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Vilma Eid e um recorte de sua coleção particular. Da esquerda para a direita, na parede, pintura de Vasarely e pinturas de José Antonio da Silva; na estante, no alto, esculturas de Zé do Chalé; na estante, abaixo, esculturas de Nino e Chico Tabibuia; na parede do fundo, pinturas de Teodoro Stein Carvalho Dias e Germana Monte-Mór; no chão, esculturas de Pixiló e Artur Pereira (Fotos: Paulo D'Alessandro)
Postado em 10/06/2016 - 12:23
Vilma Eid e a arte brasileira além do sistema
As histórias de uma colecionadora em pesquisas de campo e galerista que coloca o popular e o erudito em diálogo
Paula Alzugaray

“Arte popular” é um termo que pede revisão. Sua designação em língua inglesa, “outsider art”, também é imprecisa na medida em que a arte produzida fora dos centros começa a ser exibida e colecionada no âmbito do sistema institucional mainstream. Popular, pop, vernacular. “Qual o termo ideal? Isso é sempre motivo de longas conversas”, diz Vilma Eid à seLecT. Na largada de nossa conversa sobre a coleção de cerca de 1,5 mil itens de 62 artistas da Galeria Estação, em São Paulo, nos retemos sobre a definição de arte popular, à qual a colecionadora e galerista paulistana se dedica há três décadas. “Prefiro arte não erudita, mas acho que estamos falando de arte. Por que o Véio tem de ser um artista popular e não simplesmente um artista?”

Arte Brasileira: Além do Sistema, título de curadoria de Paulo Sérgio Duarte na Galeria Estação, em 2010, oferece um caminho. Ao colocar lado a lado obras de Fernando da Ilha do Ferro, Nuno Ramos e Tunga, entre outros, a exposição reforçava o que a galerista vem colocando em prática há 13 anos. “Arte é arte e ponto final. O que é bom convive, e não há preconceito que destrua essa lógica”, diz Vilma Eid. As qualificações que distinguem arte popular e arte contemporânea oscilam entre estudo e estado mental. “Um estudou, o outro não. Essa é a única diferença. Isso é o que precisa ficar claro no mundo da arte.”

Detalhes da coleção. Da esquerda para a direita, esculturas de Tunga, Artur Pereira e Itamar Julião; pintura de Mira Schendel
Detalhes da coleção. Da esquerda para a direita, esculturas de Tunga, Artur Pereira e Itamar Julião; pintura de Mira Schendel

Para reforçar seu argumento pela igualdade entre as partes, ela cita um artigo lido no The New York Times, durante a participação em uma edição da Outsider Art Fair, em Nova York. “A jornalista dizia: ‘Por que será que, quando vou à Outsider Art Fair, os galeristas me apontam um artista esquizofrênico, outro com problema mental e, quando vou a qualquer feira de arte contemporânea, ninguém me diz que o artista é drogado ou alcoólatra?’” Vilma chegou à conclusão de que a feira especializada estigmatiza o artista e então decidiu se voltar para as feiras de arte e ponto.

A arte por ela mesma
Além de rejeitar rótulos, a galerista chamou a atenção dos profissionais de arte contemporânea para seus artistas, quando redefiniu o modo de exibi-los. “A única coisa que estava faltando é que esses artistas fossem mostrados da mesma maneira como qualquer artista moderno e contemporâneo é mostrado: dentro do conceito do cubo branco. Nada de tijolo, palha, barro, nada de cenografia”, diz.

A inserção de elementos para contextualizar a exibição de objetos trazidos das zonas rurais, litorâneas e não urbanas foi um partido assumido por Lina Bo Bardi na montagem da exposição A Mão do Povo Brasileiro (SP, 1969) – leia matéria à página 80. Seu modo de inscrever arte e cultura popular dentro do domínio do museu  buscava instaurar uma prática “descolonizadora” e virou um padrão repetido pelas instituições culturais brasileiras. Vilma propõe um projeto na direção inversa, afirmando “a contextualização da arte por ela mesma”.

Detalhes da coleção. Da esquerda para a direita, bonecas de Placedina e Izabel Mendes da Cunha; pintura de Arnaldo Ferrari; pinturas de Ranchinho e Rodrigo Andrade
Detalhes da coleção. Da esquerda para a direita, bonecas de Placedina e Izabel Mendes da Cunha; pintura de Arnaldo Ferrari; pinturas de Ranchinho e Rodrigo Andrade

Vilma Eid começou sua coleção no início dos anos 1980, abriu sua primeira galeria no fim da mesma década, depois manteve um escritório de arte, antes de abrir a Galeria Estação em 2004. “Quando abri a Estação, entendi que tinha uma responsabilidade com os artistas vivos. Mostrar vem em primeiro lugar, colecionar vem depois. A responsabilidade de mostrar, de tornar visível é o que me move.”

