadores da arquitetura não tinham feito. As ligações com a América hispânica da arquitetura rural paulista. Essas casas que os arquitetos chamam de “bandeirista”, eu não chamo assim. Chamo de casas rurais paulistas – que são as mesmas que existem no Paraguai, na Colômbia, no Equador, no Peru, na Venezuela… em todas as minhas férias da USP eu viajava pra esses lugares pra fotografar.

Por que a ideia de uma Bienal Latino-americana não emplacou em 1980?
Eu queria fazer uma Bienal fundamentalmente latino-americana, com convidados internacionais. Falei pro Luís Villares, então presidente da Bienal, que tínhamos de fazer uma consulta aos críticos da América Latina. Fiz um simpósio similar ao que tinha ocorrido em Austin, no Texas, cinco anos antes, pra ver como eles defendiam uma Bienal Latino-americana. Mas perdi. Eles votaram pela continuidade de uma Bienal internacional. Eram todos internacionalistas. Então disse ao Luís Villares que me demitia da curadoria. Eu também queria que a Bienal fosse trienal ou quadrienal. Já em 1980 eu achava que havia um excesso de bienais no mundo. Não como hoje, que existem 200 e sei lá quantas. Mas o Luís Villares falou: impossível, nunca o Conselhão – o Superconselho da Bienal, que tem 60 pessoas – vai aceitar transformar a Bienal em uma quadrienal. O que eu acho até hoje um erro. A expectativa que geraria maior espaço entre uma edição e outra seria muito maior. Muito mais possibilidade de respiro. Mesmo que decepcione há uma possibilidade maior para preparo, para tudo.

Como avalia as experiências das bienais voltadas para a América Latina que surgiram depois: Mercosul e Ventosul?
Hoje existe uma preocupação maior. A Bienal do Mercosul parece que está ressurgindo, não é isso? Agora, o problema financeiro é sempre muito agudo. Eu fiz uma curadoria quando o José Roca foi curador. Foi uma experiência muito interessante. Mas me dei conta também de que os jovens curadores, de 35, 40 anos – eu que sou hiperveterana, década de 50, você imaginou? –, em geral conhecem a arte contemporânea. Não conhecem a arte da década de 20, 30, 40, 50, 60, 70 nem 80. Eles conhecem de 90 em diante. Estão muito focalizados no que se passa na ultima década do século 20 e no começo do século 21. Acho isso terrível. Eles começaram a viver a partir da década de 90 e 2000, então, para eles, a arte é aquilo. Acho que você não pode entender a arte sem saber o que se passou. Tem artista muito jovem hoje que parece que está reeditando o que se passou na exposição Information, de 1970, no MoMA. Mas eles nem sabem o que foi Information, da qual participaram o Cildo Meireles, o Hélio Oiticica… Isso diz respeito ao meu ponto de vista de historiadora.

Diz-se que o Brasil dá as costas para a América Latina. Mas e o outro lado? E os diálogos com a África?
O Brasil está de frente para a África, mas não está dialogando. Porém, a África é um continente tão convulsionado sempre, principalmente agora que os chineses estão com um pé lá… a gente não sabe o que está acontecendo. Vi uma vez, acho que foi no Pompidou, uma grande exposição e fiquei muito impressionada com a multiplicidade de Áfricas. Tem a África branca, árabe, negra… é um continente múltiplo, não apenas de ideologias como também do ponto de vista étnico.

E a África que fala português?
A gente vê muito intercâmbio do ponto de vista literário. Muito escritor comparecendo na Flip, editoras… mesmo cantoras de Angola aparecem aqui. Mas nas artes não vejo. Uma vez estive em um Congresso do Comitê Internacional de Críticos de Arte, da AICA, há décadas, em Kinshasa, no Congo. Fui nos Anos 70, época pós-independentista de várias nações. Foi interessante ver a preocupação deles com suas raízes. A África, pra mim, ainda é um enigma. Mas fiz parte do júri do Prince Claus Fund, em Haia, no começo do século 21. Eles tem muita preocupação com a África. Mas é uma preocupação do europeu branco querendo fazer benemerências para com um continente que foi dilapidado por eles mesmos. Aquele problema de complexo de culpa, que incomoda quando a gente saca que é esse o espírito. Querer lavar esse complexo: eu te tirei isso, mas estou te dando um prêmio agora…

Retrato de Ediltrudis Noguera (Foto: Fernando Allen, Cortesia Galeria Millan)

 

No Brasil, talvez estejamos no momento de redescobrir as nossas próprias raízes, que foram também solapadas. Artistas trabalham no sentido de buscar afirmar a identidade de matriz africana. Você conhece essa nova geração?
Isso é uma coisa bem recente, não é? Gosto de uma frase de uma personagem daquele filme Eu Não Sou Seu Negro. Ele diz: eu não sou negro, não sou islâmico, eu sou um homem. O que interessa é o espírito dele, o que ele tem a dizer, o seu discurso. 

Como a artista mulher, que quer ser reconhecida simplesmente como artista.
Mas aqui no Brasil acho que não temos preocupação com isso. Porque tem tanta artista mulher que nunca houve esse problema do espaço para a mulher. Nos Estados Unidos houve. Nossas grandes artistas são todas mulheres: Anita Malfatti, Tarsila, Maria Martins, Maria Leontina, Mira Schendel, Mary Vieira, nós temos uma infinidade de mulheres que marcaram. Na arte contemporânea, só de Minas Gerais, tem uma plêiade. Desde a geração de Rosangela Rennó até Rivane Neuschwander, até a Cinthia Marcelle, que é excelente.

