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Gangorra (2013), de Rommulo Vieira Conceição (Foto: Edouard Fraipont)
Postado em 17/08/2020 - 9:14
A casa e a rua
Obras de Rommulo V. Conceição, Helene Sacco, Arthur Scovino e Bruno Moreschi desafiam os espaços doméstico, urbano e expositivo
Nina Rahe

Para o antropólogo James Clifford, os espaços que melhor representam a pós-modernidade são aqueles de encontros arbitrários, como o saguão de um hotel ou o terminal de um aeroporto. Em uma época em que as pessoas estão constantemente em trânsito, pensar sobre qualquer localidade, segundo ele, é observar mais os movimentos de deslocamentos do que de permanência.

Neste ano em que os encontros, arbitrários ou não, foram temporariamente suspensos, no entanto, os apontamentos de Clifford nos fazem refletir sobre como não é necessário sair de casa para se deslocar. Se o antropólogo dizia que a mobilidade não precisava ser vista de forma literal, e que as pessoas poderiam viajar por meio do contato com a televisão ou o rádio, o isolamento social de agora só reforça que a ideia da casa como sinônimo de esfera privada é um conceito ilusório. Se o ambiente doméstico sempre foi invadido pelas notícias que vinham do exterior, pelo ruído dos vizinhos ou o cheiro da cozinha do apartamento ao lado, o uso intensificado das tecnologias dentro de casa, para manter as relações sociais e de trabalho, contribuiu para a dissolução quase por completo dos limites que separam o público e o privado. E são justamente as possibilidades de contato entre essas duas esferas que estão em evidência nas obras dos artistas Rommulo Vieira Conceição, Helene Sacco, Arthur Scovino e Bruno Moreschi.

Desenho para o projeto Casa Movente (2010), de Helene Sacco (Foto: Cortesia da artista)

Sobreposições
A ideia de sobreposição permeia praticamente todos os trabalhos desenvolvidos por Rommulo Vieira Conceição. Ainda que o conceito possa ser visto, em uma primeira leitura, como sinônimo de convivência pacífica entre polos aparentemente dissonantes, os objetos acabam esvaziados de sua funcionalidade. Em Quarto-cozinha (2006), Rommulo Conceição apresenta uma escultura que recria dois cômodos da casa, transformando-os em um conjunto integrado, porém vazio. A cama, atravessada por uma bancada, não atende mais à necessidade de se deitar; o abajur está à deriva dentro do ambiente sem paredes. 

O universo íntimo aparece desvelado; é invadido pelo espaço mais compartilhado da casa. Mas na cozinha também não há praticidade alguma: o acesso à pia e às louças cuidadosamente arranjadas é impossibilitado pela distância que a cama impõe. “O quarto é o espaço mais íntimo, onde vamos ler ou chorar. Já a cozinha, se olharmos para a história, está vinculada ao trabalho e, mesmo quando ela adquire um certo glamour, saindo dos fundos para adentrar a sala, há sempre alguém que vai lavar os pratos”, diz o artista à seLecT. “A sobreposição dos ambientes não é uma imposição, mas uma convivência. Mesmo assim há certa perversidade.” 

Nos trabalhos da série Estruturas Dissipativas, como Balanço (2012) e Gangorra (2013), a sedução pelas cores vibrantes e formas geométricas acentua ainda mais o aspecto hostil da obra de Rommulo Conceição. O universo lúdico convida o público, mas mascara a impossibilidade do percurso criado: o movimento da gangorra nos mantém sempre sem sair do lugar; a escada interrompida não dá acesso ao pavimento superior. Os elementos constitutivos do universo de trabalho – entre mesa de reuniões e escrivaninha –, dentro desse cenário idílico, perpassam mais uma vez a ideia de um convívio tumultuado entre mundos discrepantes. O conceito é levado ao extremo na obra A Fragilidade dos Negócios Humanos Pode Ser um Limite Espacial Incontestável (2015), na qual um ambiente já impenetrável – talvez uma casa – aparece comprimido por meio das grades de segurança. É a total impossibilidade de convergência entre o público e o privado. 

“A casa nos dá uma ilusão
de segurança, mas estamos
o tempo todo atravessados
pelo que vem de fora”, diz
Helene Sacco

Deslocamentos
Se Rommulo Vieira Conceição expõe as tensões entre o particular e o coletivo, artistas como Helene Sacco e Arthur Scovino veem esse convívio de forma mais harmônica, já que é a própria casa que norteia o trabalho dos dois. No caso de Sacco – que habitou mais de 20 lugares diferentes no decorrer da vida, vendo a construção e a desconstrução desses ambientes repetidamente –, a ideia da casa como referência sólida de família se desfez. “Comecei a enxergá-la como uma fabricação que era imposta por elementos externos e não apenas por seus moradores”, diz. “A casa nos dá uma ilusão de segurança, mas estamos o tempo todo atravessados pelo que vem de fora. A rua entra nos cômodos pela televisão, pelo cheiro do feijão da casa vizinha ou pelo barulho de quem vive ao lado.” 