A estratégia que a diferencia das instituições que trabalham com arte popular – e lhe garante sucesso de crítica e de vendas – surgiu em 2009, quando o crítico Rodrigo Naves assinou a curadoria de uma individual de José Bezerra, artista pernambucano do Vale do Catimbau. “Eu estava desesperada, pensando como é que eu ia apresentar essa figura em São Paulo. No momento em que o Rodrigo Naves escreveu sobre Zé Bezerra e montou a exposição em três andares, foi decisivo. Eu digo pro Rodrigo que aquele advento mudou a vida dessa galeria. E sabe o que ele me diz? ‘Você mudou a nossa. Porque nos mostrou – nós enquanto mundo contemporâneo – coisas que a gente não sabia que existiam’”, conta. De lá para cá, os memoráveis duetos promovidos por Vilma Eid incluem Clovis e Ricardo Resende; Mirian e Miguel Chaia; Zé do Chalé e Cauê Alves; Lorenzato e Laymert Garcia dos Santos; Aurelino e Lorenzo Mammi; Nino e André Parente; Ranchinho e Rodrigo Andrade (leia à pág. 40); José Bernnô e Marco Giannotti, atualmente em cartaz. O mesmo projeto rege a coleção pessoal. Em seu espaçoso apartamento no Alto de Pinheiros, ela coloca em diálogo Paulo Pasta e Heitor dos Prazeres; Tunga, Mira Schendell e GTO; Sergio Camargo e Conceição dos Bugres; Paulo Monteiro e José Antônio da Silva.

Pesquisas de campo
A maioria dos artistas vivos que Vilma representa foi introduzida por ela no difícil e concorrido circuito cultural paulistano. Alguns viajaram para mais longe. De fala mansa e riso solto, a galerista conta como Cícero Alves dos Santos (Véio) chegou ao reconhecimento internacional a partir de uma grande mostra de arte popular na Fundação Cartier, em Paris, com a presença de dez artistas brasileiros. “Essa exposição foi vista por uma senhora italiana, dona dessa marca chamada Marni, que enlouqueceu com o Véio e botou na cabeça que ele tinha tudo a ver com a marca dela. Um dia eu recebo um telefonema de uma pessoa dizendo: ‘Fui contratado para fazer uma individual do seu artista Véio’. Eu disse, ‘como?!’ Ele disse que a Marni faria 20 anos e queriam escolher um artista que tivesse a identidade da marca! Muito louco”, diverte-se.  Montada na Abazzia di San Gregorio, no Gran Canale de Veneza, a exposição de 105 esculturas de Véio, aconteceu entre maio e novembro de 2015, paralela à 56ª Bienal. O trabalho como galerista e a coleção particular foram tecidos em viagens de pesquisa ao interior do Brasil. A primeira delas foi para conhecer José Bezerra, no semiárido pernambucano. “Era junho, época das águas, como eles chamam. Eu disse, ‘eu vou pra lá’. Diziam, ‘Vilma, você não vai conseguir chegar, não sabe como é longe’… eu aluguei um táxi e fui. Entendi o que eles chamam de época das águas, entendi o que é pau de arara. Porque, na época das águas, eles não têm outro meio de transporte entre o sitio e qualquer vilarejo. E eu de táxi. Foi um evento. E um motorista maravilhoso! Daí pra frente, eu sempre o contratei pras minhas viagens, porque em momento algum ele disse ‘daqui eu não vou’.”

Vista da exposição individual de Nino, em cartaz na Galeria Estação entre março e maio de 2016, com curadoria de André Parente
Vista da exposição individual de Nino, em cartaz na Galeria Estação entre março e maio de 2016, com curadoria de André Parente

Essa frase tampouco nunca foi dita por Vilma Eid, que resgatou do coração do Brasil José Bezerra, Véio, Aurelino e Neves Torres. Ela conta que, para conhecer Dona Isabel, a artista das bonecas de barro, não fez o Vale do Jequitinhonha por estrada de asfalto. “Fiz por dentro, dormindo em posto de gasolina, vendo tudo e separando o joio do trigo.” Separar o artesanato da arte é outra de suas “missões”. Vilma precisou dizer para José Bezerra que ele era um artista, não um artesão. “Artesã é a sua mulher, que faz esses potinhos, sempre copiando um do outro. É o seu filho, que faz essas santinhas em série. O verdadeiro artista não faz para o mercado, não faz pra agradar. Faz por necessidade de fazer”, diz. Outros, como Clovis e Véio, tinham ciência de ser artistas. No caso de Dona Isabel, essa consciência se fazia na precificação do próprio trabalho. “Existe uma tradição de que os filhos sigam os passos do pai. O GTO deixou filho e neto. O Nino tinha um rapaz que o ajudava e que continuou tentando ser o Nino. Eles têm a técnica, mas não têm o talento. Com esses eu não me sinto responsável, de maneira alguma. Eu não trouxe para mim uma responsabilidade social. Minha responsabilidade é mostrar  arte.”