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Postado em 15/01/2012 - 5:25
A arte que nasce do papel
Angélica de Moraes

Há extensa e importante produção contemporânea que surge da tradição das artes gráficas. Conheça alguns artistas com esse DNA

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(Foto: cortesia da artista)

Quando Edith Derdyk realizou a instalação metragem, exibida de agosto a outubro de 2011 na nova sede do SESC, no bairro paulistano do Bom Retiro (reduto da confecção popular e do vestuário acessível), ela tratou de aproximar dois mundos aparentemente diversos: o mundo têxtil e o mundo do livro. Como a artista produziu essa síntese? Buscando a origem da palavra texto. A palavra vem do verbo latino texere, que significa tecer. Portanto, as atividades de tecer e escrever estão intimamente ligadas.

Derdyk celebrou essa união em uma bela peça: a instalação/escultura, que ilustra estas páginas de seLecT em plano geral e close. A obra possui a mesma natureza fluida e tensa que habita a linha, seja ela o fio que vai configurar tramas para nos vestir, a linha que sai da caneta da escrita cursiva para construir as palavras. Ou a linha impressa na página de papel, como esta que agora você lê. Ou, ainda, a linha feita de pixels no computador onde este texto foi escrito e pode migrar para ser lida nos tablets. Em diversos panos, planos e superfícies, tudo isso é linha tecida e bordada, criando dimensões de viver e refletir.

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Tabuleiro, 2010, de Edith Derdyk. (Foto: cortesia da artista)

Em Metragem, a linha parece escapar do plano do papel para projetar-se no espaço. Há também a noção de seriação, de repetição, e acúmulo de linha sobre linha. Novamente, uma natureza compartilhada tanto pelo tecido quanto pelo texto. “penso também na sobreposição dos tempos, no futuro cheio de sobreposições, como uma arqueologia ao contrário”, comenta a artista, em seu amplo ateliê lotado de projetos em criação ou execução acelerada.

Como uma sensibilíssima máquina de fiar conceitos, Derdyk não para. É uma das artistas mais prolíficas do cenário artístico atual. Em sua agenda se sobrepõem tanto exposições no país e no exterior como a atividade docente. Escreve e organiza livros teóricos (como o ótimo Disegno Desenho Desígnio, Ed. senac, 2007) e cria deliciosos livros de artista, peças únicas ou de pequena tiragem. Tudo ao mesmo tempo, agora.

Em breve, sua imaginação industriosa vai levá-la a Jerusalém, onde pretende desenvolver Dia Um, projeto sobre a primeira página da Bíblia, aquela que narra a criação do mundo. Derdyk vai buscar essa página em todas as línguas possíveis, dessacralizando o discurso institucionalizado da religião e, principalmente, investigando o momento inaugural do uso da palavra na história da humanidade.

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Onda Seca, 2007. Edith Derdyk (Foto: cortesia da artista)

Em Metragem, Derdyk usa ao mesmo tempo a linha e o papel, que já frequentavam isoladamente boa parte de sua produção. “Creio que consegui uma síntese de opostos: a linha é a suspensão e o papel é o peso. O papel dá apoio para a linha ficar suspensa.” Ao mesmo tempo, acredita ela, há outras dualidades possíveis na leitura da peça: “Trata da potência da folha em branco do papel e da impotência de preenchê-la, da crispação que acompanha todo ato criativo da escrita”.

Serenidades recortadas

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Relevo Progressivo c-89, 2007, cartão sobre madeira. Palatnik recorta no papel ângulos que criam sombras e percepções cromáticas voláteis (Foto: cortesia da Galeria Nara Roesler)

O mundo de Abraham Palatnik instala-se e gira em outro diapasão do uso do papel. É um mundo mais contemplativo e sereno, sem tensões aparentes, embora seja, paradoxalmente, feito do recorte cirúrgico de linhas para animar movimentos na espessura do papel. Mas não há dramaticidade nessa dissecação da carne do papel. Ela resulta em ondas e ritmos melódicos que tanto podem nos remeter à natureza intangível da música quanto a um fragmento da pele imensa dos mares. Ou, sempre, a formas abstratas que o autor cultiva com predileção.

Pioneiro da arte cinética no mundo, o carioca por adoção Palatnik (1928) integrou o histórico Grupo Frente de arte neoconcreta juntamente com nomes como Lygia Pape, Ivan Serpa e Franz Weissmann. Suas peças reunindo luz e movimento são inarredáveis da genealogia e do fluxo principal da arte contemporânea. Algumas delas são feitas com hastes metálicas que giram e movimentam pequenas formas coloridas, com auxílio de delicados mecanismos de relógio ou caixinhas de música. As obras sobre papel de Palatnik são tão propiciatórias à contemplação e harmonia quanto o eterno jogo infantil de inventar formas para a inconstância das nuvens. Nelas, permanece a pesquisa cromática que o artista explorava com luz artificial (elétrica). Mas, desta vez, as formas e cores se revelam e organizam pela movimentação do espectador diante delas, com ângulos e sombras instaurando percepções cromáticas voláteis.