Em conversa com Nelson Leirner, há anos, ele me disse que logo o mercado de arte engoliria toda a periferia da arte, até chegar à pichação. Foi premonitório. O mercado engoliu tudo?
É nocivo que o artista jovem, iniciante, de 35, 40 anos, faça pensando no mercado. O artista que eu conheci da década de 40, 50, que ficava no seu ateliê trabalhando, desapareceu. Hoje existe o artista empresário. Ana Maria Tavares e Regina Silveira têm pessoas trabalhando com elas. Trabalhos de equipe. Não é só nos Estados Unidos que isso ocorre, aqui também. Mas é um fato contemporâneo. Quando está preparando uma exposição, a Carmela (Gross) não trabalha individualmente, ela tem assistente. Mas aí você vai dizer que isso aí não tem nada a ver com o mercado. Não, mas é o que impulsiona a produção de hoje. Essa parte técnica assistida pelo artista.

Retrato da ceramista paraguaia Julia Isídrez (Foto: Fernando Allen, Cortesia Galeria Millan)

 

Estamos vivendo o desmoronamento das instituições políticas. A arte pode fazer a diferença em uma sociedade completamente desorientada? Ou esse estado de desorientação também se dá no meio da arte?
Não, está todo mundo paralisado. Nós não sabemos pra onde vai o País, os valores foram todos por terra. Nós sabemos que temos aqui um governo imoral, que a gente pergunta como pode ter condições de governar um país tendo sido perdida totalmente a decência, do ponto de vista ético. Em todos os setores, em todos os partidos. No PT, no PMDB, no PSDB, mas então os únicos que escapam são aqueles de extrema esquerda. O PT, que você achava que era um partido renovador, está contaminado de tal forma que é impossível acreditar. E politicamente ninguém se posiciona, ninguém comenta. Tá tudo muito ruim, e morre o assunto. Assim como dentro da família não se conversa mais, há certas paredes que se interpuseram entre as pessoas e as gerações. Será que um dia isso vai cair? Será que quando houver eleições diretas vai cair? Esse mal-estar… é uma parede que parece ter sido colocada por decreto, por um regime de exceção… E o artista é um ser como qualquer outro.

Sobre quais questões importantes a arte brasileira se debruça hoje?
No Brasil, eu vejo muito pouco. Vejo muito pouco grito na arte brasileira. Isso me incomoda e me incomoda também trabalhar nessa área. Por isso que acho a arte popular mais legítima. Eles estão ligados àquele fazer mais ancestral e visceral. O artista, hoje, ou tem o olho para fora, para o que está acontecendo lá fora, ou no mercado… Há uma pobreza muito grande. Existem as revistas de arte, mas o fato de nenhum jornal diário ter uma coluna que acompanhe o que acontece em arte, nem que seja uma resenha, como as sinopses dos filmes. Uma cidade movimentada, que tem a agitação cultural que São Paulo tem, deveria ter, pelo menos um dia por semana, resenhas do que se passa em galerias ou museus.

Você acha que falta um esforço de sistematização da história da arte brasileira, como foi a História Geral da Arte no Brasil, organizada por Walter Zanini, em 1983?
É verdade. Às vezes, eu tenho a impressão de que, no Brasil, é assim: o último que escreveu foi o único que escreveu. Ninguém procura bibliografia anterior. É bom remeter à bibliografia anterior, como no caso dessa antologia organizada pelo Zanini, com ene autores. Acho que o Brasil pós-Brasília explodiu em várias direções, e isso é muito curioso é muito interessante. Por exemplo, aparece um polo importante como o Rio Grande do Sul, aparece Curitiba com suas bienais, aparece Brasília, aparece Belo Horizonte não apenas com o Inhotim, mas com um centro formador de artistas jovens muito intenso, e agora o Ceará com outras iniciativas – o Museu da Fotografia, o Dragão do Mar, a Fundação Edson Queiroz, fortíssima, que faz grandes aquisições de obras que antes estavam em coleções de São Paulo. Fortaleza vai se tornar um polo museológico importante no Brasil. Sem falar em Belém, que tem vida própria e tem um polo fotográfico poderoso também. Você vai pra Belém e tem a impressão de estar em outro país, tal a grandiosidade do estado. Isso é um fenômeno pós-Brasília. Antigamente, tudo ficava entre Rio e São Paulo. Com Brasília há um splash.

Você é uma grande viajante. Uma curadora viajante…
Ah, eu gosto de viajar. Quando fiz parte do júri do Rumos do Itaú e viajamos pelo Brasil inteiro – e nesse aspecto o Itaú tem um papel muito interessante com essas viagens que eles fazem de informação –, fui pra tudo quanto é lado, Roraima, Rondônia, Rio Grande do Norte, Acre. Você descobre outros países. Agora, acontece que o Brasil é um país caríssimo pra viajar. Eu fiz há uns três anos uma viagem para Belém e fomos de barco até Santarém. Aí você descobre a Amazônia e percebe o poder do Pará. O Pará é um estado que é um pais. É muito impressionante, não apenas a arquitetura, os museus. É incrível, é um universo independente, autônomo, fortalecido por seu próprio passado.