O trabalho Casa-Movente (2011), nesse sentido, apesar de ser uma habitação de 3,6 metros quadrados pensada para apenas uma pessoa, constrói-se com uma abertura para a cidade, como um palco pronto para ser invadido. Literalmente nômade, na primeira vez que a obra aportou na Praça Nereu Ramos, em Criciúma (SC), os transeuntes se relacionaram com o ambiente privado como se fosse público: foram convidados a repousar no sofá, sentar-se à mesa, e puderam, sem esforço, espiar o segundo pavimento onde a cama estava à mostra. Assim, Helene Sacco não apenas promove o deslocamento da casa para a rua, como também exige uma mudança no comportamento do próprio espectador, que, para se relacionar com a obra, precisa despir-se dos conceitos preestabelecidos para o uso do espaço – uma proposta que já estava visível quando a artista mostrou A Cama (1999) na exposição do programa Rumos Itaú Cultural. Para apreciar o objeto dentro da instituição, o espectador precisava, antes de tudo, tirar os sapatos, deitar-se sobre o colchão e, então, espiar por entre os botões do estofado capitonê retratos íntimos do corpo feminino. 

A mesma intenção de deslocamento proposto por Helene Sacco também aparece na obra de Arthur Scovino, que transformou sua participação na 3ª Bienal da Bahia em um misto de casa, ateliê e exposição. Durante os três meses da mostra, em 2014, o artista fez da Igreja dos Aflitos sua morada e deu continuidade à ideia no trabalho Casa de Caboclo, quando ocupou o prédio da 31ª Bienal de São Paulo com o mesmo objetivo. 

“A casa, como o museu, também
pode ser um espaço de
legitimação da arte”, diz
Arthur Scovino

Mas, se nas duas experiências citadas, Scovino busca a troca entre artista e público como material criativo, vislumbrando a arte como processo em construção, ele intensifica essa proposta ao transformar sua própria casa em espaço expositivo. “Quando me mudei, esperei um ano antes de abrir a mostra, pois queria que o ambiente tivesse cheiro, que os móveis encontrassem seus lugares e que eu pudesse conhecer, inclusive, os vizinhos”, diz o artista à seLecT. “Deixei a vida vir primeiro e percebi que a casa, como o museu, também pode ser um espaço de legitimação da arte.” 

Em Casa do Caboclo – Av. São João (2019), o público pode visitar o apartamento do artista para conhecer seu processo criativo, suas obras, ou apenas participar de conversas, almoços e jantares. A iniciativa, que deve ser repetida, caminha para além do debate sobre os modos de seleção, validação e valoração das obras, e amplia o repertório de trabalhos que se realizam na confluência entre a vida e a arte: a casa de Arthur Scovino, nesse sentido, deixa de ser um espaço expositivo para se transformar, ela mesma, junto às peças e performances que abriga, em obra. 

Dissoluções
No trabalho de Bruno Moreschi, há sempre um desvio do olhar. Pregos com defeitos são colecionados como esculturas (Erros, 2012), livros utilizados em cursos de graduação de artes visuais no Brasil são analisados não pelo que ensinam, mas pelo que ocultam (A História da Arte, 2017) e a percepção de uma mostra como a Bienal de São Paulo vai além do discurso oficial para incluir comentários de guardas, montadores e funcionários da limpeza (Outra 33ª Bienal de São Paulo, 2018). 

“Quanto mais interconectados
digitalmente, mais a fronteira
entre o público e o privado se
dissolve”, diz Bruno Moreschi

No centro da obra do artista está a investigação do próprio sistema de arte, mas, em camadas mais profundas, o desvio que Moreschi propõe perpassa também o entendimento dos conceitos de público e privado. Em Procura-me (2011-2012), um dos trabalhos do início de sua trajetória, 15 retratos falados do rosto do artista são realizados por retratistas policiais, a partir da descrição realizada por sua namorada. Os desenhos manuais que, dependendo do ponto de vista, se situam entre aparato policial e linguagem artística, também colocam em contraste o conhecimento íntimo e o superficial, já que os retratos realizados pelos policiais (que do artista nada conhecem) se constroem a partir da descrição de alguém que é realmente próximo do artista.

Seu interesse pela tecnologia, com obras que exploram o universo da Inteligência Artificial, no entanto, traz essa discussão para um patamar no qual não é mais possível distinguir esses dois campos. Em Exchange With Turkers (2020), obra que Moreschi desenvolveu com os pesquisadores Bernardo Fontes, Guilherme Falcão e Gabriel Pereira, o público pode conversar durante 15 dias com cinco turkers, como são chamados os trabalhadores encarregados de treinar mecanismos de Inteligências Artificiais. Em intervenção na plataforma aarea.co, os chats transportavam os participantes para o cotidiano desses profissionais invisibilizados, para os quais o ambiente de trabalho não difere do doméstico. Adentrar o universo dos turkers, desse modo, era adentrar sua privacidade: sua organização física, familiar, financeira. A conversa ainda sublinhava como, nos dias de hoje, o privado está permanentemente ameaçado. “Quase tudo que fazemos envolve processos tecnológicos que, de alguma maneira, geram dados que são rastreados. Quanto mais interconectados estamos digitalmente, mais a fronteira entre o público e o privado se dissolve. Não há como fugir”, diz Bruno Moreschi.