A volatilidade também está presente nos trabalhos da dupla Detanico Lain, assinatura conjunta de Angela Detanico e Rafael Lain, artistas nascidos em Caxias do Sul (RS), em 1973, que vivem entre São Paulo e Paris. A dupla teve uma ascensão veloz no circuito internacional. Pouco tempo se passou desde que foram selecionados para um programa de residência no Palais de Tokyo (Paris, 2002) até ganharem o prestigioso prêmio Nam June Paik (2004) e conquistarem visibilidade internacional.

A dupla de artistas, que representou o Brasil no pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza de 2007, cultiva extrema concisão de meios expressivos, que nascem do universo do design gráfico e invadem com potência o mundo da poesia visual. Estabelecem um sutil tratamento gráfico à linguagem, criando alfabetos e famílias de tipos, hibridizando-as com meios eletrônicos (inclusive animação em vídeo) na construção de imagens que cumprem a dupla tarefa de ser vistas e lidas.

Em Dispersion (2010) está presente a característica essencial da dupla: o uso de fontes tipográfias como imagens. Algo cuja genealogia remonta à tradição do poema visual concreto e dos livros de artista desenvolvidos por Augusto de Campos e Julio Plaza a partir do fim dos anos 1960. Algo que, em Campos e Plaza, significou a produção de livros antológicos como Caixa Preta e Poemóbiles (este relançado pela Editora Demônio Negro, em janeiro de 2011). O escultor colombiano Miler Lagos, por sua vez, desenvolveu uma série de obras em sintonia com a mais antiga tradição da arte sobre papel: a xilogravura. Esse tipo de gravura é feito pela transferência de uma imagem por meio da pressão de uma folha de papel sobre a superfície entintada de uma matriz de madeira, onde foi escavada a imagem a ser copiada.

Na série Cimientos, iniciada em 2007, Lagos cria esculturas em formato de árvore que podem ser folheadas como se fossem livros. Trata-se de um acúmulo de folhas de papel, esculpidas na sua espessura. Em um desses trabalhos, ele empilhou e esculpiu centenas de cópias da xilogravura Apocalipse, feita por Albrecht Dürer em 1480. As gravuras podiam ser destacadas do topo do tronco/escultura pelo público, tornando ainda mais direta e eficaz a apropriação contemporânea da tradição da gravura.

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Esculturas de Miler Lagos, da série Cimientos, 2007 (Fotomontagem: Luiza de Carli)

Como se sabe, o surgimento da gravura democratizou o acesso ao conhecimento, até então encerrado nos espaços elitizados das bibliotecas da Igreja e da realeza medieval. E, não por acaso, as detalhadíssimas xilogravuras de Dürer foram feitas com madeira de topo, ou seja, com matrizes que resultam de um tipo de corte feito contra as fibras da madeira. No mesmo sentido em que o público retirava as cópias de Dürer da escultura/gravura de Lagos. Uma homenagem, enfim, à própria natureza primeira do papel.

Livro como forma de arte

Julio Plaza é nome fundamental tanto na criação como na reflexão teórica sobre o livro de artista

O livro é um volume no espaço. Livro é uma sequência de espaços (planos) em que cada um é percebido como um momento diferente. O livro é, portanto, uma sequência de momentos. O livro é signo, é linguagem espaço-temporal.

O texto verbal contido em um livro ignora o fato de que o livro é uma estrutura autônoma espaço-temporal em sequência. Uma série de textos, poemas ou outros signos distribuídos através do livro, seguindo uma ordem particular e sequencial, revela a natureza do livro como estrutura espaço-temporal. Essa disposição revela a sequência, mas não a incorpora, não a assimila.

O livro é um sintagma sobre o qual se projeta o paradigma página. (…) Se o livro impõe limites físicos, formais e técnicos fixados pela tradição, também impõe uma leitura e uma lógica do discurso em linguagem escrita e discreta que pode, no entanto, ser substituída pela analogia da montagem. Como já o viu Apollinaire: “É preciso que nossa inteligência se habitue a compreender sintático-ideogramicamente em vez de analítico-discursivamente”. Essa substituição que Apollinaire defende codifica precisamente o processo acelerado das mutações de linguagem na nossa época. A leitura do mundo cotidiano já há tempo se afastou da reduzida gama de métodos tradicionais fixados há séculos pelo livro: a influência dos grandes cartazes da imagem e textos espalhados pela cidade e, sobretudo, os meios massivos de comunicação fornecem-nos dados culturais que correspondem aos módulos de nossa época, criando, por outro lado, inter-relações não somente intermídia como também interlínguas.

(…) O “livro de artista” é criado como um objeto de design, visto que o autor se preocupa tanto com o “conteúdo” quanto com a forma e faz desta uma forma-significante. Enquanto o autor de textos tem uma atitude passiva em relação ao livro, o artista de livros tem uma atitude ativa, já que ele é responsável pelo processo total de produção porque não cria na dicotomia “continente-conteúdo”, “significante-significado”.

Fragmentos escolhidos do texto O Livro como Forma de Arte (I),de Julio Plaza, publicado originalmente na revista Arte em São Paulo, no 6, abril de 1982

*Publicado originalmente na edição impressa #3